REPORTAGEM DE BOŠTJAN VIDEMŠEK SOBRE OS 30 ANOS DO MAIS HORRÍVEL MASSACRE DA GUERRA DA BÓSNIA

‘Sei que sou a voz de Srebrenica. Não tenho o direito de me calar’

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Boštjan Videmšek|10/07/2025

“Pelos mortos e pelos vivos, devemos dar testemunho.

Elie Wiesel

Era 12 de Julho de 1995. Ao meio-dia, Saliha Osmanović, de 41 anos, enfrentava o calor avassalador em frente à antiga fábrica de acumuladores em Potočari, onde ela e milhares de mulheres e crianças tinham procurado refúgio no posto avançado de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU).

Na véspera, as forças sérvias invadiram a vizinha Srebrenica após um cerco prolongado. Embora a cidade tenha sido declarada uma Zona Segura pela ONU, os capacetes azuis não fizeram nenhum esforço para impedir o avanço sérvio.

No genocídio que se seguiu entre 11 e 20 de julho, pelo menos 8.372 homens e rapazes bósnios foram mortos. Entre eles estavam o marido de Saliha, Ramo, e seus dois filhos: Edin e Nermin. À data do homicídio, tinham respectivamente 18 e 19 anos.

Sarajevo. / Foto: Boštjan Videmšek

Depois de alcançar a multidão de refugiados em Potočari, Saliha estava exausta, aterrorizada e atormentada pelo luto. Cinco dias antes, um ataque de artilharia das forças sérvias lideradas pelo general Ratko Mladić matou seu filho mais novo, Edin. Quatro dias depois de o ter enterrado, Saliha fugiu de Srebrenica, acompanhada do marido Ramo e do filho mais velho, Nermin.

Ramo e Nermin optaram por se juntar aos milhares de homens bósnios adultos que, esperando o pior, partiram a pé em direção a Tuzla e à segurança proporcionada pelo exército da Bósnia-Herzegovina. Mais tarde, a sua viagem ficou conhecida como “a marcha da morte“.

Em Potočari, Saliha juntou-se a milhares de mulheres, crianças e idosos desesperados e completamente desorientados. Embora aterrorizada, a multidão reunida contava com a proteção da ONU. Nem mesmo os mais pessimistas poderiam imaginar que as estruturas de comando da ONU e da política externa euro-americana concederiam ao general Ratko Mladić liberdade para cometer genocídio. Nenhum dedo foi levantado para impedir Mladić de coordenar a carnificina com Slobodan Milošević e Radovan Karadžić.

A reacção dos capacetes azuis foi tão inexistente que Mladić conseguiu mesmo dirigir-se à multidão de refugiados em frente ao posto avançado da ONU. Dito de forma directa: o carniceiro foi autorizado a falar às suas vítimas.

Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

Foi assim que Saliha Osmanović se viu nas imediações do infame criminoso de guerra. Em 22 de Novembro de 2017, o Tribunal Penal Internacional de Haia condenou Mladić à prisão perpétua. No entanto, mesmo 30 anos depois daquele fatídico dia 12 de julho de 1995, Saliha ainda consegue recordar cada palavra do general e cada esgar no seu rosto marcado pelo suor.

“Éramos milhares em Potočari”, contou. “Após a nossa fuga de Srebrenica, foi como se tivéssemos sido transportados para o inferno. A situação era indescritível. As pessoas gritavam, os sérvios invadiam casas e matavam pessoas a torto e a direito… E, então, Ratko Mladić dirigiu-se a nós para nos dizer na cara que tinha o poder de nos destruir e que o presidente bósnio Alija Izetbegović não nos queria. Foi terrível. Ainda esperávamos que as forças de manutenção da paz holandesas nos protegessem. Mas, na noite seguinte, retiraram-se e entregaram-nos aos sérvios.”

Quando Srebrenica caiu, tudo o que Saliha podia desejar era não acordar no dia seguinte. Trinta anos depois, o seu sofrimento pouco diminuiu… tal como o seu desejo de morrer durante o sono.

