PEDRO BOGAS VENDEU GATO POR LEBRE AOS JORNALISTAS

Ajuste directo de manutenção dos elevadores: Carris forjou minuta para parecer contrato

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Pedro Almeida Vieira|05/09/2025

O caso do ajuste directo de manutenção dos elevadores de Lisboa ganha novos contornos e aumenta as dúvidas sobre a veracidade das declarações prestadas ontem por Pedro Bogas, presidente da Carris, na conferência de imprensa realizada um dia após a tragédia no Elevador da Glória.

O documento entregue aos jornalistas não passava, afinal, de uma minuta, sem assinaturas e com informação rasurada, e aparentemente só hoje, após insistência deste jornal, foi enviada uma versão com assinaturas manuscritas dos dois administradores da empresa municipal: o presidente e a vice-presidente Maria Lopes Duarte. Mas pior ainda: a tarja colocada na minuta entregue ontem aos jornalistas não era mais do que uma simulação mal feita, sugerindo estar a proteger as identidades dos subscritores.

Pedro Bogas, presidente da Carris, disse que disponibilizaria cópia do contratos aos jornalistas. Afinal, forjou uma minuta, colocando tarjas negras, para tapar inexistente assinaturas.

O polémico contrato, que a Carris alega ter sido assinado em 20 de Agosto para não deixar sem cobertura contratual os serviços de manutenção dos elevadores – uma vez que o anterior contrato de três anos expirou no dia 31 de Agosto – foi exibido aos jornalistas como prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores estava assegurada.

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Porém, apesar de o PÁGINA UM não ter sido convocado, acabámos por ter tido acesso a esse documento da Carris, através de dois jornalistas de órgãos de comunicação social, um dos quais director de um jornal de grande dimensão.

Ora, o documento de ontem continha tarjas negras nas linhas de identificação das partes e sobre as áreas onde deveriam constar as assinaturas de dois membros do Conselho de Administração da Carris e do gerente da MNTC. Mas hoje, por insistência do PÁGINA UM, a Carris acabou por enviar o documento, salientando ser “cópia do contrato distribuído, ontem, na conferência de imprensa, onde é possível identificar os representantes da CARRIS e respectivas assinaturas”.

Última página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e última página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A tarja negra da imagem da esquerda jamais conseguiria tapar as duas assinaturas da imagem da direita, o que revela que foi entregue uma minuta forjada aos jornalistas para aparentar uma cópia com nomes anonimizados.

Porém, uma singela análise confirma diferenças evidentes entre aquilo que ontem foi mostrado aos jornalistas na conferência de imprensa e o documento enviado hoje ao PÁGINA UM: além de surgirem já os nomes dos representantes da Carris, as folhas são rubricadas no canto superior direito (como habitualmente em contratos já celebrados) e surgem visíveis as assinaturas dos administradores da Carris na última página, manuscritas – ou seja, houve a clara opção de não usar assinatura digital com timestamp, que deixaria uma ‘impressão digital’ do dia e da hora da assinatura.

Em todo o caso, a versão enviada hoje pela Carris ao PÁGINA UM mantém uma tarja sobre a assinatura do gerente da MNTC, que teria de existir de forma visível para o contrato ser válido. Aliás, em contratos públicos não se aplica qualquer protecção de identidade no âmbito do Regulamento Geral de Protecção de Dados.

Ora, a prova de que, na conferência de imprensa desta quinta-feira, a Carris entregou uma minuta forjada para parecer um contrato está no facto de o documento entregue aos jornalistas conter uma tarja negra no espaço que supostamente taparia as assinaturas dos administradores da Carris que é demasiado pequena. Com efeito, confrontando com o documento enviado hoje ao PÁGINA UM, a superfície dessa tarja negra mal taparia a assinatura de Pedro Bogas e jamais conseguiria tapar a assinatura da administradora Maria Lopes Duarte. Ou seja, ontem o contrato ainda não estaria assinado.

Primeira página do ‘contrato’ entregue ontem aos jornalistas (à esquerda) e primeira página do contrato enviado hoje ao PÁGINA UM (à direita). A ausência de rubricas no canto superior direito já evidenciava que o documento entregue ontem aos jornalistas se tratava de uma minuta sem validade contratual.

Esta discrepância aumenta as suspeitas sobre a real cronologia da celebração do ajuste directo, se é que foi mesmo assinado. O PÁGINA UM remeteu um pedido à MNTC, mas recebeu como resposta que está a ser representada agora pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que não foi ainda possível contactar.

Saliente-se que, em muitos casos de contratação pública, apesar de ser uma prática contrária à transparência e às boas regras de gestão pública, muitos ajustes directos apenas acabam formalizados após um acordo verbal ou informal para início da prestação de serviços – sobretudo quando é o mesmo prestador de um contrato que terminou –, sendo depois datados com efeitos retroactivos para regularizar a situação.

Porém, no presente caso, a gravidade da tragédia do descarrilamento do Elevador da Glória – com 16 mortes e duas dezenas de feridos – torna esta questão muito mais sensível: se não existia contrato válido à data do acidente, as consequências jurídicas e indemnizatórias poderão ser colossais, uma vez que a Carris poderá ter operado os ascensores sem cobertura contratual de manutenção e inspecção.

Calçada da Glória: existir ou não um ajuste directo juridicamente válido não será um pormenor para o apuramento de responsabilidades indemnizatórias de um desastre que causou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos.

O PÁGINA UM solicitou ainda à Carris o envio da acta da reunião do Conselho de Administração de 14 de Agosto, indicada no alegado contrato por ajuste directo como tendo deliberado a adjudicação. Até ao fecho desta edição, o gabinete de relações públicas da Carris não forneceu qualquer resposta a este pedido, mantendo a incerteza sobre se a deliberação foi efectivamente tomada nessa data e se foi respeitado o procedimento de contratação exigido pelo Código dos Contratos Públicos.

Este caso poderá, assim, evoluir para uma questão não apenas de gestão, mas de responsabilidade civil e criminal: a confirmação de que o contrato não estava assinado no dia do acidente pode implicar um vazio legal sobre quem tinha a obrigação de assegurar a manutenção dos equipamentos naquele momento, abrindo espaço para um cenário litigioso de proporções imprevisíveis.

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