CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS
O sacrossanto direito de ofender a Joana Marques

Há quem diga — com o ar compenetrado de quem costuma pensar pouco — que a morte é o único nivelador universal. Tolice. Também o ridículo nos nivela, e fá-lo de modo mais cruel, pois apanha-nos vivos, desprotegidos e em calças. A morte pode ser serena, gloriosa, até poética. O ridículo, nunca — ele humilha; ele abate; ele rebaixa, desde o barão até ao sapateiro, desde o magistrado até ao moleque, desde o rei até ao súbdito; desde o nepalês até ao André Ventura. E tudo isso sem recurso a decreto régio, nem a lei parlamentar nem a missa de corpo presente.
Vede, nos meus tempos, o caso do Conselheiro Alvarenga, homem de letras, sócio correspondente da Sociedade Patriótica Lusitana e amigo íntimo do padre Lopes da Fonseca. Foi apanhado, numa recepção do Marquês de Maricá, a extrair uma secreção nasal com o dedo indicador e a disfarçá-la, com gesto dissimulado, sob a toalha de damasco da mesa dos doces. Ora, um criado viu, riu, e o riso do criado propagou-se como cólera pelas criadas, pelos fâmulos e, por fim, pelos cavalheiros — e nunca mais o Conselheiro foi levado a sério, mesmo quando recitava Cícero com lágrimas nos olhos.

Ou então o caso ainda do Capitão Saldanha de Meneses, homem dado ao sabre e às musas, que escorregou no salão do Real Clube Fluminense, ao tentar dançar um minuete com D. Emerenciana de Vasconcelos. Não só caiu, como arrastou consigo o estojo do violoncelo, a flâmula imperial e o criado de libré que carregava o ponche. A sua espada, nessa ocasião, enfiou-se de viés na almofada de uma senhora viúva, o que levou muitos a julgar que fosse uma metáfora obscena. Foi preciso uma semana de recolhimento e um artigo laudatório no Correio Mercantil para restauração da honra — e nem toda foi.
Mas o ridículo, como já disse, não respeita hierarquias. Também o pobre é seu alvo, e com igual pontaria. O senhor Inácio, pasteleiro da Rua dos Ourives, homem de feições melancólicas e chapéu gasto, foi surpreendido pela própria filha, em plena madrugada, a ensaiar um discurso à frente do espelho, onde se proclamava herdeiro legítimo de uma fortuna escondida por um bisavô aventureiro na Guiné. Tinha por testemunhas três gatos, um lampião e a criada de quarto que ouvira tudo e contou à freguesia no dia seguinte. Durante semanas, ao comprar açúcar, os clientes perguntavam-lhe se queria que lhe pagassem em pó ou em barras de ouro.
E não esqueçamos — embora me cause rubor até na eternidade — o episódio que me coube, quando ainda tinha carnes e calças. Estava eu, moço estudante, a deambular pelas arcadas do Colégio das Artes, em Coimbra, quando fui interpelado por um velho conhecido: o Pinto Ramires, que nunca soubera guardar segredo nem vinho. Vinha ébrio, suado e risonho, e em plena Rua Direita, entre uma modista e um estalajadeiro, bradou: — “Brás, lembras-te da noite em que recitaste versos a D. Genuína com as calças trocadas, as tuas por um fraque de barbeiro?” O povo riu. Eu corri. O Ramires, que depois se tornou alferes, continuou, dizendo que depois, na confusão, eu teria oferecido um anel à criada pensando que era à patroa — e ainda a beijei com tanto ardor que fiquei prometido.

Em suma, minha resguardadas donzelas e recatados cavalheiros, o ridículo é mais versado que o Diabo e mais democrático que a vossa Revolução dos Cravos. Apanha-nos sem luvas, sem discurso, sem rede. E quando nos atinge, não resta senão baixar a cabeça ou rir de nós próprios — o que, convenhamos, é o único antídoto possível para a desgraça do ridículo.
Ora, eu — falecido, mas não vencido —, escrevo imune já ao ridículo, com a distância crítica de quem já não deve nada ao mundo dos vivos, mas ainda se diverte com a patetice dos que nele persistem. E se há coisa que o século XXI me tem oferecido, à distância confortavelmente metafísica da eternidade, é um novo tipo de criatura: o humorista ridículo que se ofende com a ofensa dos outros, e que se escandaliza quando o sarcasmo, como bumerangue, quase lhe acerta na moleirinha.
Disserto, na verdade, sobre um assunto que me chegou aos ouvidos espectrais: o rumor de um julgamento em Lisboa, no qual uma certa Joana Marques, humorista de profissão (ou de distração pública, o que vai dando no mesmo), se sentou no banco dos réus por meter ao ridículo um dueto de músicos desafinados por natureza, mas cuja actuação foi agravada por problemas técnicos e um palco montado sobre o barro da vaidade.