Saliha Osamnović. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

Na manhã seguinte, os agressores sérvios carregaram as mulheres e crianças em camiões e autocarros em direcção aos territórios controlados pelo exército bósnio. Enquanto isso, o exército sérvio e as unidades paramilitares continuavam a matar homens e meninos bósnios na floresta ao redor de Srebrenica. Em pouco tempo, toda a zona foi transformada num matadouro.

Todos os diplomatas e observadores militares internacionais sabiam muito bem o que estava a acontecer no nordeste da Bósnia-Herzegovina. Pior ainda: tinham sido amplamente alertados para a calamidade que se aproximava. Os assassinos em massa, em fúria, sentiram pouca necessidade de esconder as suas intenções. Por isso, não é exagero dizer que a comunidade internacional assistiu ao genocídio como cúmplice passivo.

Quando as mulheres e crianças chegaram ao território controlado pela Bósnia, nada sabiam sobre o destino dos seus entes queridos deixados para trás. Durante a sua estadia em Puračić, perto de Lukavac, as esposas, mães e irmãs só podiam adivinhar o que tinha acontecido aos homens.

Alguns dias depois, uma gravação de TV foi mostrada aos sobreviventes. Foi do marido de Saliha, Ramo, que chamou os seus compatriotas – e especificamente o seu filho Nermin – para regressarem a Srebrenica. A gravação foi obviamente feita sob coacção. Sob a mira de uma arma, Ramo Osmanović garantia aos espectadores que Srebrenica era perfeitamente segura. Estava, na prática, a chamar o filho de volta para morrer.

Nessa altura, Saliha já tinha deixado o campo temporário e encontrado alojamento com um genro. “Trouxe-me um jornal com uma foto do meu marido”, recorda Saliha. “Quando vi a foto, o meu primeiro pensamento foi: Ele está vivo!!”

A última das suas esperanças morreu quando uma vizinha a convidou para um café, e ela ouviu a voz do marido na televisão da sala. “O meu Ramo estava a chamar o meu Nermin de volta…”, recorda, descrevendo o momento em que o seu medo se tornou absoluto. “Foi aí que tudo me ficou claro.”

Foi um dos momentos mais dolorosos da vida infinitamente dolorosa de Saliha Osmanović. Depois, tentou forçar-se a esperar contra a esperança… E continuou a fazê-lo até que os restos mortais de Ramo e Nermin foram encontrados em valas comuns.

Em 2008, Ramo foi localizado na vala comum Zeleni Jadar. Os restos mortais de Nermin foram encontrados em Snagovo.

Um ano depois, Saliha ajudou a enterrá-los juntos no complexo de cemitérios memoriais em Potočari, criado para homenagear as vítimas do massacre. Em 2015, o centro de Sarajevo ergueu uma estátua feita pelo artista bósnio Mensud Kečo – uma estátua que retrata Ramo chamando seu filho para voltar a Srebrenica.

Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

Dezasseis anos depois do reenterro de Ramo e Nermin, procurei as suas sepulturas no cemitério de Potočari.

Era um dia sombrio e nublado, pesado tanto para o corpo como para o espírito. As lápides brancas, marcando o local de descanso final de mais de 7000 vítimas do genocídio, permaneciam sem visitas. Funcionários do cemitério cortavam a relva. Alguns cães vadios de grande porte circulavam à volta do perímetro exterior do cemitério, não muito longe de onde agora vivem alguns dos perpetradores. Uma viatura da polícia da Republika Srpska (República Sérvia) estava estacionada em frente à entrada. Um grupo de turistas turcos apareceu e dirigiu-se aos túmulos mais recentes, mais acima no cemitério, apenas para começar a posar para as câmaras dos telemóveis.

Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

O encontro de Saliha com Ratko Mladić em Potočari valeu-lhe um convite do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia. Foi chamada a testemunhar contra o criminoso de guerra sérvio. Já tinha sido convocada antes para Haia, mas foi a primeira vez que conseguiu reunir forças para fazer a viagem.

“Quiseram atribuir-me o estatuto de testemunha protegida. Recusei imediatamente. Não precisava de protecção. Já não tinha medo. Já tinha perdido tudo. A minha consciência estava limpa, por isso podia andar pelo mundo de cabeça erguida. Disse-lhes que só aceitava testemunhar se me deixassem enfrentar Mladić”, contou Saliha, três décadas após o crime mais hediondo em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

“Veja”, — continuou ela: “Certa manhã acordei, fiz as minhas orações e preparei café… Só para me perguntar: Porque não ir ao tribunal de Haia e dizer a verdade?”

