ESTÁTUA DA LIBERDADE
Irão, ou como a impressora de notas norte-americana tudo arrasa

Na madrugada do último 13 de Junho, Israel lançou uma ofensiva aérea massiva contra o Irão, numa acção coordenada que envolveu cerca de 200 aviões de combate e mais de 300 bombas lançadas sobre instalações nucleares, bases militares e centros de comando iranianos.
A operação, baptizada “Leão em Ascensão”, visa destruir o programa nuclear iraniano e eliminar altos quadros políticos, militares e científicos iranianos. Em resposta, o Irão retaliou com mísseis e drones, atingindo alvos civis e militares em Israel, provocando dezenas de mortos e reacendendo a instabilidade regional, num confronto que se anuncia prolongado e potencialmente devastador, pois a este conflito poderá juntar-se ainda o colosso norte-americano ao lado de Telavive.

Se há povo que sabe o preço do sangue colonial é o persa. Entre 1917 e 1919, em plena Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido converteu a neutral Pérsia num matadouro a céu aberto: confiscou cereais, bloqueou importações e lançou o país numa fome que ceifou entre seis e dez milhões de vidas — até metade da população de então. Esta tragédia, apagada dos manuais ocidentais, permanece tatuada na memória colectiva iraniana como o seu holocausto silenciado
Quando, décadas depois, Londres e Washington derrubaram o nacionalista Mohammad Mossadegh — que ousara nacionalizar o petróleo iraniano —, o fantasma do Império voltou a erguer-se. A Operação Ajax, comandada pela CIA e pelo MI6, reinstalou o Xá e entregou o ouro negro de volta às sete irmãs anglo-americanas (BP, Shell, Exxon, Mobil, Chevron, Gulf Oil e Texaco). Os documentos desclassificados da própria CIA não deixam dúvidas: foi um golpe palaciano puro e duro
Para vigiar o novo vassalo, inventaram a SAVAK, polícia secreta treinada por ex-nazis e “sionistas revisionistas”: tortura industrial em nome da estabilidade. O serviço foi montado com o apoio directo da CIA e da Mossad, que forneceram métodos, quadros e doutrina. A sua actuação estendia-se das escutas domésticas à eliminação de dissidentes, passando por práticas sádicas dignas da Gestapo.

Hoje, as celas húmidas, os instrumentos de afogamento e os manequins ensanguentados ainda podem ser visitados no Museu Ebrat, em Teerão — antiga prisão política da SAVAK, agora convertida em memorial da dor. Ali se expõem as marcas do horror, como aviso e testemunho. Quando o Xá caiu em 1979, os iranianos sabiam, quem, em Londres e Washington, mexia os cordelinhos.
Em Janeiro e Fevereiro de 1979, graças a manobras dos EUA e de França nos bastidores, o Xá Mohammad Reza Pahlavi foi pressionado a abdicar — dentro, aliás, de planos discutidos na cimeira de Guadalupe, onde Carter, Callaghan, Giscard e Schmidt deliberaram sobre a crise iraniana. Dois dias após a sua partida (entre 16 e 18 de Janeiro), Khomeini regressou ao Irão, desembarcando em Teerão a 1 de Fevereiro e recebendo a homenagem de milhões de apoiantes nas ruas.
O exílio acabava, o poder clerical começava. A liderança militar realinhou-se rapidamente, rendeu-se, e apenas onze dias depois — a 11 de Fevereiro — o regime do Xá desmoronou por completo, dando lugar ao governo provisório liderado por Mehdi Bazargan.

Até mesmo membros da oligarquia ocidental, como o secretário de Estado Cyrus Vance, defendiam que o Irão devia aceitar uma transição moderada, a fim de estabilizar o país após o regresso de Khomeini.
Da ocupação britânica ao xadrez nuclear contemporâneo, o nó górdio chama-se petrodólar. Desde o final da Segunda Grande Guerra, mas em particular desde o final de Bretton Woods em 1971, o dólar norte-americano sobrevive não pela virtude, mas pela coerção: petróleo, sanções, sistema Swift.
O Irão é um dos poucos Estados que evita essa camisa-de-forças — vende petróleo em iuanes, rublos, rupias, ouro, qualquer coisa menos dólares norte-americanos. É, pois, um herege monetário e, logo, inimigo sistémico desde que é governado por um regime teocrático abominável, cuja ascensão foi, no mínimo, tolerada — e até encorajada — pelos estrategas ocidentais, que viram em Khomeini um antídoto conveniente ao nacionalismo laico e à influência soviética.

