SUSPENSÃO DE JOGOS DE FUTEBOL NO MUNDIAL DE CLUBES

Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

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Pedro Almeida Vieira|29/06/2025

Pela segunda vez, um jogo do Benfica no Mundial de Clubes foi interrompido nos Estados Unidos devido à aproximação de uma trovoada. Depois da suspensão por cerca de duas horas ao intervalo da partida frente ao Auckland City, em Orlando, na Florida, foi agora o encontro de ontem frente ao Chelsea, disputado no Bank of America Stadium, em Charlotte, na Carolina do Norte, a ser interrompido — desta feita ao minuto 85 — e apenas retomado duas horas depois. O jogo, que acabou com a derrota do Benfica por 4-1, começou pelas 21h00 deste sábado e só acabou perto da 1h40 desta madrugada, hora de Lisboa, depois de um prolongamento..

Tratou-se já do sétimo jogo suspenso por motivos idênticos nesta edição da competição. À primeira vista, sob uma perspectiva mediterrânica ou europeia, a ideia de interromper partidas por “relâmpagos ao longe” pode parecer um exagero ou uma excentricidade legal típica dos Estados Unidos. No entanto, este tipo de decisão – prática comum e tecnicamente obrigatória – está sustentada por dados meteorológicos e regras de segurança apertadas. O motivo é simples: nos Estados Unidos, os relâmpagos matam — e com frequência. Entre 2015 e 2024, segundo dados oficiais da NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, morreram 199 pessoas nos EUA vítimas de descargas atmosféricas, num total de incidentes que atingiram quase todos os estados.

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A Carolina do Norte, palco da partida entre Benfica e Chelsea, surge em quarto lugar no ranking nacional, com 11 mortes por relâmpago durante esse período. Já a Florida, onde o Benfica enfrentara o Auckland dias antes, lidera de forma destacada, com 50 mortes em dez anos. Seguem-se o Texas (20 mortes) e o Alabama (15 mortes), estados do sul norte-americano com clima quente e húmido, onde o número de dias com trovoadas por ano ultrapassa largamente a média europeia. Surgem depois os estados da Carolina do Norte (11), Colorado (8), Nova Iorque (7), Pensilvânia (7) e Missouri (6). Mesmo estados considerados menos propensos, como a Louisiana, Ohio, Arizona ou Califórnia, registaram 4 a 5 mortes cada.

Este risco não é apenas estatístico, mas também operacional. Por isso, em solo americano, qualquer sinal de trovoada nas imediações — mesmo sem chuva, vento ou relâmpagos visíveis — activa os protocolos de emergência. A chamada regra dos “30-30” estabelece que, se o tempo entre o avistamento de um relâmpago e o som do trovão for inferior a 30 segundos, todos os eventos ao ar livre devem ser imediatamente suspensos. A retoma só é autorizada 30 minutos após o último trovão audível.

Estas regras aplicam-se de forma transversal: desde os campeonatos escolares e universitários até às grandes competições internacionais. E mais: nos estádios, a decisão não depende dos árbitros nem dos treinadores — cabe às autoridades meteorológicas locais ou aos oficiais de segurança, que dispõem de sistemas de monitorização em tempo real.

Situação meteorológica em redor do Bank of America Stadium, em Charlotte, obrigou à suspensão do jogo entre Benfica e Chelsea deste sábado (que se prolongou por domingo).

Em Portugal, o risco de trovoadas é muito inferior, e a cultura de prevenção quase inexistente. O número de mortes por relâmpago é muito baixo — menos de uma por ano, em média, e quase sempre em contextos agrícolas, montanhosos ou isolados. Nessa medida, não existe qualquer regulamentação específica para a suspensão de jogos devido a trovoadas, nem protocolos operacionais em eventos desportivos. Por isso, quando os adeptos portugueses vêem um jogo suspenso por “relâmpagos invisíveis”, a reacção instintiva é de espanto, quando não de troça.

Nos Estados Unidos, a maioria das vítimas são homens, entre os 15 e os 45 anos, envolvidos em actividades ao ar livre: pesca, golfe, caminhadas, trabalhos agrícolas ou desportos. Mas também se registam mortes em eventos escolares e recreativos, incluindo treinos de futebol ou atletismo. Em muitos casos, a vítima não é atingida directamente, mas sim por correntes de solo, que podem propagar-se a dezenas de metros a partir do ponto de impacto, especialmente em terrenos húmidos ou em contacto com estruturas metálicas.

A ideia de que a ausência de chuva torna o ambiente seguro é, de facto, um mito perigoso. A maior parte dos acidentes fatais ocorre antes da chegada da chuva, durante a chamada “fase seca” da trovoada. Os relâmpagos podem atingir o solo até 15 quilómetros de distância da ‘nuvem-mãe’, o que justifica o elevado nível de alerta meteorológico nos Estados Unidos.

Interrupções por razões meteorológicas não depende das decisões dos árbitros.

Por isso, aquilo que para muitos portugueses pareceu um excesso, ou um exagero americano, é, na verdade, o resultado de décadas de experiência, investigação científica e centenas de mortes que moldaram a política de prevenção. “When thunder roars, go indoors” — quando se ouve trovão, procurar abrigo — é mais do que um slogan: é uma medida que salva vidas. E, num país que regista quase 200 mortes por década, não há espaço para facilitismos.

A suspensão dos jogos do Benfica — primeiro em Orlando, depois em Charlotte — deve, assim, ser entendida como o reflexo de um modelo de segurança pública que prefere adiar o espectáculo em vez de acelerar funerais. Um modelo que, apesar de estranho para os portugueses, tem um mérito inquestionável: reconhecer que nem sempre é o que se vê que mata — mas sim aquilo que se desvaloriza.

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