EDITORIAL
O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica

Um investigador ou cientista, para ser credível, tem de cumprir duas premissas: a reprodutibilidade das suas conclusões e a transparência na comunicação pública. E mais uma terceira: a humildade de ser questionado e fiscalizado, mesmo se por alguém que ele possa considerar menos capacitado.
Ora, em Portugal, a academia tem, infelizmente, caído na velha tentação de se juntar ao poder, sobretudo ao poder político, esquecendo que uma universidade pública deve, em primeiro lugar, ser penhor da Ciência e da Verdade, e da sociedade, e nunca do poder. Pelo contrário, deve até procurar afastar-se de qualquer intromissão política. Não tem sido isso que tem sucedido.

Por exemplo, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) tem vindo, ao longo dos últimos anos, a comportar-se como um tentacular braço dos Governos em matérias de saúde pública: ora por omissão, quando não realiza estudos que seriam essenciais à compreensão dos fenómenos epidemiológicos; ora por manipulação, quando apresenta relatórios alinhados com narrativas políticas. Basta recordar a recusa em fazer um escrutínio sério do excesso de mortalidade não-covid em 2020 e 2021, ou a ausência de uma avaliação rigorosa da mortalidade global em 2022. A Ciência foi preterida ao serviço de conveniências. ↓
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Este ano, o INSA voltou a dar mostras de que, em Portugal, a investigação em saúde pública é moldada pelas necessidades comunicacionais do poder. O caso do Índice ÍCARO é, neste ponto, paradigmático. No início deste mês de Agosto, com a vaga de incêndios, o INSA divulgou valores do Índice ÍCARO que apontariam para um inédito excesso de mortalidade entre 4 e 6 de Agosto da ordem de 1.100 óbitos – números alarmistas e sem consistência empírica. Porém, logo no dia seguinte, esses dados foram “corrigidos”, ainda assim para valores elevados, sem qualquer explicação metodológica. E, apesar das insistências do PÁGINA UM, o presidente do INSA, Fernando de Almeida, recusou prestar esclarecimentos.
Nos dias seguintes, predispus-me eu a confrontar as previsões alarmistas do INSA com dados reais. E o ‘edifício’ do INSA desmoronava-se. Entre 25 de Julho e 7 de Agosto deste ano, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, um excesso de apenas 228 óbitos, equivalente a +5,2% — significativo, sim, mas a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. Convém recordar que este acréscimo ocorreu num contexto de Inverno menos agressivo em termos gripais, o que, paradoxalmente, teria produzido um défice prévio de mortalidade, susceptível de “inflacionar” o impacto de vagas de calor.

Perante esta evidência, o que fez o INSA? Organizou, em cooperação com a RTP, uma encenação, protagonizada pelas investigadoras Ana Paula Rodrigues e Susana Silva. Uma pantomima travestida de comunicação científica, onde se insistiu na narrativa de um excesso de cerca de 950 óbitos desde finais de Julho, enquanto se exibiam gráficos vagos e inócuos em ecrã, cuidadosamente desprovidos de dados reprodutíveis. Um exercício mais próximo da propaganda do que da Ciência, colocado estrategicamente numa quinta-feira à noite, em véspera de sexta-feira e antes de um fim-de-semana. Tudo para garantir menor contraditório mediático.
Ora, como qualquer investigador sabe, a Ciência sem escrutínio é apenas retórica. Aquilo que se exigiria ao INSA seria simples: publicamente, dar a conhecer a descrição metodológica completa do Índice ÍCARO, o modelo estatístico usado para previsão e “correcção por observação”, a definição operacional de “excesso de mortalidade”, as séries diárias de mortalidade observada e esperada, os cálculos que sustentam os tais “950 óbitos em excesso”, a explicitação do efeito de colheita, a indicação das fontes de dados e a análise de robustez a diferentes metodologias. Pedi isto formalmente, na passada segunda-feira, à investigadora Ana Paula Rodrigues, com conhecimento ao gabinete de comunicação do INSA e ao seu presidente. Até hoje, nada.
Perante esta evidência empírica, a conclusão é inequívoca: a investigação baseada no Índice ÍCARO por parte do INSA não passa de um artifício, uma encenação pseudocientífica que confunde indicadores exploratórios com diagnósticos de mortalidade, manipulando dados conforme as conveniências. E assim, quando a Ciência é usada para encobrir, em vez de esclarecer, deixa de ser Ciência. E quando uma instituição pública de saúde se presta a este jogo, abdica do seu dever maior: servir a verdade e a sociedade.

Tudo isto não é apenas uma questão metodológica; é uma questão ética. A opacidade do INSA é um insulto à comunidade científica e uma afronta à cidadania. Mais grave ainda é a cumplicidade dos meios de comunicação social, incapazes de exercer o contraditório, aceitando como dogma aquilo que deveria ser alvo de escrutínio. Repita-se por outras palavras, porque nunca é demais: a Ciência sem transparência e sem reprodutibilidade não é Ciência; é prestidigitação. E quem confunde Ciência com prestidigitação não só desonra a academia, como mina a confiança pública.
O Índice ÍCARO, tal como está a ser usado, não é um alerta: é uma farsa.