GEOGRAFIA DAS PEQUENAS VERGONHAS: LITUÂNIA
República de Užupis: não subjugues, não te vingues, não traduzas para português

Num mundo em complexa alteração, em que as ideologias se fundiram ou confundiram, até eu, confesso, ando confuso. Dou por mim cada vez mais órfão de ideologias, não porque me tenham faltado convicções, mas porque todas elas me parecem agora atraiçoadas. Vemos partidos da extrema-esquerda a despedir lactantes e partidos da extrema-direita a comportarem-se como adolescentes malcriados que dizem detestar o sistema, mas anseiam por meter-lhe a mão nos bolsos — ou nos cofres. É o velho jogo da moral: muito indignado por fora, muito tentado por dentro.
E assim me vejo cada vez mais liberal de valores, adepto intransigente da liberdade de expressão e do debate de ideias. Sim, debate. Discussão. Contradição. Porque é a discutir — e não a dizer sim com ar meigo — que se afia o espírito e se limpa a ferrugem da razão. Na fricção de ideias e argumentos — e não no conforto das unanimidades fingidas.

De resto, vejo-me cada vez mais defensor não do país — que esse, na verdade, não merece os políticos que escolheu — mas da língua. Como escreveu Fernando Pessoa, “a minha Pátria é a língua portuguesa”. E é essa Pátria que levo comigo, quando viajo. ↓
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Por isso, chateia-me solenemente quando vejo os nossos representantes, em vez de cuidarem da língua, envergonharem-se dela. E chateia-me mais ainda quando, com essa indiferença, deixam que ela seja menosprezada em palco internacional. Veja-se o que sucedeu na Expo de Osaka, onde a AICEP — instituição que já se esqueceu do “P” de Portugal — achou que não valia a pena incluir legendas em português numa parte essencial do pavilhão nacional. Entre o japonês e o inglês, a nossa língua ficou no porão. Provavelmente acham que os turistas brasileiros que apreciam Murakami falam ‘japa’.
Ora, por estes dias, percorrendo os Países Bálticos — um sonho antigo que finalmente concretizei, embora em espírito de saltimbanco —, e chegado a Vilnius, deparei-me com outro caso de desatenção diplomática. Sim, poderá parecer uma coisa menor, irrelevante, simbólica, mas nestas minudências é que se vê o que vale uma cultura: o que defende, o que ignora, o que esquece.

Na bela capital da Lituânia — cidade de cúpulas barrocas, ruas empedradas e onde todos falam inglês melhor que muitos ministros portugueses —, existe um lugar insólito, poético e rebelde: a República de Užupis. Um antigo bairro marginal, virado para o pequeno rio Vilnia — quase na confluência com o Neris —, que um grupo de artistas e boémios autoproclamou independente a 1 de Abril de 1998. E não foi uma partida, ainda que tenha graça: têm “presidente”, “governo”, “Ministério da Arte”, hino, bandeira e uma Constituição. E sim, não têm exército — porque, como dizem, “não temos inimigos”.
Este microcosmo de criatividade e resistência é hoje um símbolo turístico, mas também uma ode à liberdade. Um território onde se cruzam ironia e utopia, humor e seriedade. A Constituição de Užupis, afixada em placas metálicas ao longo de um muro, tem 41 artigos, com a particularidade de 36 começarem com a palavra lituana Žmogus, que significa homem (no sentido de ser humano).
Alguns destes artigos são profundamente filosóficos, outros deliciosamente absurdos. Exemplos? “Todos têm o direito de morrer, mas isso não é obrigação.” Ou “Ninguém tem o direito de ter um plano para a eternidade.” Ou “Um cão tem o direito de ser um cão”, seguido de “Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudar em tempos de necessidade.” Ou ainda: “Todos têm o direito de compreender”, seguido de “Todos têm o direito de nada compreender.” Ou, os três últimos: “Não subjugues.”; “Não te vingues.”; “Não te rendas.”

