MANUEL MARIA CARRILHO

‘O wokismo é uma ameaça à democracia’

Author avatar
Maria Afonso Peixoto|25/06/2025

Afastado da política e do espaço mediático há mais de 10 anos, Manuel Maria Carrilho, destacado ex-ministro da Cultura de António Guterres e antigo embaixador de Portugal na UNESCO, tem-se dedicado à escrita através dos livros e do seu blogue Pensar o Mundo, onde dá o seu olhar sobre a actualidade. Em 2023, decidiu escrever sobre o wokismo após o insólito incidente no Teatro São Luiz, em Lisboa, em que Keyla Brasil, identificando-se como “actriz e prostituta”, interrompeu a peça Tudo Sobre a Minha Mãe e invadiu o palco para protestar contra a escolha de uma actriz não-transgénero para o papel de uma pessoa ‘trans’.

O antigo deputado do PS, que completa em breve os 74 anos, chama à ideologia woke “a nova peste”, nome que deu a esta sua 25.ª obra, editada pela Saída de Emergência e apresentada na Feira do Livro no passado dia 7 de Junho – e na qual pretendeu ‘dissecar’ o wokismo com uma profundidade que, em Portugal, ainda nenhum outro autor fez.

Foto: D.R.

Em entrevista ao PÁGINA UM – e naquela que é das suas raríssimas aparições na imprensa desde que foi acusado de violência doméstica em 2013 pela ex-mulher, a apresentadora Bárbara Guimarães –, o também ex-professor universitário de Filosofia Contemporânea explica a essência do wokismo e dos seus dogmas de género, de raça e do feminismo radical. Sem esquecer os efeitos nefastos que esta “fábrica de ignorâncias”, como lhe chama, tem tido na sociedade, passando pela Justiça, a academia, os media e a “esquerda” (o seu espectro político), e deixando também alguns comentários sobre a crise que o PS enfrenta.

No ano passado, Carrilho já tinha lançado Acuso – a parcialidade da justiça e a impunidade de que goza, obra em que critica o momento actual da Justiça e revela os detalhes do longo processo que disputou com a ex-mulher. Uma batalha judicial que, depois de três absolvições, culminou em Março de 2022 com a sua condenação pelo Tribunal da Relação de Lisboa a três anos e nove meses de prisão efectiva caso não pagasse uma indemnização à ex-mulher e à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).

Questionado sobre se sente que foi, ele próprio, vítima do wokismo, remete para o seu livro Acuso e garante que não se vê como vítima de nada. “Considero a vitimização a forma mais rastejante de cobardia, está nos antípodas dos valores que mais prezo: a responsabilidade e a coragem”, afirmou.

Foto: D.R.

Porque é que o wokismo é “a nova peste”?

A “nova peste” é uma metáfora – em boa medida inspirada no título da  obra de Albert Camus, La Peste – que pretende caracterizar a situação em que as sociedades ocidentais têm vivido, sobretudo desde os finais da primeira década deste século, em que se pode dizer que o wokismo ressuscitou o “politicamente correcto” das décadas anteriores, mas em que, diferentemente deste – que visava sobretudo o controlo da linguagem –, se pretende agora controlar tudo: a linguagem, as obras de arte de todo o tipo (literatura, pintura, etc.), o conhecimento, das ciências humanas às ciências exactas, o comportamento humano, as mais variadas instituições, chegando mesmo ao delírio de querer controlar o próprio passado.

Esta diferença corporizou-se numa “ideologia”; isto é, num conjunto dogmático de teses que não se submete a qualquer tipo de debate, que se camufla na sua própria negação – já viu alguém assumir-se como woke? –, generalizando-se através de um fanatismo que se dissemina e impõe recorrendo a acções intimidatórias, persecutórias, censórias, de que dou múltiplos exemplos no meu livro: das perseguições pessoais aos cancelamentos de autores, da censura do conteúdo de obras, através dos sensitive readers, até à arbitrária mudança dos seus títulos, da reivindicação de espaços protegidos (os safe places) até à destruição de estátuas; enfim, um sem números de arbitrariedades, tudo em nome de uma permanente vitimização que se deveria à alegada dominação, histórica e actual, do Ocidente, nomeadamente dos brancos e dos heterossexuais.