A sua assessora jurídica avisou-a de que a defesa de Mladić no tribunal seria provavelmente extremamente convincente. O advogado do comandante sérvio chegou mesmo a garantir ao tribunal que o seu cliente tinha visitado Potočari para distribuir pão, água e chocolate aos sobreviventes. O monstro foi apresentado como nada menos que um trabalhador humanitário.

“Mas todas as suas mentiras não conseguiram intimidar-me”, recordou Saliha. “Eu tinha uma missão, e apenas uma missão: dizer a verdade. Nada poderia ter-me impedido. Contei tudo ao tribunal.”

O objetivo de Saliha Osmanović era enfrentar cara a cara o carniceiro de Srebrenica. Achou revoltante que o general sérvio insistisse em desviar o olhar. A sua presença deixou-o visivelmente incomodado, ao ponto de ele fazer caretas durante o seu testemunho. “Eu conseguia ver o quão arrogante ele ainda era…”, estremeceu. “Por isso, perguntei-lhe se conseguia comer e dormir – se a consciência lhe pesava, de alguma forma, por ter assassinado todas aquelas pessoas. Sabe, às vezes ainda me pergunto o que terá dito aos seus mais próximos depois de regressar de Srebrenica. Ter-se-á vangloriado da quantidade de pessoas que matou?”

Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

“Antes da guerra, tínhamos uma vida feliz”, recordou Saliha. “O meu marido trabalhava em Belgrado, com viagens frequentes ao estrangeiro. Eu tinha o meu jardim, as minhas vacas e as minhas vitelas. As coisas corriam bem. Poder cuidar da minha família e da minha casa era tudo o que sempre quis. Mas tudo isso foi destruído… Só fiquei eu. É nisto que penso constantemente. Santo Deus, como é possível que eu ainda esteja viva enquanto os meus entes queridos desapareceram há 30 anos? Tudo o que cozinho, cozinho para eles – continuo a fazer os pratos de que mais gostavam. O cheiro faz-me lembrar a minha família. Mas eles já cá não estão.”

Saliha Osmanović vive numa modesta casa na aldeia de Dobrak, mesmo acima do verde rio Drina, perto da fronteira com a Sérvia. Tem agora 71 anos. Em 2009, decidiu regressar a Dobrak, que foi reduzida a cinzas pelas forças bósnio-sérvias a 8 de maio de 1992. Fez tudo ao seu alcance para restaurar a antiga casa, parcialmente arrasada pelos agressores.

Saliha foi uma das poucas mulheres de Srebrenica que optou por regressar ao local do crime e permanecer lá. Após o genocídio, Dobrak e as aldeias vizinhas foram colonizadas por sérvios. Entre eles contavam-se muitos que tinham participado directamente no assassínio em massa da população bósnia. Numerosos criminosos de guerra acabaram por ser recompensados com território.

Há muito que as bandeiras sérvias se tornaram a ordem do dia nas imediações das valas comuns bósnias. Mas muitas das casas aqui permanecem vazias – mesmo muitas das que não foram danificadas pela guerra. Toda a região de Podrinje e grandes partes do leste da Bósnia foram esvaziadas demograficamente. O mesmo vale para Srebrenica, cujo centro é completamente tranquilo, mesmo durante os dias mais movimentados do ano.

Hoje, Srebrenica é uma cidade de poucos pubs, todos vazios. É uma cidade sem emprego, onde ninguém quer viver. É, de facto, uma cidade morta. Apenas a sua estrutura desocupada tinha sido autorizada a perdurar. O seu nome pode ter entrado na consciência colectiva, pelo menos por um tempo… Mas esta distinção não solicitada custou à cidade de Srebrenica a sua essência, ou seja, a sua própria alma.

O seu povo.

Cemitério de Potočari, Memorial do Genocídio de Srebrenica. / Foto: Boštjan Videmšek

Durante o auge do cerco sérvio, em 1993, quase 50.000 pessoas passavam de alguma forma por Srebrenica, vivendo em casas bastante apertadas. A maioria deles eram refugiados que procuraram abrigo na antiga cidade mineira depois de as suas próprias cidades e aldeias terem sido etnicamente limpas pelos sérvios.

