CONCERTO DOS MUSE
Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.
Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.

Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.
Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).
No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.

Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.
Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.
Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.

Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.
Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.
Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.

O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.
Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.
Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”

Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.
Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.
Nota final: 5 em 5.
Fotografias: Matilde Fieschi / Everything is New