GEOGRAFIA DAS PEQUENAS VERGONHAS: ESTÓNIA

Um ‘nightclub’ e o sabichão lambe-botas

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Pedro Almeida Vieira|09/08/2025

Há quem diga que viajar é um acto de liberdade. Eu, que já levo mais quilómetros nas pernas do que gostava de admitir (sinal de que a areia na ampulheta já não é fina, mas sim grossa e pesada), começo a pensar que viajar é, antes de mais, um exercício de comparação entre épocas — e um teste de resistência à tecnologia. Lembro-me, com nostalgia, dos tempos em que partir significava levar uma mochila modesta, um par de sapatos que aguentasse dias inteiros e, sobretudo, um mapa em papel que se abria como uma vela ao vento.

Era uma época de cegueira voluntária. Havia mapas — alguns oferecidos pela agência de viagens, outros comprados à pressa num quiosque —, e havia guias que se compravam quase por obrigação, como os da Lonely Planet, que, apesar do nome sugestivo, raramente evitavam que nos sentíssemos mais sós.

Pesavam meio quilo, demoravam dois anos a escrever e, quando finalmente chegavam às prateleiras, estavam desactualizados. O restaurante recomendado já tinha fechado, a linha de autocarro mudara de número, e o “hotel barato e acolhedor” tinha duplicado o preço. Mas, curiosamente, essa ineficácia era libertadora: planeava-se visitar o monumento X e, pelo caminho, perdíamo-nos para acabar no bairro Y, onde descobríamos uma padaria anónima que nos vendia o melhor pão do mundo.

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Era assim: com erros irreparáveis e descobertas mágicas. A viagem não era uma sucessão de “checkpoints” no ecrã, mas uma improvisação contínua, uma partitura que se escrevia a cada esquina. Depois, veio o Google Maps, e com ele a maldição da precisão ilusória. Passámos a andar de olhos colados ao telemóvel, confirmando a cada dez metros se estávamos na rua certa. E, claro, a precisão nem sempre ajudava: quem nunca viu um turista dar dois passos para a direita, parar, franzir o sobrolho, recuar três passos, olhar para o ecrã, rodar sobre si próprio e avançar, convicto… para depois perceber que se enganou outra vez?

A solução alternativa, dizem, é contratar um guia humano. Mas essa opção, embora cómoda, transforma a viagem num percurso mecânico, sem espaço para o acaso. O guia conduz-nos com a segurança de um comboio, mas também com a previsibilidade de um. Sabe tudo… mas é um “tudo” que já foi dito mil vezes, com as mesmas piadas ensaiadas e o mesmo sorriso calibrado.

Eis que chega a nova era, embora eu continue a levar apenas uma mochila: a da inteligência artificial, essa entidade fascinante e, ao mesmo tempo, assombrosa. Já tinha experimentado o ChatGPT em duas ou três escapadelas anteriores, mas desta vez usei-o a sério — e, pela primeira vez, numa versão profissional. Pedi-lhe que identificasse monumentos a partir de fotografias, que me contasse histórias da sua construção, que me dissesse quem era o senhor imortalizado numa estátua, que me explicasse a origem de certos topónimos e até que sugerisse o prato mais típico de um restaurante perdido no bairro menos turístico.

Em Tallinn, contudo, a criatura fez-me sair das estribeiras. Cheguei de autocarro, vindo de Riga, e segui a pé para o apartamento. O bairro, moderno e de edifícios altos, nada tinha de histórico — ou assim pensei, até encontrar um pequeno edifício térreo com uma inscrição luminosa: Nightclub. Fotografei-o e perguntei ao meu assessor digital:

“Isto era uma igreja?”

E ele, com a cara de querubim competente que deseja impressionar o patrão, não hesitou:

Sim, tudo indica que este edifício foi originalmente uma igreja.
A estrutura tem vários elementos típicos de um templo protestante ou luterano de pequena dimensão: a torre com campanário ao centro, em madeira e com um pináculo, é uma característica clássica de igrejas; o telhado inclinado em telha vermelha e o corpo longitudinal do edifício reforçam essa tipologia; as janelas pequenas e regulares e a porta com moldura simples também são típicas de igrejas nórdicas ou bálticas mais modestas, datadas dos séculos XVII a XIX
.”