Durante o cerco, Saliha, o marido e os dois filhos partilharam uma casa com outros 60 refugiados. Ao longo dos três anos de bombardeamentos constantes, não havia electricidade nem água corrente. A casa só tinha uma única casa-de-banho.

“Foi horrível”, Saliha estremeceu ao recordar. “Todos nós, das aldeias vizinhas, fugimos para Srebrenica, enquanto eles tomavam conta das colinas para nos levar ao esquecimento. Muitos dos meus companheiros de sofrimento morreram durante esses anos. Nunca devemos esquecê-los. Nós também estávamos com muita fome. Não tínhamos nada. Quando os capacetes azuis entraram em Srebrenica, pensámos que estávamos salvos. Por um momento, deixamo-nos sentir algo semelhante à alegria. Mas foi mesmo o princípio do fim. Quão lamentavelmente falsas eram as nossas esperanças!”

As tropas holandesas de manutenção da paz da ONU abriram as portas para Ratko Mladić. / Foto: Boštjan Videmšek

Mesmo 30 anos depois, Saliha Osmanović passa uma parte substancial de cada dia a ponderar a natureza de alguém que pode assassinar em massa antigos vizinhos e colegas de escola a sangue frio, apenas para atirar os cadáveres para um poço e – se necessário – reenterrá-los em outro lugar para escapar à justiça.

Até agora, todas as suas reflexões renderam pouco que ela pudesse usar.

“Não”. Ela balançou a cabeça perto do final da minha visita. “Eu ainda não entendo. E acho que nunca entenderei.”

Fez uma breve pausa para reunir os pensamentos. Então continuou. O seu rosto pálido e enrugado parecendo um mapa topográfico da dor humana. “Mas o que aprendi é que não posso odiar. Eu nem saberia por onde começar. Não sei se isso é exactamente um privilégio… Mas o que aconteceu, aconteceu. O que algumas pessoas fizeram, elas fizeram. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.”

De alguma forma, Saliha foi capaz de adivinhar a minha próxima pergunta antes que ela fosse feita.

“Sim”, ela assentiu. “Mesmo depois de tanto sofrimento, a vida ainda é possível. Claro que é possível. Mas é uma vida sem alegria nenhuma.”

Saliha Osamnović a orar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

“A situação actual na minha aldeia e em toda a região de Podrinje é muito sombria. Eu acho que o que me tem salvo é que eu sempre tento manter uma abordagem activa. Passo muito tempo no jardim. As pessoas vêm visitar, e nós sentamo-nos à mesa – a mesma mesa onde eu costumava sentar-me com Ramo, Nermin e Edin. É tão difícil, filho…” Saliha confidenciou.

E prosseguiu: “É difícil sobreviver. Estou sozinha. Acordo sozinha e vou para a cama sozinha. Os vizinhos – os sérvios – deixam-me em paz. Às vezes, trocamos algumas palavras. Quando está a chover ou a nevar ou quando o sol de Verão bate, os meus pensamentos voltam-se para o meu povo. Todos os que foram assassinados. Não estou na minha melhor forma. A minha casa está localizada muito longe de tudo – da loja, da padaria, da farmácia, do médico … Mas eu continuo a insistir. O que mais posso fazer? Não faz sentido deitar-me numa sepultura aberta ainda em vida.”

Perguntei-lhe sobre quais eram os seus pensamentos e sentimentos 30 anos depois das atrocidades. Essas feridas podem curar-se um pouco?

“Todos os dias sinto dor”, respondeu. “Todos os dias. A dor é a minha única companheira, é o centro de mim. Os aniversários são os piores. Eu sempre me vou abaixo quando chega o dia 6 de Julho, a data em que meu filho mais novo, Edin, foi morto por uma granada sérvia… Ou 11 de Julho, quando o genocídio começou e quando Ramo e Nermin desapareceram. Estou a sofrer no corpo e na alma. A dor é difícil de descrever. Grande parte tem a ver com o facto de, com o mundo inteiro a assistir, a comunidade internacional nada ter feito.”

