TAXA MÉDIA DE MORTALIDADE É DE 2,8‰, MAS SUPERA OS 6‰ EM 24 CONCELHOS

Doenças cardiovasculares: cada minuto a mais até às urgências causa 567 mortes por ano

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Pedro Almeida Vieira|01/07/2025

No espaço de apenas um mês, foram divulgados dois conjuntos de informação que, apesar de não terem merecido uma única manchete nos jornais do regime, encerram uma tragédia silenciosa com implicações gravíssimas para a política de saúde pública e o ordenamento do território.

Com poucas semanas de intervalo, o INE publicou, por um lado, os tempos medianos (no sentido de abranger 50% da população) no acesso em automóvel ligeiro ao hospital com urgência mais próximo, e, por outro, as taxas de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (que por simplificação se denominará por doenças cardiovasculares), ambas discriminadas por concelho. São, ao todo, os 308 concelhos de Portugal.

Patient in hospital bed with heart monitor showing blood pressure and heart rate.

À primeira vista, parecem variáveis inconciliáveis — como quase tudo o que se publica com etiquetas burocráticas. A mortalidade cardiovascular, dirão os especialistas, depende de múltiplos factores: grau de envelhecimento da população, prevalência de diabetes, hipertensão, obesidade, estilos de vida, hábitos alimentares, níveis de pobreza, isolamento, rede de cuidados primários, acesso a medicamentos.

Tudo verdade. Mas o PÁGINA UM colocou uma questão que parece, à partida, ingénua ou até simplista: e a distância até à urgência hospitalar — só por si — será um factor determinante, ou sequer relevante, para as variações da mortalidade por doenças do aparelho circulatório?

A resposta estatística é directa e inegável: sim. E o que se segue é a demonstração dessa evidência — sem alarme gratuito, mas com o peso sereno dos números. Recorrendo aos dados disponíveis, o PÁGINA UM cruzou as duas variáveis — tempo de acesso às urgências por veículo para 50% da população (2.º quartil) e taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — e construiu um modelo de regressão linear simples.

Distribuição do tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório nos concelhos portugueses. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

O resultado pode surpreendeu até os mais cépticos: a correlação (de Spearman) é estatisticamente significativa e robusta (ρ = 0,60), indicando uma associação moderadamente forte entre as variáveis, mesmo sem pressupor linearidade. E com outro modelo estatístico — o de regressão por mínimos quadrados — constata-se que o tempo mediano de acesso à urgência explica, isoladamente, 30,5% da variabilidade das taxas de mortalidade entre concelhos.

Trata-se de um valor elevado, sobretudo tratando-se de um modelo univariado — ou seja, sem controlar factores como idade, rendimento ou prevalência de doenças crónicas. Em estudos populacionais, raramente uma única variável explica tamanha parte da variação. Este resultado revela, por si só, a força preditiva da distância até ao hospital.

Traduzido em linguagem comum: a Estatística comprova que, quanto mais longe está o hospital com urgência, maior tende a ser a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares — como enfartes do miocárdio, tromboses ou acidentes vasculares cerebrais (AVC). E esta relação não é simbólica: é mensurável. Na prática, o modelo do PÁGINA UM mostra que cada minuto adicional no tempo de acesso está associado a um aumento médio de 0,053 mortes por mil habitantes por ano. Ou noutra perspectiva, mesmo se de forma simplista, cada minuto a mais na chegada à urgência ceifa 567 vidas por ano em Portugal.

Mas se isto ainda parece uma visão abstracta, passemos ao concreto. Aplicando a taxa de agravamento calculada pelo modelo, é possível estimar o impacto dessa diferença em diversos cenários.

Por exemplo, se todo o país tivesse tempos de acesso às urgências semelhantes aos da Grande Lisboa — cerca de 7,6 minutos —, a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório desceria de 2,8‰ para 2,53‰, evitando-se cerca de 2.900 mortes por ano. Pelo contrário, se os tempos se agravassem para os valores médios da Beira Baixa (29,7 minutos) ou do Baixo Alentejo (35,2 minutos), essa taxa subiria para 3,70‰ e 3,99‰, o que significaria mais 9.600 e 12.700 mortes anuais, respectivamente.

Com efeito, os valores tornam-se ainda mais expressivos quando se observam as desigualdades territoriais. Muitos concelhos com elevadas taxas de mortalidade cardiovascular são aqueles onde o tempo mediano de acesso às urgências ultrapassa largamente os 30 minutos, em alguns casos mais de uma hora. De entre os 94 concelhos com taxas de mortalidade 50% acima da média nacional — ou seja, com taxa superior a 4,2‰ —, 53 têm tempos medianos de mais de 30 minutos. Ou seja, quase seis em cada 10 concelhos (56%) com taxas de mortalidade elevada para este tipo de doenças súbitas têm grande parte da sua população a mais de 30 minutos de uma urgência.

brown concrete houses on mountain
Viver numa aldeia pode ser paradisíaco, mas fatal em caso de doenças súbitas.

