ACÇÕES DE MARKETING SUCEDEM-SE

Bordalo II ‘vende’ Lisboa enquanto não pára de fazer fortuna a vender arte a autarcas de norte a sul

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Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira|08/08/2025

É um déjà vu, que começa a ficar estafado. O artista Bordalo II — nome artístico de Artur Bordalo — está de novo nas notícias e é assunto nas redes sociais. Dois anos depois da polémica que criou com uma instalação artística nas Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), este ano o artista de projecção internacional já ‘atacou’ na capital com bons efeitos de marketing: em Maio com um tabuleiro do Monopólio, alegadamente uma ideia plagiada, e ontem instalou um ‘banner‘ no Cais das Colunas que simula um anúncio imobiliário, com a inscrição “Vende-se Lisboa“.

A obra será uma crítica à crise na habitação que tem afligido a capital, mas que tem gerado um disparar de preços das casas e das rendas por todo o país. O artista já tinha colocado, em Maio, um jogo do Monopólio na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, também como crítica à crise na habitação.

O artista Bordalo II instalou um ‘banner’ no Cais das Colunas em Lisboa a simular um anúncio de da conhecida rede imobiliária Remax. / Foto: D.R. | Bordalo II.

Agora, numa publicação nas redes sociais, Bordalo II colocou as imagens do ‘banner‘que instalou no Cais das Colunas acompanhadas de um texto que simula um anúncio, com frases como: “Uma oportunidade de sonho numa cidade onde a maioria nem pode sonhar em viver”. Saliente-se que Bordalo II não está incluído nessa maioria, porque viverá na capital: a sede da Mundo Frenético, na zona de Marvila, é uma moradia unifamiliar de dois pisos com sotão e garagem.

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Mas enquanto alguns em Portugal sentem os efeitos da crise económica, do mesmo não se pode queixar este artista, que nos últimos sete anos acumulou uma pequena fortuna a vender obras de arte a municípios de norte a sul do país.

De facto, através da sua empresa Mundo Frenético, o artista tem-se vendido a municípios onde muitos portugueses já não conseguem viver, ou vivem mas com muitas dificuldades. No total, em sete anos, Bordalo II amealhou 941.515 euros em 29 negócios feitos com 21 autarquias ou empresas municipais de todo o país. Só este ano, o artista já facturou 210.940 euros em dois negócios angariados junto de duas autarquias.

O ‘banner’ instalado no Cais das Colunas tem o número de contacto do departamento ‘Habitar Lisboa’, da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R. | Bordalo II

O negócio de ‘venda de arte’ mais recente, feito com o município de Ponte de Lima, rendeu-lhe 79 mil euros, o que somado o IVA à taxa de 6% resulta num ganho de 83.740 euros. Esta transacção diz respeito à “criação, execução e instalação de escultura e mural de Bordalo II”. O contrato foi adjudicado por ajuste directo e assinado no dia 30 de Julho.

Numa outra transacção angariada este ano, junto do Município de Sines, no litoral alentejano, Bordalo II cobrou 120 mil euros, ou 127.200 euros com IVA incluído, num negócio de “aquisição de elemento escultório” pela autarquia. O contrato por ajuste directo foi assinado no dia 14 de Fevereiro.

Segundo o caderno de encargos deste procedimento, o município de Sines pagou pela “aquisição de serviços para conceção, execução e instalação de uma obra de arte única e original da autoria do artista Bordalo II“.

Instalação de Bordalo II na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, em Maio deste ano. / Foto: D.R. | Bordalo II

Neste contrato, entre as condições impostas pela autarquia, o artista comprometeu-se a fornecer uma “escultura(s) de exterior, composta por uma estrutura de suporte em ferro, forrada a madeira e revestida com desperdícios de plástico e outros materiais descartados”.

A escultura envolve um “animal a representar um polvo, com dimensões aproximadas de 11 m x 8 m”. Outras condições referiam que se pretendia “a apresentação de draft, projeto 3D e maquete, com execução de estudo e projeto de estabilidade (engenharia)” e a “produção e materiais em estúdio e instalação no local pelo artista Bordalo II”.