No livro, afirma que a ideologia de género é a matriz da ideologia woke, mas que o anti-racismo é o seu motor. Quer explicar?

É simples; em relação à ideologia de género eu falo em matriz porque – e é isso que distingue a “ideologia”, da “teoria” ou “doutrina” de género, que é uma distinção fundamental – foi ela que, estropiando completamente uma ideia original do filósofo John Austin, exposta em How to do Things with Words, de 1962, fez da “performatividade” o argumento chave para recusar a base biológica da diferença de sexos, abrindo  assim caminho a tudo o mais que se seguiu, consagrando como um dogma, mesmo um dogma,  a afirmação “eu sou aquilo que digo que sou”  – afirmação que traduz o apogeu de uma subjectividade tão alucinada como narcísica.

Daqui à identity politics, à política da identidade, que vai estar na origem do novo e radical anti-racismo, é só mais um passo, na verdade um grande passo, porque aqui, sobretudo a partir da criação do movimento Black Lives Matter, em 2013, o wokismo adquire uma crescente dimensão social e política, que atinge o seu auge depois do assassinato pela polícia de Los Angeles de George Floyd, em 2020.

É justamente esta convergência que, como explico no livro, potenciada por uma identificação cega e automática do saber com o poder, vai conduzir à formulação da noção de interseccionalidade, que leva à constituição de uma frente anti-sexista e anti-racista, que assume como inimigo comum e central o homem (ou mulher) branco, a heterossexualidade, o colonialista; de um modo geral, tudo o que tenha a marca do Ocidente. Inimigo multiforme que é sempre essencializado, isto é, a quem é atribuído dogmaticamente um conjunto de características incontornáveis, inalteráveis: todo o branco é, por essência, racista, diga ele o que disser ou fizer, e por aí adiante…

O que daqui resulta é uma perspectiva quase esquizofrénica, que divide o mundo para entre vítimas e algozes, entre dominadores e dominados, uma perspectiva maniqueísta que é o que está na origem do seu colossal fanatismo. E o seu slogan “diversidade, equidade, inclusão”, o famoso DEI, que aparentemente assume valores humanistas inquestionáveis, tornou-se na arma ideológica das mais torpes perseguições, censuras e cancelamentos, tendo liquidado milhares de carreiras profissionais e arruinado inúmeras vidas pessoais.

Por vezes, quem se opõe ao wokismo recusa a existência de “géneros”, porque consideram que se trata de uma invenção dos wokes para que pudessem, primeiro, separar, e depois, desvalorizar totalmente o sexo. Mas no livro, diz que o género é sociologicamente incontestável. A existência de géneros pode ser compatível com a importância irrefutável, e o carácter binário, do sexo, que a ideologia de género rejeita?

O género é o resultado do meio, da família, da escola, da sociedade, em suma, da cultura – no sentido lato do termo – em que cada ser-humano é criado, em que evolui, é aí que surgem e se definem as características de cada um, que podem ser naturalmente muito diversas; o horizonte dos possíveis é muito amplo, conforme os contextos e as circunstâncias em que se viva, ele é, por isso, plural. Mas o sexo é prévio e indiscutível, em 99,98% dos casos. Nasce-se macho ou fêmea, e assim será durante toda a vida, independentemente de quaisquer opções subjectivas, sejam elas mais autênticas ou mais cosméticas.  A base biológica da diferença sexual é incontornável, pelo que a tese central da ideologia de género e de todo o feminismo radical, que nega este dado cientificamente inquestionável, e teve o seu expoente máximo em Judith Butler, é completamente anticientífica, releva da mais torpe mistificação, de uma negação da realidade que se situa entre a alucinação e a superstição.

Manuel Maria Carrilho na Feira do Livro de Lisboa, numa apresentação do seu mais recente livro, a qual foi conduzida pelo jornalista Mário Crespo. / Foto: D.R.