Até aqui tudo se inscreve nos anais do trivial moderno — onde o escárnio se distribui como folhetim de esquina e a troça serve de moeda corrente —, mas fiquei deliciosamente perplexo, quiçá maravilhado com uma nota de assombro grego, com a sua defesa posta como máxima: “Humor que não ofende não existe. Prefiro viver num mundo em que exista humor e eu me ofenda muito, é mais saudável.”
Com tal divisa, Joana apresentou-se à sociedade como uma mártir do sarcasmo, uma Joana d’Arc dos podcasts, empunhando o microfone em vez da espada e montada não num corcel, mas numa indignação selectiva com amplificação Wi-Fi.
Aceito, pois, o repto, e parto para a ofensiva. Afinal, quem se oferece como sacrifício em nome do riso, não pode queixar-se do altar.
Vamos a isto.
Joana Marques, de estatura modesta e volume afirmativo, não seria matéria de nota se não passasse a vida a comentar os corpos, as vozes, os modos, os gestos, os tiques e os trajes. Ainda mais tratando-se de uma pessoa que mistura o estilo de professora de Educação Visual e Tecnológica dos anos noventa com a de uma estilista de sarcasmo reciclado, compondo uma estética entre o intencionalmente descuidado e o acidentalmente desastroso. Mas tudo isso, por si, seria apenas cor local, se não viesse empacotado com o zelo missionário da comédia.

Assisti a alguns dos seus podcasts. A sua voz — essa tragédia auditiva de frequência naso-vibrante — não anuncia revoluções, mas microfonias. Lembra um alarme em fim de vida ou um grilo asmático em protesto. E, no entanto, com ela se afirmam dogmas: que o humor pode tudo, que o riso justifica tudo, que a ironia é sacramento.
Muito bem. Eu sigo o culto. Avancemos para a liturgia.
Eu, que zombei da própria morte e fiz do epitáfio uma gargalhada, nunca me impressionei com quem se anuncia herdeiro da troça, mas herda apenas o medo do ridículo. Há, nos tempos modernos, uma nova espécie de bobo – e Joana Marques é uma sacerdotisa: o bobo de contrato, com salário fixo, podcast afinado e coluna humorística em horário de expediente. Por regra, a sua coragem mede-se pela conveniência do patrão.
Deste modo, hoje, em Portugal, noto que reina um estranho pudor selectivo no humor dito livre. Veja-se como certas piadas se evaporam misteriosamente quando poderiam tocar no altar dos financiadores — como se a sátira, em vez de vara de castigo, se tornasse hissope cerimonial. Por exemplo, no caso da Joana Marques, confesso que esperei — com o entusiasmo piedoso de um sacristão a anunciar as matinas — pelo seu sarcasmo após a selfie do senhor Dom Américo Aguiar, cardeal de Setúbal, ladeado por dois comparsas no Vaticano, sorridentes, com o ar de quem ignorava que Sua Santidade mal acabara de entregar o espírito.

Mas não mereceu sátira. Faltou espaço? Ou seria apenas… imprudente?
Da Renascença, por onde ecoam as graças radiodifundidas da nossa protagonista, não se escarnece da mão que benze o cheque. A reverência mediática, como a hóstia, dissolve-se em silêncio de boca cerrada e língua recolhida.
Tampouco brinca ela — e penso que menos por pudor e mais por conveniência — com os espectáculos devocionais das missas, onde as vozes fervorosas dos fiéis — algumas já deformadas por décadas de zelo e nicotina — se elevam em aleluias dissonantes, ora em falsete de cana rachada, ora em graves de fundura cavernosa, como se o próprio Senhor estivesse a ser invocado por uma junta de bois constipados. Os coros — não os dos Anjos, mas os paroquiais — gemem como dobradiças de sacristia húmida, e os órgãos electrónicos, herdeiros ilegítimos de Bach, esganiçam-se em hinos que fariam tremer qualquer santo que tivesse ouvido. E nem uma piada. Nada.

