BECAS & TOGAS

Os Anjos e a velhaca da Joana Marques

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João Pedro de Sousa|19/06/2025

Sentei-me a observar a coreografia completa deste julgamento-espectáculo: os jornalistas, de olhos fixos nos portáteis, teclavam com furor quase vingativo, como se cada pancada nas teclas pudesse arrancar uma confissão ao processo.

A ré Joana Marques e a sua comitiva, entre a pose de irreverência e o nervosismo contido; os Anjos, alinhados com a solenidade de um dueto em véspera de gala; e a sua claque — sim, havia claque — que aplaudia com o olhar cada lágrima bem colocada e cada tremor vocal emitido pelas testemunhas.

Foi o dia reservado às vozes da defesa dos Anjos e não faltou emoção, comoção, algo que de tão genuíno até nos poderia levar a crer ter sido muito bem ensaiado.

A Juíza, por sua vez, parecia não apenas compreender o sofrimento evocado — parecia senti-lo. Cada lágrima que arriscava brotar à sua frente parecia bater-lhe no íntimo da negra beca.

Já o sistema de videoconferência do Tribunal revelou-se digno de uma paródia involuntária: imagem congelada em expressões duvidosas, som aos soluços e uma sincronização tão desastrosa que faria corar um estagiário de pós-produção.

A tudo isto somavam-se os aviões que, com pontualidade militar, sobrevoavam o tribunal sempre que alguém tentava dizer algo de, supostamente, relevante.

Em várias ocasiões — particularmente insólito — foi Nelson Rosado quem tomou as rédeas da sessão, substituindo-se informalmente à Juíza, pedindo que a testemunha aguardasse porque “está a passar um avião”.

O Tribunal não conseguia garantir o silêncio, mas os Anjos tentavam assegurar a escuta. Justiça acústica, ao menos.

O Maestro Feist, habituado a harmonias e composições rigorosas, viu-se mergulhado num caos sonoro: som falhado, imagem congelada e aviões a cortar o áudio com a precisão de uma orquestra desafinada.
Franzia a testa com a solenidade de quem ouve uma nota fora da pauta.

Muito mais séria foi a forma como apresentou a conclusão do seu parecer: “Sou assim da opinião que, em momento algum, o Hino Nacional foi adulterado melodicamente ou ritmicamente.”

Uma opinião, apenas, mas servida com o verniz de parecer técnico — como se o gosto musical pudesse ser auditado.

Com isto, os Anjos não quiseram apenas defender-se: quiseram regulamentar o gosto.

Transformar sensibilidade em norma e reprovar, com selo de autoridade ofertado por Maestro, quem ousa não gostar da sua versão do Hino Nacional. Feito.

Se a Justiça fosse cega, talvez não tivesse notado as expressões, os risos, os olhares cúmplices e os silêncios ruidosos que preencheram aquela sala abafada.

Mas não. A Justiça vê. Regista.

E, se a Justiça fosse minimamente sensível ao teatro do absurdo, teria interrompido o acto e devolvido os protagonistas ao palco onde realmente brilham: a televisão e o entretenimento.

O palco judicial, diga-se, estava montado com todos os ingredientes de um drama contemporâneo: lágrimas sentidas (ou ensaiadas e interpretadas), testemunhas emocionadas, empresários ofendidos, técnicos ofuscados e peritos melódicos.

De um dos lados, a ré mais peculiar dos últimos tempos: Joana Marques — humorista, podcaster, cronista ou, para efeitos do processo, algo entre uma bruxa digital e um míssil de sarcasmo.

Joana não é o pequeno animal assustado. É um ser afiado, de ironia fria e acutilante, que destila sarcasmo como quem respira.

Não é ruidosa — é letal — e tem aquele tipo de humor que atravessa todas as camadas até deixar o alvo exposto, não num grito, mas num sussurro desconcertante.

Estou sinceramente convicto de que é parente afastada de Ricky Gervais: partilham o mesmo ADN humorístico corrosivo e a mesma incapacidade de levar a seriedade demasiado a sério.

O único problema da Joana Marques é que, ao contrário de Gervais, ela nasceu em Portugal.

Mas, numa análise mais forense, Joana falhou hoje. Não no conteúdo — mas na postura.

Ainda não domina completamente a sua veia satírica fora do estúdio, quando é obrigada a estar presente num ecossistema estranho: a sala de um Tribunal no papel de Ré.

Num tribunal, onde cada gesto é observado, cada suspiro interpretado, cada esgar anotado, é preciso mais contenção.

A Juíza vê. O Oficial de Justiça vê e relata (à Juíza). A audiência vê. Os jornalistas anotam.

Neste palco não há bastidores — e se a ré quis manter a pose irreverente, mantendo-se fiel à sua persona pública, talvez se tenha esquecido que a cena e o acto eram outros — e os Anjos e a sua defesa estiveram a trabalhar muito bem… a emoção.

As testemunhas dos Anjos — maestros, músicos, técnicos, esposas, amigos, empresários — desfiaram relatos sobre dor, angústia, reputações magoadas, filhos a sofrer, noites sem dormir e até olhos rebentados de tensão e crises de acne.

Houve quem chorasse, quem se engasgasse com as próprias palavras e quem descrevesse Joana como alguém que “adora humilhar pessoas”.

Um retrato que, podendo ser injusto, é eficaz para o efeito pretendido: comover, convencer, vencer.

Mas o humor não se regula por simpatia. Nem se dissolve em lágrimas.

O humor é o incómodo. É o que belisca. É o que nos obriga a olhar para os ídolos com menos luz e mais sombra.

Sempre se gozou com os grandes: Elvis, quando engordou. Sinatra, quando se esquecia da letra.

O humor não é um elogio. É uma lupa distorcida — e a Liberdade de Expressão não pode ser arrastada até ao banco dos réus sempre que toca em algo sagrado para alguém.

A dada altura, não pude deixar de imaginar um outro desfecho.

E se, em vez de uma queixa, os Anjos tivessem convidado Joana para uma rábula?

O que teria sido — e o quanto se tinha evitado — se tivessem subido juntos ao palco e feito “O Julgamento do Ano: O Musical”?

Se, em vez de lágrimas, houvesse gargalhadas? Se, por uma vez, se tivesse percebido que o melhor antídoto para a sátira é… mais sátira?
Talvez um dia.

Por agora, nesta sessão, restou-nos o espectáculo dos togados e a certeza de que, quando se começa a julgar o Humor, o que se perde não é só a graça — é a Liberdade.

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