O patriarcado é muito atacado pelos wokes e pelas feministas, mas defende que já não existe, ressaltando a cada vez maior representação das mulheres na sociedade. É por isso que diz que o feminismo actual – que designa como neofeminismo ou feminismo radical – já não procura a igualdade de oportunidades, mas sim a indiferenciação entre homens e mulheres?

É, a meu ver, uma hipótese forte. Veja, no Ocidente existe hoje em dia uma completa igualdade de direitos – repito, de direitos – entre homens e mulheres. e existem muitos sectores em que o domínio feminino é até actualmente bem evidente, como seja o da educação, ou o da saúde, é também cada vez mais o caso da justiça, entre outros. Claro que há situações de desigualdade, mas elas são de índole social e – aquilo que o feminismo radical não consegue assumir – de ordem biológica.

E, como diz Emmanuel Todd – e a feminista Camille Paglia tem ideias muito fortes neste ponto – é forçoso reconhecer que muitos dos problemas actuais das mulheres decorrem de elas continuarem a ter de lidar com os problemas femininos de sempre, mas se terem privado da envolvência que tradicionalmente as ajudava a resolvê-los e, além disso, terem, digamos, importado os problemas que eram sobretudo específicos dos homens, a competitividade, a conflitualidade, etc.  Deixe-me acrescentar um dado curioso, que acabo de verificar; este vem da temática da transsexualidade, que é o de, num ambiente mediaticamente tão radical-feminista, a mudança de sexo nos adolescentes ser maioritariamente – cerca de 75% – do sexo feminino para o masculino. Há aqui, creio, matéria para muita reflexão…

Fala no “paradigma do ilimitado” e de como ele também originou esta ideologia, que reivindica como direitos todo o tipo de caprichos e desejos, tendo inerente uma desresponsabilização extrema e uma aversão aos deveres. As gerações mais novas, como Y e a Z, por não terem tido que enfrentar as dificuldades que outras gerações anteriores tiveram, foram instrumentais para engrossar as fileiras do wokismo?

Não digo que originou, mas que é nele que, na minha perspectiva, o wokismo se enquadra, nomeadamente pelo ilimitado poder que ele atribui, por um lado à linguagem, por outro à identidade.  O paradigma do ilimitado conjuga, deixe-me sublinhar, quatro factores que convergem e se reforçam uns aos outros, o individualismo, a globalização, o financismo e a tecnologia. É ele que configura, dinamiza hoje o nosso mundo, e é nele que as gerações que refere – eu acrescentaria também a geração Alfa, de quem nasceu em 2010 – crescem, numa enorme desorientação de valores e numa angustiante rarefacção de referências, realmente sem precedentes históricos. Dito isto, não diria que tal situação seja necessariamente favorável aos dogmas wokistas, o tempo o dirá, a ver vamos… 

Foto: D.R.

Para os wokes, a vítima é uma figura central, assim como o carrasco; numa cosmovisão que divide o mundo entre bons e maus e que, como refere, é movida a ressentimento – pelo homem branco, a heteronormatividade, o colonialismo, o patriarcado, e pelo próprio Ocidente. No livro, diz mesmo que o anti-racismo se tornou, com o wokismo, num novo racismo contra os brancos. Como se explica que uma ideologia tão anti-Ocidente tenha granjeado tantos seguidores, que, paradoxalmente, se abstém de condenar, e muitas vezes até defendem, culturas de outros países onde os direitos humanos, e sobretudo das minorias, são uma miragem?

Talvez porque grande parte dos “inimigos” wokistas do Ocidente estejam dentro dele… O poder woke é um poder que se instalou e disseminou à medida que as sociedades ocidentais se fragmentaram, as maiorias ideológicas que tradicionalmente as sustentavam se esboroaram, e as minorias, em particular as minorias mais activas, com causas mais assumidas – como foi e é o caso da miríade de movimentos anti-racistas e anti-sexistas mais radicais – encontraram nessa situação uma ocasião propícia à sua afirmação, porque passou a ser quase impossível haver qualquer maioria política que não seja uma soma de minorias.

