PÁGINA UM ANALISA A POLÉMICA REPORTAGEM NA LUSA (E EXPRESSO) SOBRE SAPADORES ESTRANGEIROS

Imigrantes nos fogos: mas, afinal, será que a desinformação é filha da má informação na imprensa?

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Pedro Almeida Vieira|25/08/2025

Mais de 14,6 milhões de euros de subvenção estatal no ano passado, 221 jornalistas no quadro, uma editoria de fotografia com orçamento próprio de quase 600 mil euros – e, no entanto, enquanto o país ardia, a agência noticiosa Lusa decidiu retratar a participação de imigrantes no combate aos incêndios rurais com uma reportagem preguiçosa, redigida a partir de uns telefonemas, da “cópia” parcial de um artigo do Dhaka Post e ‘enfeitada’ por fotografias de arquivo .

Nada de repórteres no terreno, nada de fotografias tiradas por fotojornalistas, nada de confronto com os protagonistas principais, nada de validação junto das entidades responsáveis. Acrescia a tudo isto um tom laudatório, quase missionário, ao qual se somava um pormenor inadmissível até num estagiário de jornalismo: alguns dos imigrantes referidos pela Lusa eram identificados apenas com um nome. A peça acabou reproduzida sem pestanejar pelo Expresso, que — mais uma vez — demonstrou ser apenas correia de transmissão de uma informação mal apurada. E ainda fez pior: em vez de fotografia de arquivo (como fez a Lusa), alguém se lembrou no Expresso de ‘enfeitar’ uma reportagem manca (por ter sido feita ao telefone nem sequer ter sido enviado um fotojornalista) com imagens de má qualidade pescadas nas redes sociais.

Reportagem ‘original’ do Expresso, via Lusa.

Analise-se as ‘imagens’ usadas pelo Expresso – e aqui aplica-se o ditado de que uma imagem vale por mil palavras, embora neste caso signifique que uma má imagem pode destruir a credibilidade de mil palavras. A dúvida saltava à vista.

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Numa, um grupo de 14 homens com camisolas amarelas posa sentado a uma mesa de madeira, com garrafas de Coca-Cola e copos de plástico. Na outra, vê-se um conjunto de sapadores de capacete amarelo e fato anti-fogo laranja e verde segurando uma mangueira, alinhados em plena serra, mais um a olhar para a câmara de uniforme amarelo e verde e chapéu, enquanto um pequeno fogo de mato lavra a alguns metros de distância.

Na primeira fotografia, os traços dos sapadores denotavam a sua origem étnica, mas a qualidade da imagem e diversos elementos causavam estranheza. Na segunda, além da fraca qualidade, a aparente descontração do elemento que olhava para a câmara levantava dúvidas num cenário de fogo activo, embora também pudesse tratar-se de uma acção preventiva de fogo controlado noutra época do ano.

Fotografia usada pela ‘reportagem’ do Dhaka Post e depois usada pelo Expresso.

Seriam fotografias ilustrativas de equipas de sapadores? Eram, afinal, imagens autênticas ou fruto das manipulações correntes em tempos de inteligência artificial? Foi o que muitos começaram a questionar nas redes sociais — e até um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, aproveitou para lançar suspeitas sobre a veracidade da reportagem. Ao longo do dia de ontem, a rede social X inundou-se de publicações a pôr em causa a autenticidade das fotos – e, por arrasto, da própria reportagem –, não faltando análises sobre a probabilidade de recurso a inteligência artificial que a classificavam como altamente suspeita.

Esta polémica não teria nascido, sublinhe-se, se a Lusa e o Expresso tivessem feito o mínimo trabalho jornalístico: produzir as suas próprias imagens – é para isso que existem fotojornalistas numa agência que teve rendimentos no ano passado de mais de 18,8 milhões de euros – ou, na pior das hipóteses, confirmar a origem das fotografias, ouvir responsáveis da associação que supostamente emprega os homens retratados e garantir que as declarações encaixavam no contexto real. Mas nada disso foi feito.

Na pseudo-reportagem da Lusa, depois amplificada pelo Expresso com uso de imagens não validadas, não surge uma única palavra de Vasco Campos, presidente da Caule – Associação Florestal Beira Serra, uma das mais dinâmicas da região Centro e alegado empregador dos sapadores florestais retratados. Não há confirmação, não há enquadramento, não há sequer números. Apenas uma narrativa romanceada sobre imigrantes da região do Indostão que estariam “na linha da frente” do combate às chamas.

