EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres

Há uma velha tendência humana – que a imprensa-abutre sensacionalista e as redes sociais elevaram à condição de vício pandémico – de querer vigiar os gestos dos outros, medir-lhes o coração, e acusá-los quando não cumprem aquilo que se julga, não uma regra, mas uma expectativa narcísica da comunidade observadora.
E é este o ponto fulcral do circo moralista que se formou, como se fosse vigília digital de almas, à volta da ausência de Cristiano Ronaldo no funeral de Diogo Jota. Não tardaram os inquisidores do costume a vociferar contra o egoísmo, a frieza, o desrespeito. Não por amor ao morto, note-se, mas por desejo de escândalo. Por necessidade de recriminar. Por impulso mimético de pertença ao grupo dos bons.

Mas que espécie de ética é essa que mede o luto com cronómetro e o amor com a geografia do GPS? Que tipo de moral pedante e vazia exige a presença física num ritual fúnebre como critério de compaixão verdadeira? Só uma moral feita de pose e aparência, só uma ética moldada à selfie e ao post. O mundo moderno, saturado de imagens e sedento de comoção pública, já não aceita a dor íntima, silenciosa, invisível. Precisa de encenações. E se o actor principal – neste caso, Cristiano Ronaldo – não entra em cena, o público reclama reembolso emocional e ensaia vaias morais.
É preciso recordar aos zeladores do sofrimento alheio que o luto não é um teatro. O luto é muitas vezes um retiro, uma sombra, um recolhimento. É exactamente o contrário de tudo aquilo que os acusadores de Ronaldo parecem exigir. E se ele tivesse comparecido? Muito provavelmente, as mesmas vozes que hoje lhe apontam o dedo diriam que era exibicionismo, que era vaidade, que era marketing. Porque o problema, afinal, nunca é o acto em si, mas quem o comete. E quando se trata de Ronaldo, o público quer vê-lo, não importa a circunstância, para depois poder julgá-lo.

Cristiano Ronaldo não é um santo, nem quer ser. E também não é um político, nem deve fingir sentimentos para a câmara. É um homem, um desportista de excelência, e – por mais que custe a quem o odeia – é talvez o português mais admirado e respeitado fora de portas. E será porventura também o mais odiado cá dentro, justamente por isso.
A mediocridade nacional, sempre tão caseira, sempre tão dada ao despeito, não perdoa que alguém do nosso sangue ouse voar mais alto que o campanário da aldeia. Assim, tudo o que Ronaldo faz – ou deixa de fazer – é analisado com microscópio moral por uma turba que só encontra sentido na existência quando descobre um deslize, uma ausência, um gesto imperfeito.
A crítica à ausência de Ronaldo no funeral de Diogo Jota não é movida pelo amor ao falecido, nem sequer pelo culto da memória. É apenas o reflexo de um espírito do tempo doente, em que os mortos são usados como pretexto para julgar os vivos. A dor tornou-se espectáculo e o respeito, obrigação teatral. Quem não chora em público é cínico. Quem não publica homenagem é frio. Quem não se curva diante do caixão é insensível. E, paradoxalmente, os que gritam essa moral são os que não toleram o silêncio, que não aceitam que o tributo mais digno possa ser justamente a recusa da encenação.

Há algo de profundamente ignóbil nesta ética da comoção obrigatória. É uma espécie de necrofilia moral, onde a morte de alguém só serve para se devassar a vida dos outros. Ninguém sabe o que Ronaldo fez em privado, o que sentiu, se telefonou à família, se rezou em silêncio. E não tem de saber. Porque o luto não se presta a boletins nem a selfies. E, se ainda há alguma dignidade possível neste mundo em que a morte virou argumento de cliques, talvez seja essa: a de respeitar quem escolhe viver o pesar sem o partilhar com a turba.
Confesso, de resto, que não me agrada que o herói popular português por excelência seja um homem do entretenimento desportivo. Preferiria, por vocação e convicção, que esse papel estivesse reservado à ciência ou à literatura. Talvez alguém das Ciências, ou da História, ou um grande romancista, pudesse ocupar esse lugar simbólico.
Mas a realidade é o que é. E é inegável que Cristiano Ronaldo, com a sua personalidade determinada, a sua persistência de ferro e uma disciplina que muitos doutores invejariam, construiu um percurso admirável. Consolidou-se como um verdadeiro self made man, saído de um dos estratos mais humildes da sociedade para se afirmar, à escala global, como um dos homens mais reconhecidos e celebrados do nosso tempo. Subiu social e financeiramente, por mérito próprio, até ao topo de uma montanha onde poucos chegam. E por isso, perante o que conquistou e o que também perdeu – e não falo apenas de tempo e energia, mas de anonimato, de liberdade e da possibilidade de ser apenas um homem comum – talvez mereça, até, que se lhe perdoe algumas falhas.

Mas se falhas comete – como qualquer humano – não ir a um funeral não será, de forma alguma, uma delas. O funeral é, para quem vai, um acto de despedida, um rito pessoal. Para quem não vai, pode ser, igualmente, um gesto de recato, um respeito que prefere manter-se em silêncio. O que se vê aqui não é falta de compaixão. É a recusa de alimentar a máquina de voyeurismo que exige que tudo se torne espectáculo, até a dor.
Quem exige de Ronaldo um luto visível fá-lo não por respeito ao falecido, mas por gula emocional, por instinto de tribunal moral, por frustração mal disfarçada. Ronaldo, quer se goste ou não, continuará a viver como símbolo e projecção de uma ideia de sucesso que incomoda. E os seus críticos, esses, continuarão a usar cadáveres para julgar os vivos – o que, convenhamos, é infinitamente mais vil do que não aparecer num funeral.