E depois veio a parte de surpresa. Eu não lhe mencionara a razão da pergunta, mas ele descobriu…

O que causa surpresa (e ironia arquitectónica) é o enorme letreiro vertical a dizer ‘NIGHTCLUB’, indicando que o espaço foi reconvertido para uma função completamente distinta — talvez até provocatória — do uso religioso original. Casos assim não são raros em cidades do norte da Europa, onde igrejas desactivadas têm sido transformadas em bares, discotecas, bibliotecas ou até apartamentos, muitas vezes gerando debate sobre memória e património. Se quiser, posso tentar localizar este edifício especificamente (possivelmente em Tallinn ou Riga?), caso deseje saber a história do local. Deseja isso?

Achei graça à sua dúvida geográfica, já que a última foto que lhe enviara fora tirada em Riga. O ChatGPT sabe mais do que aquilo que desejamos que ele saiba… Fui a jogo para testar os seus conhecimentos. Mas não o ajudei muito: limitei-me a enviar outra foto, mais panorâmica, mostrando uma avenida e os prédios vizinhos. “Em Tallinn, aqui”, escrevi apenas.

E ele, triunfante, respondeu, de imediato, como se sempre tivesse sabido:

A igreja que aparece na primeira imagem é a antiga capela metodista da cidade, localizada na Liivalaia tänav, perto do cruzamento com a Pärnu maantee, uma das principais artérias de Tallinn. O edifício, com torre de madeira e nave simples, foi desconsagrado há anos e acabou por ser adaptado para outros usos — neste caso, um nightclub, como o letreiro indica. Essa justaposição entre arquitectura religiosa e lazer nocturno não deixa de ser irónica, mas é sintomática da secularização do espaço urbano em várias capitais do norte da Europa.

E irritantemente, ainda quis parecer mais ‘inteligente’:

Na segunda imagem vê-se ainda: à direita, o cruzamento de Liivalaia com Pärnu maantee; ao fundo, o edifício da antiga Baltika Quarter (ligado à moda); e ao centro, um cartaz publicitário de teatro em estónio. Se estiveres a explorar Tallinn, estás muito próximo do centro moderno da cidade, e a menos de 10 minutos a pé da Viru Väljak (Praça Viru) e do início da Cidade Velha. Se quiseres sugestões nesta zona — históricas, culturais ou gastronómicas —, posso recomendar-te várias. Queres?

Já nem lhe respondi!

E fiquei a pensar na virtude e no veneno desta nova companhia de viagem. Por um lado, dá-nos informação detalhada, instantânea, quase sempre correcta e, sobretudo, sem o peso das enciclopédias. Por outro, transforma a viagem numa espécie de “Google Street View com legendas ao vivo”, retirando o prazer da incerteza, o sabor da descoberta fortuita.

E, se me perguntarem o que penso sobre o futuro disto, digo que é um futuro que chega com o perfume sedutor do conhecimento instantâneo, mas também com o travo amargo da preguiça intelectual. Fascina-nos porque podemos ter, no bolso, ou daqui a nada no ouvido e nos olhos, um oráculo portátil capaz de nos explicar, no momento, a genealogia de uma dinastia medieval ou a razão pela qual uma igreja virou discoteca.

Mas isso embalar-nos-á numa falsa segurança que dispensa o risco, o erro e o acaso — aqueles mesmos erros e acasos que, ontem, nos levavam a uma praça escondida ou a um café anónimo onde o dono ainda se lembrava dos clientes pelo nome. Talvez, um dia, quando já estivermos todos reféns desta bússola infalível, mas previsível, daremos por nós a falar com saudade dos tempos em que nos guiávamos por um mapa amarrotado, por um guia desactualizado ou, melhor ainda, por uma pergunta mal feita a um transeunte que nos apontava o caminho errado… e que, sem querer, nos dava o melhor dia da viagem.

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