E depois – mas esse ponto exigiria uma conversa só sobre ele –, o paradigma do ilimitado tem um reverso, uma outra face, que é o do conforto, que anestesia as sociedades ocidentais contemporâneas, facilitando a vida ao “minoritarismo”, com as consequências que temos visto, e outras, de momento já no nosso horizonte, que vão dando forma ao que Nathalie Heinich designou como um totalitarismo “de atmosfera”.

Há quem diga que o wokismo chegou ao fim, e que foi derrotado nos Estados Unidos, com a eleição de Trump, e na Europa, com o crescimento da direita. concorda?

Não, não, penso que é o politólogo Yascha Mounk quem tem razão, quando compara o wokismo, a inércia do wokismo se quiser, com o marxismo, e diz que temos wokismo para décadas. Como eu já tinha entregado o livro quando Trump tomou posse, acrescentei um posfácio um mês depois, em que analiso o trumpismo numa tripla perspectiva: como trauma, como acontecimento, e como indício, indício de um novo regime de realidade em que agora, sobretudo sob o prodigioso efeito das plataformas digitais, todos vivemos e que, recorrendo à audaciosa proposta de Jianwei Xun, podemos designar como hipnocracia.

Foto: D.R.

Em algumas passagens, fala na adesão da esquerda ao wokismo, salientando que a esquerda o fez à custa das suas causas tradicionais em prol dos trabalhadores. Agora, vimos que, por um lado, a esquerda sofreu uma pesadíssima derrota nas legislativas, ao passo que a direita cresceu. Foi um erro da esquerda alimentar tanto esta ideologia que, como explica, é autoritária e intolerante, embora seja, muitas vezes, vendida como compassiva e bem-intencionada?

Sim, há muito que tenho assinalado o desaparecimento de causas estruturadas, mobilizadoras, na esquerda; nuns casos, digamos, por boas razões, porque as que tinha em boa parte se concretizaram, nomeadamente no âmbito do Estado providência, mas não soube renová-las em contextos que se alteraram profundamente. Noutros casos, por outras razões, porque abdicou dos seus valores, sobretudo face ao neoliberalismo (que não é senão o liberalismo desterritorializado no mundo da globalização), trocando as causas sociais pelas causas ditas “societais”, minoritárias e predominantemente wokistas

Sem causas nem povo, é como vejo o socialismo actual. Olhe para o que se passou há dias em Roma, com a primeira-ministra socialista da Dinamarca a coligar-se com Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana, na política de imigração. Estamos a entrar num mundo muito diferente, com problemas inéditos e tensões inesperadas, precisamos de novos conceitos e de novas ideias para lidar com ele, a “reflexão” socialista parece-me pelo que vejo, como direi, muito dinossáurica…

Acha que muitos anos no poder criaram “vícios” e o PS acomodou-se?

A alternância é, em princípio, virtuosa em democracia, mas o que mais recentemente aconteceu, por paradoxal que pareça, e foi fatal para o PS, foi a inesperada maioria absoluta de Março de 2022; obtida sem projecto, sem programa, sem equipa e sem preparação para essa eventualidade. E, depois, foi o desatino que se seguiu, com um governo sem coesão, que desde o primeiro dia parecia desconjuntar-se constantemente… Algo nunca visto, na verdade.

Foto: D.R.

Refere que, em Portugal, o governo da geringonça foi particularmente favorável ao wokismo. Como é sabido, teve um papel importante no PS, tendo sido Ministro da Cultura nos anos de Guterres. Acha que o PS entrou numa deriva mais radical com estes temas identitários, e que isso pode ter contribuído também para o desaire eleitoral de 18 de maio? Ou vê outras razões?

