DA VARANDA DO SALÃO

Afinal, o Benfica (ainda) sabe ser campeão

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Pedro Almeida Vieira|01/07/2025

Confesso: há dois anos que não me entusiasmava verdadeiramente com um jogo de pontapé na bola — e isto depois de mais um balde de água fria sobre as águias, nos Estados Unidos. Talvez porque, sendo benfiquista, tenho coleccionado desilusões com mais afinco do que títulos. Entre um campeonato prometido em Setembro e um “estivemos quase” em Maio, o futebol do Benfica tem sido mais um exercício de fé do que de razão. Vai daí, num rasgo de insensatez que deve ter nascido numa escuta enviesada do podcast de Rui Miguel Tovar sobre o imortal Pimenta Machado — esse titã filosófico de Guimarães — decidi ir ver a finalíssima do campeonato de futsal… em pleno Pavilhão João Rocha.

A ousadia teve cúmplice: o leonino Carlos Enes, autor de vários Da Varanda do Varanda — textos tão afiados como a língua de um Varandas em dia de comício — que, numa rara demonstração de civilidade interclubística, acedeu a fazer-se acompanhar por um benfiquista, desde que este, claro está, lavasse as mãos antes de entrar. O plano só não descambou num enredo ao estilo das comédias do Mel Brooks porque os deuses do futsal, ou talvez os funcionários do Sporting, mostraram alguma misericórdia.

De facto, num intervalo entre escrever dois parágrafos sobre os despesismos com o Erário Público e a audição das memórias do homem que um dia terá dito que as verdades de hoje podem ser as mentiras de amanhã, dei por mim a preencher o pedido de acreditação… para o jogo Sporting – Guimarães em futsal. Um pequeno detalhe: o Vitória de Guimarães não tem equipa sénior de futsal — pelo menos, segundo reza o Google e uma rápida incursão pelo site da FPF. Descobri, no entanto, a existência do Futebol Clube Os Piratas de Creixomil e do Lokomotiv de Gondar — o que, convenhamos, só reforça a ideia de que a imaginação em Guimarães não morreu com D. Afonso Henriques.

O caso ficou resolvido com algumas trocas de mensagens e telefonemas do Carlos Enes, que terá usado a sua credencial de cronista sportinguista como moeda de troca, prometendo que não levava um infiltrado, mas sim um “erudito em exílio futebolístico temporário”. Fomos admitidos. Chegados ao pavilhão, a primeira surpresa foi o próprio recinto: cheio, sim, mas mais pequeno do que esperava. A televisão faz milagres: dá profundidade a pavilhões e talento a jogadores medíocres.

Confesso outro pecado: não domino as regras do futsal. Sou do tempo em que se chamava futebol de salão, e a bola pesada fazia menos barulho do que os chinelos da Educação Física. Até à irrupção de Ricardinho e da sua ginga patrocinada, o futsal passava-me ao lado. A única regra que trazia bem decorada era a do tempo cronometrado — duas partes de 20 minutos — que, como qualquer ex-árbitro medíocre de basquetebol e ex-jogador de andebol sabe, equivale a uma eternidade de bola a rolar sem desculpas para antijogo ou lesões imaginárias. Uma benesse.

Mas vamos ao jogo, que é para isso que se foi. E começou mal. O Sporting marcou dois golos quase seguidos, com o primeiro a ser de um tal Zicky Té, nome que reconheci vagamente, talvez por me soar a personagem de anime com superpoderes. Parecia que os ‘lagartos’ estavam prontos para o penta. O Benfica ainda reduziu antes do intervalo, numa jogada que mostrou como uma pequena distracção pode, no futsal, ser penalizada com a precisão de uma guilhotina. Nem tudo parecia perdido.

A segunda parte recomeçou com esperança: empate do Benfica, explosão na bancada. Mas o Sporting reagiu com o mesmo instinto predador com que o leão ataca a zebra no Serengeti. Voltou à vantagem, e aí temi que tudo estivesse perdido.

E foi então que a ignorância me salvou da angústia. Não sabia que, no futsal, após uma expulsão, a equipa fica reduzida durante dois minutos — ou até sofrer um golo. E foi exactamente isso que sucedeu. O Benfica empatou de novo, numa jogada em que o guarda-redes leonino teve uma espécie de epifania inversa: em vez de defender, ofereceu-se à bola como um apóstolo do desespero.

Pouco depois, quase a faltar apenas dois minutos úteis para jogar, o improvável aconteceu: um remate de meia-distância do guarda-redes do Benfica — que, julgo, terá partido de uns bons doze metros — encontrou as redes, com mais ajuda do guarda-redes do Sporting do que qualquer estratégia treinada. Golo! Benfica na frente.

A comoção foi tal que, por breves segundos, temi que o meu coração me traísse ali mesmo no João Rocha — e que tivesse de ser levado em ombros não por glória, mas por aflição. No pavilhão, o operador do resultado, certamente um sportinguista, também não estaria em si: demorou larguíssimo segundos até admitir o 3-4.

O jogo terminou, e o mais bonito veio depois. Os funcionários do Sporting montaram com dignidade o cenário para a entrega do troféu ao rival. O Rui Costa deve ter agradecido a poupança por a festa ter sido custeada pelo adversário .

E os jogadores do Benfica, num gesto que honra mais do que mil vitórias, fizeram alas para os jogadores do Sporting receberem as medalhas de segundo lugar. E depois foram os sportinguistas que fizeram o mesmo para os campeões passarem rumo ao caneco. Um momento de fair-play raro — que, confesso, me emocionou quase tanto quanto o golo da vitória.

Foi uma noite de festa, não só por termos vencido, mas por termos partilhado o jogo com quem pensa diferente. E o futsal ensinou-me uma coisa num só jogo: que mesmo num pavilhão onde tudo nos é adverso — regras, estatísticas, paredes em verde ácido — ainda é possível sair com um sorriso. E um título. E, sobretudo, com o sentimento de que, afinal, ainda vale a pena ir ao desporto só pela alegria do jogo. Ah! E ainda aguardo a crónica do Carlos Enes…

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