Saliha prefere evitar a maioria das comemorações e o dženaza (cerimónia fúnebre islâmica), o enterro anual das vítimas de genocídio identificadas desde o ano anterior. Ela acha essas provações muito desgastantes, especialmente quando acontecem no cemitério de Potočari. A cada mês de Julho, ela não consegue dormir ou comer durante dias a fio.

“Então, todas essas coisas aconteceram”, repetiu. “Mataram-nos. Não há nada que possamos fazer para mudar isso, para trazer alguém de volta. Você sabe, uma vez que você perdeu seus filhos, bem…”

Por um momento, as palavras abandonaram a mulher enlutada. “Não!” — disse ela. “Não, não gosto de ir a lado nenhum perto de Srebrenica. Se eu fizer isso, o meu nível de açúcar e a pressão arterial disparam para níveis muito perigosos. E tudo o que quero fazer é fugir.”

Cerimónia em memória do massacre de Srebrenica, em Julho de 2007 / Foto: D.R.

Se há uma coisa que esta corajosa bósnia se esforça por transmitir é que a história de Srebrenica precisa de ser contada e recontada. Saliha Osmanović sente que há um grande perigo de esquecer o genocídio, e o perigo aumenta com o passar de cada ano.

Assim, tal como testemunhou em Haia, continuará a testemunhar todos os dias durante o resto dos seus dias. Ela vê isso como o propósito de sua sobrevivência.

“Sabe o que é pior?” — questionou a certa altura. “Que o povo se foi. Tudo é diferente, tão escuro e vazio! Um grande número dos nossos mortos ainda nem sequer foi encontrado, que descansem em paz onde quer que estejam… Sabe, eu continuo a dizer a mim mesma: Se não houvesse mais guerra! Mas depois vejo o que está a acontecer em Gaza. O que é que as mães de lá podem dizer aos seus filhos quando os colocam na cama? É possível que, de alguma forma, não tenhamos aprendido nada?”

Na página do Centro Memorial de Srebrenica na Internet encontra-se uma secção através da qual os que ainda procuram familiares desaparecidos podem pedir apoio. / Foto: Captura de imagem do site do Centro Memorial de Srebrenica

Apesar de ter regressado a Srebrenica há décadas – aquele Verão assassino de 1995 foi a razão para dedicar grande parte da minha vida profissional à cobertura de vítimas de guerra – tive dificuldade em falar com Saliha. Mesmo durante a nossa primeira chamada telefónica, quando estávamos a organizar a minha visita às colinas acima de Srebrenica, fui atormentado por sentimentos de culpa. Parte disso tinha a ver com a noção de invadir o espaço pessoal sem ser convidado. No entanto, sentindo algo na minha voz, a minha anfitriã bósnia foi rápida em tranquilizar-me: “Você é sempre bem-vindo aqui, filho. A minha alma dói tanto que me faz bem falar sobre o que aconteceu. É o trabalho da minha vida. A minha missão. Falarei sobre o genocídio até ao meu último suspiro. Sabe, dói tanto ver a negação. Para mim, isso é quase impossível de suportar. O quê, todos nós aqui simplesmente nos matamos?!”

Mulher bósnia segura foto de familiar. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

Disse-me, mais tarde: “Antes de acontecer, não conseguíamos imaginar tamanho terror. O meu Ramo trabalhava em Belgrado. Era um engenheiro cujo trabalho também o levou à Tunísia e à Líbia. No início de maio de 1992, cerca de um mês após o início da guerra na Bósnia, regressou a casa. Ele foi capaz de chegar a Dobrak com seu próprio carro, sem dificuldades reais. Havia muito trabalho a ser feito na quinta. Ele disse-se: ‘Saliha, meu amor… Eu posso sentir que algo está a formar-se. “Ele tinha uma sensação muito má sobre tudo isso. E então começou.”

Quando a aldeia foi atingida pelas primeiras granadas sérvias, enquanto tiros eram disparados do outro lado do rio Drina, a família Osmanović foi forçada a fugir. “Caso contrário, ter-nos-iam matado a todos”, recorda Saliha. “Tivemos que deixar tudo para trás. Nós, de alguma forma, empurrámos até Srebrenica. O que se seguiu foram três anos de derramamento de sangue constante e sofrimento sem fim. E então veio Julho de 1995. Fizeram o que fizeram. Não sei, filho. Eu nunca vou entender.”