Desde o final da convertibilidade do dólar norte-americano em ouro, em 1971, sempre que algum Estado ousa levantar-se contra esse trono verde-oliva, a resposta é sempre a mesma: bastão e dor. Veja-se o Iraque de Saddam Hussein, que em 2000 começou a vender petróleo em euros — três anos depois, foi acusado de esconder armas de destruição maciça (nunca encontradas), invadido, ocupado e transformado num cemitério civilizacional.
Veja-se a Líbia de Kadhafi, que planeava lançar um dinar-ouro africano e escapar ao dólar norte-americano e ao franco CFA (Colonies Françaises d’Afrique). Foi bombardeada pela NATO em 2011, e hoje é um Estado falhado onde se traficam órgãos e escravos. Estes não são acidentes: são castigos exemplares.
Rejeitar o dólar norte-americano não é uma simples opção económica — é uma declaração de guerra ao império monetário, e quem ousa rebeldia paga invariavelmente com sangue. O Irão, que há décadas vende petróleo em quase todas as divisas excepto o dólar norte-americano, conhece esse preço até à medula.

Nesta arquitectura, as “instituições independentes” e supranacionais — FMI, Banco Mundial, A Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA) — são fiadoras da primazia verde-oliva norte-americana. Se a AIEA se revelar uma correia de transmissão de Telavive (e, por tabela, da Casa Branca), desmorona-se o mito da imparcialidade tecnocrática que sustenta o regime global de sanções. Sem sanções, não há chantagem; sem chantagem, o dólar norte-americano perde o trono.
Antes da análise à presente crise, importa recordar que em 2006, quando as autoridades libanesas anunciaram a descoberta de uma vasta rede de espionagem ligada à Mossad — chefiada por Mahmoud Abou Rafeh, um oficial da polícia que confessou operar para Israel e escondia explosivos e equipamentos de escuta em casa —, Telavive respondeu como habitualmente sabe: com mísseis.
O cerco à verdade foi silenciado a fogo e aço. As investigações, que ameaçavam revelar infiltrações israelitas nos mais altos escalões libaneses, foram abruptamente interrompidas quando Israel lançou uma ofensiva devastadora contra o Líbano sob o pretexto de resgatar dois soldados capturados. Tal como agora, a sequência foi clara: primeiro a revelação, depois os bombardeamentos. O padrão é sempre o mesmo — quando a verdade ameaça emergir, há que criar uma cortina de fumo feita de explosões.

Foi aqui que o enredo se repetiu. A 7 de Junho do presente ano, Teerão divulgou ter capturado documentos confidenciais que comprometeriam Rafael Grossi, o director-geral da AIEA, em alegada colaboração ilícita com Israel. O argentino, recorde-se, já ficara mudo em 2022 quando admitiu, em Davos, que Kiev armazenava toneladas de plutónio e urânio — assunto logo abafado.
Cinco dias depois, o Conselho de Governadores da AIEA aprovou, à pressa, uma resolução acusando o Irão de falta de cooperação. Rússia, China e Burkina Faso votaram contra. O escândalo ameaçava romper a cortina de credibilidade da Agência.
Na madrugada seguinte, a 13 de Junho, rugiu o “Leão em Ascensão”: 200 F-35l e F-15, 330 bombas guiadas, 100 alvos — Natanz, Fordow, bases Quds, radares S-300. A sincronização é cirúrgica: denúncia de conluio hoje, bombardeamento amanhã. Quem duvide da causalidade que estude a cronologia.

A propaganda internacional alinha-se: Telavive exerceu “legítima defesa preventiva”. Nada de novo no teatro das operações psicológicas. Desapareceu a pergunta essencial: por que motivo se bombardeia exactamente no dia em que a máscara da AIEA estala?
Porque admitir a parcialidade da Agência equivaleria a admitir que o sistema multilateral é um jogo viciado. Sem árbitro “neutro”, ruem as sanções; sem sanções, ruem as cadeias que prendem economias inteiras à liquidação de transacções internacionais em dólares norte-americanos; sem essa algema cambial, o “excepcionalismo” norte-americano dissolve-se.
Convém nunca esquecer quem plantou a semente: o Reino Unido, o primeiro carrasco da fome persa, primeiro arquitecto do mapa sectário do Médio Oriente, primeiro fiador do Estado de Israel “incapaz de se defender sozinho”, como estipulou em 1915. Hoje sustenta Benjamin Netanyahu à direita e a Irmandade Muçulmana à esquerda, mantendo o conflito em eterno ponto de ebulição. A velha Albion a jogar xadrez com sangue alheio, como sempre fez.

Israel não atacou apenas centrifugadoras. Atacou a hipótese de vermos, a cores, a promiscuidade entre a AIEA e o seu arsenal nuclear não declarado. Atacou, por ricochete, qualquer questionamento à ordem monetária que mantém 330 milhões de norte-americanos a viver à custa de um planeta forçado a usar pedaços de papel verde.
Enquanto um só míssil cair sobre Teerão ou Telavive, o debate sobre o petrodólar, a farsa das sanções e o genocídio britânico de 1917-19 permanecerá fora da “imprensa”. É assim que se conserva um império: mata-se a verdade à fome, exactamente como se matou metade do Irão há um século.
Que ninguém se engane: o “Leão em Ascensão” não defende Israel — defende o trono do dólar norte-americano. Cada bomba que explode é, afinal, uma nota verde impressa com tinta de sangue.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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