Estes concelhos dispersam-se sobretudo entre o Alentejo profundo, as serranias do Centro, os vales raianos e as franjas da Madeira, e merecem destaque: Penalva do Castelo, Castro Daire, Montemor-o-Novo, Vila de Rei, Sátão, Resende, Portel, Redondo, Sertã, Estremoz, Nisa, Aljezur, Aljustrel, Gavião, Fornos de Algodres, Alvito, Manteigas, Arganil, Santana, Castro Verde, Vila Nova de Paiva, Almeida, Sabugal, São Pedro do Sul, Vieira do Minho, Vinhais, Coruche, Proença-a-Nova, Penamacor, Serpa, Idanha-a-Nova, Alandroal, Góis, Vimioso, Avis, Sousel, Oleiros, Porto Moniz, Monção, Ourique, Aguiar da Beira, Montalegre, Mêda, Mértola, Pampilhosa da Serra, Mora, Moura, Mogadouro, Sernancelhe, Figueira de Castelo Rodrigo, Alcoutim, Melgaço e Freixo de Espada à Cinta

Têm em comum o mesmo fardo estrutural: o afastamento dos equipamentos de saúde. Mas o problema não é exclusivo de aldeias esquecidas. Mesmo concelhos de média dimensão — como Castelo Branco, Viseu, Évora, ou zonas periféricas de Coimbra e Leiria — enfrentam tempos medianos de acesso superiores a 30 minutos. A dispersão populacional, a escassez de serviços de atendimento permanente e o desinvestimento em redes viárias e extensões hospitalares contribuem para essa penalização.

Em sentido inverso, a análise aos 63 concelhos com tempo de acesso inferior a 10 minutos confirma o efeito protector da proximidade: apenas 21 ultrapassam a média nacional de mortalidade (2,8‰), e destes só três — Elvas, Beja e Abrantes — apresentam taxas de mortalidade 50% acima da média nacional, ou seja, mais de 4,2‰. Ou seja, estes casos isolados não invalidam a tendência dominante.

Silhouette of a person with a glowing red neon heart in the dark, symbolizing love.

E essa tendência é ainda mais clara nos grandes centros urbanos. Lisboa com 4,3 minutos de distância mediana até ás urgências regista 3,1‰ de taxa de mortalidade é a excepção, embora seja um concelho bastante envelhecido (quase um quarto da população tem mais de 65 anos), o que permite aferir o desastre que seria se os tempos fossem maiores.

De resto, todas as principais cidades estão abaixo da taxa de mortalidade e abaixo da média do tempo mediano: Porto (5,5 min), 2,7‰; Oeiras (6,0 min), 2,6‰; Coimbra (6,6 min), 2,5‰; Cascais (7,1 min), 2,6‰; e Vila Nova de Gaia (7,2 min), apenas 2,1‰. Mesmo com uma população envelhecida e elevada carga de doenças crónicas, estes concelhos têm mortalidade cardiovascular bastante abaixo da média nacional. A explicação é simples: chegam ao hospital mais cedo — muitas vezes, a tempo de serem salvos.

Num país que se gaba de ter um Serviço Nacional de Saúde universal e igualitário, a geografia continua a ser um factor de desigualdade brutal. Viver em Alvito, Nisa ou Montalegre não devia ser, por si só, uma ameaça cardiovascular. Mas é. E essa ameaça não decorre apenas de heranças do passado: resulta de opções políticas recentes, de centralizações disfarçadas de modernização e de cortes orçamentais que não chegam à opinião pública, mas chegam às portas fechadas dos centros de saúde.

black sand

A distância, neste caso, mata. Mata com estradas estreitas, com ambulâncias em falta, com urgências encerradas, com extensões sem capacidade de estabilização. Mata com o silêncio estatístico da negligência. Mas os números não mentem. Nem se comovem. Apenas revelam.

E estes apenas pelo PÁGINA UM servem para apelar para a necessidade análises estatísticas mais rigorosas e modelos mais refinados, de modo a se conseguir isolar outros factores determinantes da mortalidade, permitindo identificar com precisão onde as desigualdades são mais profundas e como podem ser eficazmente combatidas. Porque saúde pública não se faz apenas despejando dinheiro em medidas genéricas ou politicamente vistosas — faz-se, antes de tudo, com estudo, método e sabedoria na aplicação dos recursos.

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N.D. Os resultados apresentados neste artigo — com destaque para a associação estatisticamente significativa entre o tempo mediano de acesso às urgências hospitalares e a taxa de mortalidade por doenças do aparelho circulatório — assentam em modelos estatísticos simples e transparentes, construídos a partir de dados oficiais. No entanto, cumpre assinalar que se trata de um modelo univariado, ou seja, não ajustado para outros factores relevantes como o envelhecimento demográfico, a prevalência de doenças crónicas, a distribuição dos cuidados de saúde primários ou os níveis socioeconómicos locais.

Neste sentido, a associação estatística identificada não deve ser confundida com uma prova de causalidade directa, embora a evidência científica internacional reconheça, de forma robusta, que a rapidez no acesso a cuidados médicos especializados é determinante na sobrevivência em situações de doença súbita, como enfartes agudos do miocárdio ou acidentes vasculares cerebrais.

O objectivo desta análise foi, por isso, identificar padrões territoriais de risco que justificam estudos mais aprofundados, com modelos multivariados e abordagens geoestruturais, permitindo orientar a política pública com base em evidência e não apenas em pressupostos administrativos ou igualitarismos abstractos.

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