Segunda fotografia da polémica ‘reportagem’.

Perante a quantidade absurda de reacções sobre a eventual manipulação de imagens e de informação usada pela Lusa e Expresso, o PÁGINA UM fez aquilo que se exige a quem leva o jornalismo a sério: foi ouvir Vasco Campos. E, embora tenha lamentado que o jornalista da Lusa (e o Expresso) não o tenha contactado, este dirigente da associação com sede no concelho de Oliveira do Hospital confirmou ao PÁGINA UM, sem rodeios, que as fotos eram verdadeiras, embora captadas antes dos incêndios recentes com recurso a um telemóvel antigo — daí a fraca qualidade — e que 70% dos seus sapadores florestais são hoje estrangeiros.

Na verdade, fundada em 2001, a Caule possui actualmente seis equipas de cinco elementos cada, portanto 30 pessoas, não incluindo técnicos, a proteger cerca de seis mil hectares de floresta nos concelhos de Oliveira do Hospital e Seia. “Sobretudo a partir de 2019, foi esta a solução que encontrámos. Estou muito satisfeito”, afirma. Entre os trabalhadores, predominam, conforme destaca, cidadãos do Bangladesh, Paquistão e Índia, a que se juntam alguns africanos, incluindo dois angolanos e um marroquino.

Os números são, portanto, claros, apesar de omitidos na pseudo-reportagem da Lusa: de 30 sapadores da Caule, duas dezenas são imigrantes. E a experiência, garante Vasco Campos, tem sido positiva. “Na generalidade, são excelentes trabalhadores, cumpridores e cordatos. Sentam-se à mesma mesa que eu”, diz, frisando que a integração local é boa e que várias famílias já vivem na região, com filhos, alguns já nascidos em Portugal. “Aqueles que andam na escola são muito bons alunos”, acrescenta ainda, notando com graça que alguns dos mais jovens até bebem uma cerveja de vez em quando, ou fumam, “mas às escondidas dos mais velhos”.

Publicação no X do deputado Rui Paulo Sousa.

O verdadeiro problema para a manutenção destas equipas multiétnicas, admite Vasco Campos, é financeiro: “Não conseguimos pagar mais do que o salário mínimo nacional. O salário bruto ronda os 1.500 euros, mas reduz-se no líquido porque há descontos pesados para impostos, segurança social e seguros, que são caríssimos nesta profissão de alto risco.” Os apoios estatais cobrem menos de metade das despesas, e muitas tarefas de silvicultura têm de ser asseguradas como contrapartida. Em todo o caso, vários destes elementos estão em casas disponibilizadas pela associação e os membros isolados juntaram-se para alugar habitações em aldeias próximas. Nestas condições, um salário mínimo numa aldeia de Oliveira do Hospital vale muitíssimo mais do que o mesmo rendimento numa cidade como Lisboa, o que permite a estes imigrantes pouparem dinheiro para enviarem para os seus países, como aliás sucedeu com as remessas dos emigrantes portugueses que rumaram sobretudo para países europeus e americanos a partir da década de 60 do século passado.

Na frente de combate, a eficácia destas equipas de sapadores que integram imigrantes ficou demonstrada nos incêndios recentes: ainda arderam cerca de 1.500 hectares de terrenos florestais da associação Caule, mas a intervenção dos sapadores foi decisiva para travar a propagação em zonas críticas. “Trabalhámos noite dentro, que é quando as condições meteorológicas são mais favoráveis para um ataque ao fogo em zonas bem geridas”, acrescenta Vasco Campos.

Conclusão: de facto, há equipas de sapadores maioritariamente estrangeiros, como a da Caule — mas também se fica a saber como a desinformação nas redes sociais, criticada rudemente pela imprensa, é afinal muitas vezes gerada paradoxalmente a partir de má informação da própria imprensa.

Ontem, rapidamente circularam no X diversas publicações a atribuírem manipulação de imagens por inteligência artificial.

Quando a principal agência de notícias do país publica uma reportagem sem fotografias próprias in loco, sem validar fontes e sem ouvir quem devia ouvir, o resultado é um produto jornalístico frágil, permeável a dúvidas legítimas e combustível perfeito para suspeições populistas. A verdade passa a ser refém do amadorismo. E quando depois um jornal que se autoproclama de referência ‘saca’ fotos de má qualidade e coloca como créditos as redes sociais, sem identificar sequer a fonte em concreto, não se pode queixar da perda de credibilidade, que o afecta a si, mas também a todo o jornalismo.

