CRÓNICAS DO HEMICICLO

Do café a 40 cêntimos até Montenegro a citar Saramago (sem saber)

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Pedro Almeida Vieira|17/07/2025

Em 2001, salvo erro — e com a humildade própria de quem aceita errar um ou outro ano —, escrevi uma análise sobre o estado do país em diversos sectores para a já saudosa Grande Reportagem. Intitulei-a, com toda a justeza e sentido premonitório, ‘O Estrago da Nação’, prescindindo deliberadamente da enfadonha e rotineira expressão “O Estado da Nação”. Mais tarde, reciclei o título para um livro, em 2003 — e hoje sobrevive como denominação de um podcast do PÁGINA UM. Afinal, há designações que perduram porque se colam à realidade como resina.

Duas décadas depois, predispus-me, mais por curiosidade antropológica do que por dever de ofício, a assistir ao verdadeiro “Estado da Nação”, essa encenação parlamentar revestida de solenidade, em que os deputados fingem debater o país como se não tivessem nada a ver com o seu estado.

Não era, pois, com expectativa noticiosa que me sentava, mas numa função de observação sociológica: nunca acreditei — nem por um segundo — que, num par de horas, os nossos representantes fossem capazes de dissecar, com seriedade e substância, o verdadeiro estado da pátria. Mas há ritual. Há solenidade. Há espetáculo. Mesmo sem novidade, há espetáculo. E, mesmo sem a esperança de encontrar lucidez, ali estava eu, qual entomólogo do hemiciclo.

Nutro há muito uma convicção (partilhada por muitos, receio): os políticos, em regra, são incapazes de produzir diagnósticos acertados sobre o país porque vivem dele apartados. Desconhecem os ritmos e agruras da vida quotidiana. Habitam, por assim dizer, numa outra galáxia. Isso talvez explique, por exemplo, que se sirvam de uma bica a 40 cêntimos — metade do que custa fora do Olimpo parlamentar, no mundo onde vivem os comuns mortais.

Talvez seja esta a forma expedita de complementarem vencimentos que consideram modestos: vivendo abaixo do custo real da vida. A austeridade, pelos vistos, começa no bar da Assembleia.

Feito este introito, bastaram-me poucos minutos — ou melhor, bastou-me o discurso inicial do primeiro-ministro — para encontrar o mote desta crónica. Luís Montenegro brindou-nos, num discurso inaugural, com um idílio político digno de arcádia: elogiou a sua governação, clamou por estabilidade, prometeu reduções fiscais em catadupa e, já num tom náutico de retórica camoniana, resolveu terminar com uma tirada de impacto. “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”, anunciou altitonante.

E, com convicção de quem crê citar Homero, atribuiu-a a Sophia de Mello Breyner Andresen. Fica sempre bem citar uma poeta. Mesmo tendo sido (brevemente) deputada (na Constituinte) do Partido Socialista.

Acontece, porém, que a frase não é de Sophia, mas de outro português, mas assumidamente comunista: José Saramago, que a escreveu em 1994 nos Cadernos de Lanzarote. O episódio é revelador do estado real da nossa governação: o primeiro-ministro — que, presumo, terá assessores cultos e diligentes — não só ignora a autoria da frase como, pior ainda, nem sequer compreendeu o seu significado completo. Porque a frase, que Montenegro repetiu com ar de estadista grave, prossegue com algo ainda mais inquietante: “Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”

Ora, se é verdade que Montenegro demonstrou não ter memória — ao atribuir mal a citação —, e se também falhou na responsabilidade — ao não corrigir o erro nem reconhecer a ignorância —, resta a inquietante conclusão de que a sua existência política é, no mínimo, um equívoco ontológico.

Mas o mais patético — sim, que não encontro palavra mais branda — foi ver a plateia parlamentar a reverberar a asneira. Falou André Ventura, falou Hugo Soares, falou Carneiro pelo PS, e o nome de Sophia continuou a bailar entre discursos. As bancadas do PS e do Chega andaram entretanto às turras com a coreografia habitual. Desta vez, Aguiar-Branco teve de arbitrar sobre se ‘frouxo’ e ‘fanfarrão’ são termos ofensivos. Só depois de o PÁGINA UM ter assinalado a gafe (ou ignorância) às 15h49 nas redes sociais (se calhar houve quem identificou antes) é que o deputado do Livre, Rui Tavares, tentou, já fora do plenário, repor a verdade, esclarecendo que a frase era de Saramago.

Mas já era tarde. Ninguém percebeu — ou pelo menos, o Público não entendeu patavina: a jornalista Ana Bacelar Begonha escreveu que Rui Tavares “lembr[ou] uma frase de José Saramago (a que Montenegro citara e atribuíra erradamente a Sophia) e, num rasgo digno de crónica de costumes, indicou que foi o deputado do Livre a dizer que “sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”, como se fosse ele o autor do aforismo saramaguiano. Este jornalismo – a quem falta também memória e sobra ligeireza – também é um sinal do Estado da Nação.

Aguentei estoicamente até às 19h20, escrevendo esta crónica ao som intermitente dos discursos de dois minutos (por vezes de cinco), enquanto o Governo escutava em silêncio, pois Montenegro esgotou rapidamente o seu tempo. E no final, aquilo que mais me chamou a atenção não foram os argumentos, mas o cenário: a bancada socialista a meio-gás — como quem acha que tem lugares a mais — e o Chega a ocupar com disciplina o espaço da Oposição, com Ventura a saber gerir o cronómetro e a acabar o debate com mais tempo do que qualquer outro partido para ‘brilhar’ no fim. Os outros partidos, esses quase não contaram, sobretudo os pequenos partidos (BE, PAN e JPP) que tiveram apenas cinco minutos.

Conclusão: se isto a que eu assisti foi o Estado da Nação, continuarei a preferir o Estrago da Nação. Sempre me parece termo mais exacto. E mais honesto.

Adenda às 20h03: O ministro dos Assuntos Parlamentares, Carlos Abreu Amorim, no discurso final, voltou à carga da asnice, relembrando a frase apócrifa de Sophia dita por Montenegro, e ainda conseguiu ser pior. Armado em literato, relembrou o célebre “Minha pátria é a língua portugueses” (acertando, vá lá, no autor), e proclamou ufano: “Eu sou Pessoa; eu sou Sophia; eu sou Camões; eu sou Natália Correia; eu sou António Nobre; eu sou Florbela Espanca”. Só lhe faltou dizer “eu sou Saramago”, o autor do aforismo usado por Montenegro. E talvez também confessar: “Eu sou burro”. A estultícia, com efeito, tomou conta da Nação!

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