Eu nunca vou entender. Esta é, de longe, a sua declaração mais frequente.

Na preservação da memória do massacre, o Centro Memorial de Srebrenica tem um arquivo com fotos. Na imagem, uma pessoa segura uma foto de um dos locais onde foi encontrada uma vala comum com os restos mortais de vítimas do massacre. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

Cada vez que Saliha Osmanović descrevia a tragédia de Srebrenica, parecia que a estava a descrever pela primeira vez. A cada relato, ela desabava em lágrimas. Era como se o seu relógio pessoal tivesse parado naquele Verão sufocante há 30 anos.

Tudo o que veio em seu rastro foi apenas uma extensão do horror final.

O resultado nunca mudará.

Mais de 6.000 participantes embarcaram no passado dia 8 de Julho numa viagem de mais de 100 quilómetros – Marcha da Paz -, como parte da memória do 30º aniversário do genocídio dos bósnios em Srebrenica e arredores. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

Ao longo da minha visita, passei muito tempo a questionar-me como era possível sobreviver a tais atrocidades e agarrar-me à própria humanidade. Como é possível que Saliha, que perdeu o pai aos dois anos e cresceu na pobreza, não sentisse ódio, nem sede de vingança?

O que, se alguma coisa, a manteve? Como é que ela conseguiu enfrentar o amanhecer de cada novo dia? A morte estava frequentemente na sua mente?

“A dor e a tristeza é algo com que tive de aprender a viver”, respondeu. “Estou longe de ser a única. E não é como se eu pudesse simplesmente desistir e desaparecer. No entanto, tenho de admitir que, cada vez que me deito para descansar, ainda espero não acordar. Fui ao hospital em Tuzla duas vezes. Estive muito doente… Mas, de alguma forma, ainda não consegui morrer.”

Acreditava que era o seu jardim que a mantinha em funcionamento. “Oh, eu simplesmente amo os meus tomates, cebolas, cenouras, batatas e alho …”

Saliha Osmanović parece ter feito uma paz precária com o facto de ter sido a voz de milhares de seres humanos assassinados. “Sei que sou a voz do Ramo, do Edin e do Nermin”, explicou. “A voz de Srebrenica. O que significa que não tenho o direito de me calar. O livro da minha vida está sempre aberto. O que aconteceu com sempre permanece dentro de mim. Serei sempre uma mãe cujos filhos foram abatidos e cujo marido foi levado. Srebrenica continua a arranhar-me no meu âmago. Eu só posso descansar com a ajuda de comprimidos para dormir. Especialmente agora, quando a situação na Bósnia está mais uma vez em ebulição de tensão”.

A sua linha de pensamento foi rápida a mudar do passado para o presente. Na Bósnia, a distância entre agora e então nunca é muito grande.

Os negacionistas do genocídio e outros tipos de chauvinistas estão cada vez mais audíveis. Em 2021, a Bósnia tornou crime punível negar o que aconteceu em Srebrenica. No entanto, as autoridades da República Srpska estão agora a negá-lo todos os dias – impunemente e com o total apoio de Belgrado e Moscovo.

Os monstros estão cada vez mais fortes. Local, regional e globalmente.

Mirela Osmanovi, representante do Centro Memorial de Srebrenica e membro da família das vítimas do genocídio, discursou, no dia 8 de Julho, perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas numa sessão para marcar o 30º aniversário do genocídio de Srebrenica. / Foto: Centro Memorial de Srebrenica

“Raramente vejo televisão. Mas quando o faço, e quando Milorad Dodik aparece, sou imediatamente transportada para aquela terrível atmosfera odiosa dos anos 90”, disse Saliha Osmanović à medida que a nossa despedida se aproximava.

“E a situação do outro lado do rio Drina é a mesma”, elaborou. “Depois de todos estes anos, não sei como é que isto poderia ter acontecido. Não aprendemos nada? Alguns meses atrás, tive um grande susto. Tive a terrível sensação de que algo estava prestes a acontecer novamente. Que os tiros estavam prestes a ser disparados. Eu fiz uma única mala de viagem. Ainda não a desfiz. Ainda está à espera no corredor, por precaução.”

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