Este caso ilustra uma tendência cada vez mais preocupante: o jornalismo português, mesmo aquele subsidiado com milhões de euros do erário público, prefere poupar nos custos mais elementares — deslocar repórteres, enviar fotojornalistas, gastar combustível — para se refugiar na comodidade do telefone e no saque às redes sociais. As redacções deixam de fazer trabalho de campo e transformam-se em escritórios de copy-paste. A diferença entre notícia e boato, entre reportagem e comentário laudatório, esbate-se perigosamente.

Neste caso em concreto, além das falhas na reportagem, destaca-se o uso de fotografias obtidas em redes sociais, sem qualquer validação, em vez de serem feitas por um fotojornalista, ainda mais relevante por se tratar, supostamente, de uma reportagem, que nem sequer faz sentido ser feita a partir de uma secretária.

Agência Lusa fez uma reportagem ser ir ao local. O Expresso republicou e decidiu ir ‘pescar’ fotos amadoras nas redes sociais sem sequer identificar correctamente a fonte.

E aqui remete-se para um problema que começa a ser crónico: a perda da relevância da fotografia como elemento fulcral do jornalismo, e sobretudo na reportagem jornalística, no seio da imprensa mainstream. Até porque se pensa que, agora, com a democratização dos smartphones com câmaras fotográficas, se generalizou a ideia de que a fotografia pode ser obtida de qualquer forma.

José Manuel Ribeiro, um dos mais reputados fotojornalistas portugueses, afirma que “o primeiro problema é que os cursos de comunicação social e jornalismo têm vindo a eliminar o ensino de fotografia”, algo que se agravou com a crise financeira na imprensa.

“Com a redução das redacções, são pessoas impreparadas profissionalmente que estão a escolher as fotografias a publicar”, salienta este antigo fotojornalista da Lusa, Público e Reuters, que lamenta que “os órgãos de comunicação social tenham deixado de ter editorias de fotografia”. Para José Manuel Ribeiro, agora “o tratamento das fotografias é mau; antes, a foto era uma garantia de autenticidade e dava credibilidade às notícias e reportagens.”

Alegadamente, o próprio Grok atribuiu manipulação nas fotografias. A possibilidade de ‘falsos positivos’ aumenta, contudo, quando fotos amadoras são tiradas com telemóveis mais antigos.

Para agravar, hoje existe uma tendência na imprensa, que não ocorria há alguns anos, de se usar material da Lusa sem validação posterior. Assim, no caso da “reportagem” sobre os sapadores imigrantes, o Expresso publicou-a tal como estava, como quem despeja mercadoria numa banca, sem edição crítica, sem escrutínio. E coloca a cereja em cima do bolo do descrédito: usa fotos amadoras fazendo crer que estavam na reportagem original da Lusa.

Este é o retrato de uma dependência estrutural: o jornal que em tempos se quis referência torna-se refém de uma agência que lhe serve material pronto a usar, mesmo que esse material seja deficiente. Resultado: os leitores foram confrontados com uma reportagem que não esclareceu, não quantificou e não contextualizou — apenas contribuiu para a cacofonia em torno dos fogos e da imigração.

Em suma: sim, é verdade que hoje em Portugal há equipas de sapadores florestais compostas maioritariamente por estrangeiros. Sim, eles são protagonistas na prevenção e no combate inicial aos fogos. Mas aquilo que a Lusa e o Expresso entregaram ao público foi uma pseudo-reportagem sem rigor, com fotografias duvidosas, sem protagonistas ouvidos e sem dados fiáveis. O debate público sobre imigração e incêndios não precisa de peças romantizadas; precisa de factos sólidos, de vozes directas, de números verificados.

Brigadas de sapadores florestais da Caule. O PÁGINA UM falou ontem com o presidente desta associação, Vasco Campos. Fonte: Caule – Associação Florestal da Beira Serra

Este episódio mostra como nasce e se propaga a desinformação: não da sombra obscura das redes sociais, mas do coração de órgãos que deviam ser guardiões da informação fidedigna. Quando os meios de referência falham no básico, abrem caminho ao boato, ao populismo e à descrença.

A desinformação, neste caso como em tantos outros, começa não no X ou no Facebook ou no WhatsApp, mas sim em redacções preguiçosas, com a chancela oficial da agência nacional de notícias. E o aplauso da imprensa generalista que, com as reportagens da Lusa, fica satisfeita por encher chouriços.

com Elisabete Tavares

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