Não se conhecendo ainda maquete, certo é que Bordalo II não recicla apenas materiais; recicla ideias: já existe um polvo da sua autoria na Costa da Caparica.

Polvo de Bordalo II na Costa da Caparica. Foto: DR.

No caso da instalação em Sines, a autarquia assume també todos os encargos respeitantes ao “alojamento para quatro pessoas”, bem como o “transporte entre as instalações do cocontratante e o local de instalação em camião apropriado, bem como camião grua a plataforma elevatória no local durante a instalação”. Também serão pagos pelo município alentejanos os custos com “camião grua e plataforma elevatória para efeitos de instalação”, além de “autorizações, licenças e policiamento em caso de necessidade de corte de via”.

Antes, a 25 de Novembro do ano passado, Bordalo II já tinha angariado um contrato com a Inframoura-Empresa de Infraestruturas de Vilamoura, para a “execução de peça artística alusiva à circularidade na Alameda da Praia da Marina, com utilização de bicicletas do sistema partilhado da Inframoura e outros materiais em fim de vida”. Neste contrato, o artista facturou 73.988 euros, com IVA incluído.

De resto, no ano passado o artista ganhou 164.416 euros com obras vendidas a uma empresa municipal e três municípios em Portugal: Arcos de Valdevez; Lousada; e Mealhada. Desde que há registos de contratos com o artista na plataforma de registo de compras Públicas — Portal Base — Bordalo II já fez negócios com 21 municípios, além de juntas de freguesia e empresas municipais, num total de 29 contratos. Além destes contratos, há ainda negócios feitos com outras entidades públicas. No global, em 35 contratos públicos, Bordalo II facturou 1.212.875 euros em sete anos.

A escultura ‘Sketchy Crab’ de Bordalo II em Vilamoura custou 73.988 euros e foi produzida com materiais em fim de vida fornecidos pela empresa municipal Inframoura, que encomendou a obra.
/ Foto: Inframoura

Curiosamente, o primeiro contrato público que o PÁGINA UM encontrou no Portal Base foi efectuado precisamente com a Câmara Municipal de Lisboa, em 18 de Maio de 2018, para o “fornecimento de uma escultura com materiais recicláveis da autoria de Bordalo II”. O negócio foi realizado através da Mistaker Maker – Associação de Intervenção Criativa e rendeu ao artista 15.900 euros, com IVA incluído.

Certamente, alguém na autarquia lisboeta estará a pensar se não teria sido apropriado reforçar uma relação comercial com o artista que teve apenas esse contrato público no tempo do socialista Fernando Medina. Recorde-se que em 2019, ainda no tempo de Medina, foi anunciado que um mercado no Martim Moniz contaria com esculturas de Bordalo II, mas tal não avançou no primeiro mandato de Carlos Moedas.

Assim, com crise ou sem crise, Bordalo II continua a ter nos municípios portugueses clientes regulares que anualmente lhe trazem receita na entrega de murais e esculturas feitas com materiais de desperdício disponíveis nas cidades onde as obras de arte ficam instaladas.

Antes desta acção em Lisboa, o artista já tinha partilhado nas redes sociais, no dia 18 de Julho, um ‘banner’ similar em Loures. / Foto: D.R. | Bordalo II

E enquanto o capitalismo selvagem e políticas públicas têm promovido a especulação na habitação e o aumento da desigualdade e da pobreza, para Bordalo II a crise não chegou. No caso dos negócios feitos entidades públicas, sobretudo autarquias e empresas municipais, é dinheiro certinho que chega directamente dos cofres públicos. Mais precisamente, são notas de euro que perfazem 1.212.875 euros que entraram na conta bancária do artista nos últimos sete anos.

Nada mau, ser-se um artista milionário num país em eterna crise. Traz o bónus de haver sempre oportunidade para mais instalações polémicas e oportunidades para promover o nome e, quem sabe, angariar mais umas esculturas e murais pelas cidades onde muitos já não conseguem viver.

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