Penso que sim, mas, mais do que uma deriva radical, tratou-se uma deriva para um abismo minoritário, numa cegueira que o impediu de ler com um mínimo – insisto, um mínimo – de lucidez os resultados das eleições do ano passado. Sem afastar o significado que a “oferta” política específica do Chega trouxe à política nacional, é impossível ignorar o papel que, certamente em obediência a uma estratégia traçada pela liderança do PS então, tiveram Ferro Rodrigues e Santos Silva. Por cada minuto de admoestação parlamentar ao líder do Chega, eles propiciaram-lhe horas e horas de propaganda política nos media e nas redes sociais, que é a sua grande especialidade, como se sabia e confirmou. Por isso lhe digo que a deriva foi para um abismo minoritário, de que não vai ser fácil sair…

E a quem atribui a culpa pela deriva para esse abismo minoritário de que não vai ser fácil sair? A António Costa?

Bom, aí tudo vem de mais longe, não se trata de culpas, mas de responsabilidades políticas. E, deste ponto de vista, a “geringonça” de António Costa contribuiu sem dúvida, e muito, para isso, mas Sócrates já lhe tinha aberto as portas e Pedro Nuno Santos não foi capaz de fazer nada; foi, talvez, a liderança mais apagada e incapaz da história do PS. E a decisão dele que levou às eleições deste ano consolida esta ideia, revelou uma completa incapacidade estratégica.

Além da esquerda, os media tradicionais em geral têm sido aliados desta ideologia, e, ao mesmo tempo, parecem cada vez mais divorciados da população, que lhes está a virar costas, levando mesmo à sua falência. Muitas vezes, diz-se até que os media e os comentadores estão numa bolha, completamente alheios aos problemas das pessoas. Concorda?

Concordo, é o que chamo a bolha mediático-reticular, que alargou, generalizou o registo, o espectro do entretenimento, que hoje vai da paródia mais ou menos bacoca até ao “infoentretenimento”. A informação, no sentido rigoroso do termo, realmente quase desapareceu. Mas eu não desvalorizaria o papel dos media e dos comentadores, que agora é sobretudo anestesiante – com as redes sociais e as plataformas digitais – é um dos pilares da hipnocracia, que lhe referi há pouco.

Foto: D.R.

Tendo sido também professor catedrático, e observando a forma como wokismo tomou de assalto as universidades – que, foi aliás, onde cresceu nos Estados Unidos –, viu com particular preocupação todos os casos de represálias contra professores e de repressão do discurso e do livre pensamento quando “infringiam” os dogmas woke?

Mais do que preocupação; com surpresa e revolta. Trata-se de uma inversão completa da missão das universidades, que de instituições de produção e de transmissão de conhecimento, de saberes, de debate sobre tudo e sem quaisquer condicionamentos, se transformaram – sobretudo nas áreas das ciências sociais e humanas, mas o wokismo não fica por aí, ele denuncia a ciência com todos os habituais epítetos injuriosos que dirige a tudo o que é ocidental, nem a matemática escapa – num instrumento de perseguição, de censura, de um fanatismo extremo. Foi essa situação que levou Jonathan Haidt – muito falado agora por causa do seu livro sobre a “A Geração Ansiosa”, a criar há anos a Heterodox Academy, nos Estados Unidos. Devíamos criar algo do género cá em Portugal, já existe em mais de 20 países.

Até a Inteligência Artificial – como o ChatGPT – está contaminada com os dogmas woke, não é?

Está. Como sabe, a Inteligência Artificial não é autónoma, os algoritmos são programados, é com base nessa programação que eles respondem aos prompts. O que se tem visto é que, como diz, eles estão contaminados pelo wokismo, isso é evidente, basta interagir com eles; com o ChatGPT, por exemplo – mas o mesmo se passa com o Gemini ou o Claude, entre outros –, colocar-lhe umas perguntas “sensíveis”, para isso se tornar logo evidente. 

Mas tudo depende da programação, vamos ver como evolui a Inteligência Artificial. Tudo isto está a desencadear uma revolução imensa, com consequências no emprego, no ensino, na saúde, na verdade em todos as áreas da actividade humana, que serão muito provavelmente bem superiores às da Revolução Industrial. E só estamos no começo…

Foto: D.R.