Pois bem, percorri essa parede seis vezes na rua Paupio. Uma, para ler. Duas, para contar. Três, para confirmar que os meus olhos não me traíam. A Constituição está em lituano e traduzida para 43 línguas. Entre essas, as óbvias: inglês, francês, mandarim, espanhol e árabe — mas também o alemão, o esperanto, o hebraico, o finlandês, o norueguês e até o javanês. E português? Nada. Nem português de Portugal, nem português do Brasil, nem sequer uma aproximação em crioulo ou mirandês. Nanja.
Ora, o português é a oitava língua mais falada do mundo, com mais de 265 milhões de falantes — mais do que o russo — e é uma das quatro com maior expansão geográfica. Não é um dialecto extinto dos Himalaias. E a Lituânia não é propriamente a Cochinchina — é, dizem-me, um parceiro europeu, membro da União Europeia, com quem partilhamos fundos e regulamentos. Como é possível, pergunto-me, que ao fim de quase três décadas, ninguém tenha notado — ou se tenha importado — com esta ausência? Será que os nossos diplomatas andam todos de olhos postos em Bruxelas, incapazes de ver para além da mesa do buffet da embaixada?
Procurei, por isso, a Embaixada de Portugal na Lituânia. E, surpresa: não há. A embaixada mais próxima é em Copenhaga, que representa os interesses lusitanos naquele país báltico. Sim, Copenhaga. De facto, faz sentido: é só atravessar o Mar Báltico, numa recta de 600 quilómetros, e estamos lá. Se um português se sentir perdido em Vilnius, pode sempre gritar por socorro e esperar que o eco chegue à Dinamarca. Parece que não é caso isolado. A Letónia também não tem embaixador português: as ‘coisas’ são tratadas pela Embaixada na Suécia. E situação similar sucede com a Estónia, que é ‘despachada’ pelo embaixador português em Helsínquia.

Mas calma, não desesperemos. Portugal está representado na Lituânia por um cônsul honorário. O senhor Dalius Raškinis, de Kaunas, cidade a cerca de 100 quilómetros da capital. Não descortinei a sua ligação ao nosso país, mas presumo que tenha provado pastel de nata numa viagem de negócios e se tenha apaixonado. Como é costume nestas nomeações, o critério não é ser português, nem falar português, nem sequer conhecer a Constituição da República Portuguesa. Basta conhecer alguém na AICEP, talvez.
Tudo isto — a ausência, o desinteresse, a invisibilidade — explica por que continuamos ausentes de lugares onde devíamos estar, nem que fosse por símbolo. A República de Užupis é uma invenção poética, sim, mas é também um espelho: ali celebram-se línguas, culturas e liberdades. E a nossa não está lá.

Um povo que outrora foi aos quatro cantos do mundo, que deixou marcas na Ásia, em África, na América do Sul, que levou a sua língua a tantas latitudes, vê-se agora excluído de um muro onde até os islandeses têm um artigo.
Isto não é apenas embaraçoso — é vergonhoso. E mais do que isso: é revelador. Não é apenas uma questão de tradução — é uma questão de identidade; uma questão de zelo; uma questão de presença no mundo. E, enquanto andamos distraídos a discutir quotas de género em conferências sobre inovação digital, deixamos passar o essencial: a nossa língua, que é a nossa Pátria, vai-se apagando aos poucos — e com o beneplácito resignado de quem devia defendê-la.
Antes de seguir para Riga, ainda escrevi ao Presidente de Užupis, Romas Lileikis, pedindo que me explicasse, por obséquio, o motivo de não estar presente o português. Aguardo resposta. E fica a promessa: pago o acrílico com a tradução do meu próprio bolso, se houver autorização para afixar a Constituição em português — e marco voo para nova visita, cuidando, desta vez, de levar o carregador do portátil, para não ter de perder umas horas (e 30 euros) à procura de uma loja…