Ademais, nenhuma sátira sobre a anciã de véu bordado que entoa o Magnificat como quem despeja água fervente sobre um gato. Nenhuma palavra sobre o diácono que canta como se tivesse engolido um ramal de tubos de cobre. Nem um gracejo piedoso sobre o padre que tropeça nos tons como se estatela nas páginas do missal.
Ah, e zombar do padre glutão — que, entre duas confissões e três rabanadas, declara guerra ao pecado da gula — isso ainda seria mais arriscado, uma heresia. Ou mesmo motivo para excomunhão, além de despedimento por justa causa – ou, para se entender em Roma: dimissio ex iusta causa. E que dizer do senhor bispo que, cercado de coches e reverências, exorta à humildade evangélica enquanto viaja em viatura de alta cilindrada com motorista e ar-condicionado celeste? Ora, nada! Nem uma risadinha. A sátira, quando se aproxima dos domínios do incenso eclesiástico, retrai-se como freira em cabaré.
Resta-nos, pois, o humor obediente, como o da Joana Marques. Aquele que brinca com o que já está caído, que fustiga o influencer sem comenda, o artista sem verbas, o outsider sem público, mas que se ajoelha perante os púlpitos dourados da fé subsidiada. Fazer rir, em Portugal, ainda é permitido — mas só se for para o lado certo do altar. Uma pedra de ara ainda impõe respeito. E os comediantes da Corte, como Joana Marques, gozam comedidamente, entre genuflexões, microfones e subsídios, como quem beija a mão e cospe para o chão — mas só quando ninguém vê.

Mas o silêncio de Joana Marques torna-se mesmo teológico quando se trata do eterno pequeno-grande dogma: o da mulher como criatura de segunda fornada para a Igreja Católica, moldada da costela alheia e condenada a eternidade de subalternidade. A piada fácil sobre Eva querer a maçã por gula, ou sobre Maria Madalena lavar pés masculinos com os cabelos como modelo de virtude feminina, nunca me apareceu nos podcasts desta criatura de estatura sumida e volume afirmativo, que se desloca como quem desafia as leis da física e da estética, deixando atrás de si um rasto de doces e opinião rotunda — se o culto e a liturgia é para ofender, Joana Marques dixit, ofenda-se.
Nunca ela gracejou — mesmo que em tom levemente agnóstico — com o facto de, dois milénios volvidos, a Igreja ainda ver a mulher como ente liturgicamente decorativo: permitida no coro, admitida na arrumação de cadeiras, mas nunca no altar. Nada de sátira ao facto de, para o Vaticano, uma mulher poder ser santa, mártir, vidente ou dona de casa, mas jamais cardeal — a não ser, claro, por milagre de mudança cromossómica. Nunca se troçou da linguagem pastoral em que a mulher é sempre “esposa”, “mãe”, “serva”, “rosácea espiritual”, ou no máximo “ornamento da Criação”.
E, se algum dia uma bispa surgir numa homilia, será certamente num sketch apócrifo. Porque enquanto se zomba dos desfiles da moda, ninguém se atreve a rir dos desfiles litúrgicos em que o incenso vale mais do que qualquer voz feminina.
O humor dito livre, defendido pela Joana Marques, afinal, sabe muito bem até onde pode ir. E ainda assim — ou talvez por isso mesmo — há quem clame que o humor deve sempre ser sacrossantamente livre. E é. Livre para ser inofensivo. Livre para rir dos que não têm púlpito, mas calar diante dos que têm sacrário. Livre para incomodar os que não respondem nem com microfone nem com orçamento. Livre para ser, no fundo, aquilo que dantes chamávamos de capacho com piada.
Posto isto, se o humor quer ser livre para ofender, então que aceite também ser alvo. Pois o seu pecado hodierno não é ser mordaz, é ser manso com os fortes e feroz com os fracos. Em suma, o seu pecado é a previsibilidade. É já ser um humor de recreio: faz troça do penteado do pobre, do casaco do gordo e do sotaque da estrangeira. Mas ao director de informação, nem um suspiro. Ao cardeal, nem uma careta. À ministra, nem uma alusão.
E assim se aceita este humor: um humor domesticado como cão de colo episcopal. Um deboche com auréola. Uma irreverência sob vigilância.

E eu, Brás Cubas, que fiz da existência um pretexto para ironizar o mundo, não posso senão levantar o copo — ou a pena — a esta comédia triste que se leva demasiado a sério. Brindo, pois, com sarcasmo gélido e fervorosa ofensa, a todos os que se julgam livres enquanto obedecem. E a ti, Joana, deixo a hóstia da ironia: consome-a com fé. Mas lembra-te — o altar também pode ser patíbulo.
Adeus, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.