Era para isto que os políticos deviam olhar, a pensar no que lá vem, a procurar antecipar os enormes problemas e a preparar as respostas possíveis, mas não se lhes ouve uma só palavra sobre isto. Portugal vive no passado, a própria Europa também, estamos nas mãos do patrões de Silicon Valley. Qualquer guerra precipitada e podemos, por exemplo, ficar sem correio electrónico, a nossa dependência nesta área é total. Os nossos políticos vivem num mundo que está a desaparecer e não compreendem o mundo que está a nascer, é trágico.

Afirma que o wokismo também ‘invadiu’ a justiça, resultando em vários atropelos aos preceitos democráticos, como a presunção de inocência. Vemos, também, que muitas pessoas são judicialmente perseguidas por motivos questionáveis, e no Brasil, por exemplo, um humorista foi agora condenado a oito anos de prisão efectiva por piadas. Acha que o wokismo é, mais do que um fanatismo circunscrito a alguns, uma ameaça real à democracia?

Foi o Léo Lins, inacreditável, não é? Claro que o wokismo é uma ameaça à democracia, desde logo pelo modo como tem levado a justiça a abdicar cada vez mais frequentemente do princípio de presunção de inocência em favor do criminoso – sim, criminoso – princípio de verdade da vítima. Através da vitimização que constantemente tudo transforma numa exigência de reparação sem fim, e da culpabilidade que constantemente injecta no todo social, o wokismo na verdade encurralou a justiça, que abandona cada vez mais, e muito imprudentemente, os seus inalienáveis imperativos de isenção.

Manuel Maria Carrilho no lançamento do livro Sem Retorno, apresentado pelo jornalista Pedro Santos Guerreiro, director executivo da CNN e da TVI, na Livraria Barata (28 de Novembro de 2021). / Foto: D.R.

Mas atenção: como digo no livro, num breve parêntesis creio que no fim do segundo capítulo, penso cada vez mais que o que vivemos é uma crise na democracia – ou seja, do seu funcionamento, com todos os seus impasses e paradoxos – do que uma crise da democracia, no sentido em que ela se debateria com alternativas efectivas enquanto regime político e, mesmo, como forma de vida. Isso, até hoje não aconteceu. Apesar de, segundo os dados recentes do instituto da Universidade de Gotemburgo que há muito estuda a situação das democracias no mundo, este ser o primeiro ano deste século em que há mais regimes autoritários do que democracias no mundo, o que observamos é que em geral o que as pessoas reclamam é, não um outro regime político; o que as pessoas exigem é mais, sempre mais, democracia. A meu ver, é na compreensão desta complexa exigência que está a chave para a resposta a muitos problemas do nosso mundo.

O movimento “Metoo“, que também aborda, parece ter fomentado uma cultura em que a palavra da mulher basta para que se determine a culpa do alegado agressor. Tendo em conta tudo o que aconteceu com o divórcio e a batalha judicial com a sua ex-mulher, muito mediatizados, considera que também acabou por ser vítima do wokismo e da cultura do cancelamento?

Tudo isso é passado, já foi objecto de um livro que publiquei há cerca de um ano, com o título Acuso A Parcialidade da Justiça e a Impunidade de que Goza, e com ele fechei o assunto. E nunca me considerei vítima de nada, considero a vitimização a forma mais rastejante de cobardia, está nos antípodas dos valores que mais prezo: a responsabilidade e a coragem.

Acredita, ou gostaria, que o ostracismo a que foi votado com todo este processo poderá terminar, precisamente, com este livro, que denuncia a deriva persecutória e de ‘cancelamento’ da sociedade com o advento do wokismo?

Este livro procura analisar com detalhe um dos mais graves e complexos problemas das sociedades ocidentais contemporâneas, o wokismo. E fazê-lo traçando a sua genealogia e apontando as suas consequências, procurando expor a teia das suas múltiplas implicações e dos seus mais invisíveis efeitos – contribuir para isso foi, e é, o seu único objectivo.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.