ATÉ INSPECÇÕES MENSAIS ERAM A 'OLHÓMETRO'
Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapsou

Os serviços de manutenção e segurança do Elevador da Glória — o funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional — não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada terça-feira, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas. Era tudo feito visualmente – ou se se quiser ser jocoso, mesmo se a hora é dramática, com recurso à tecnologia do ‘olhómetro’.
De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e Santa Justa, que vigorou até 31 de Agosto – e que continuaria a manter-se com o ajuste directo que a Carris garante ter sido assinado no mês passado por um período de cinco meses –, apenas para os dois últimos, com tecnologia diferente, existiam referências à contagem de arames partidos como critério para substituição de cabos.

No caso da Glória (e também do Lavra), o caderno de encargos limita-se a exigir uma “verificação” dos cabos, sem qualquer norma técnica específica, periodicidade diferenciada ou referência a métodos de ensaio. Ou seja, se já se sabe que a inspecção diária era apenas visual, como demonstram os registos entregues pela Carris, nenhuma exigência existia para que as outras inspecções com periodicidade semanal, mensal e semestral fossem diferentes. Fica, porém, por esclarecer se a empresa responsável pela manutenção — a MNTC — complementava essas verificações com algum tipo de ensaio mais aprofundado, uma vez que o contrato não o exigia expressamente. ↓
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O PÁGINA UM apurou junto de especialistas que existem diversos ensaios que poderiam ser aplicados para detecção precoce de falhas em cabos de tracção, para além da simples observação visual. Entre eles contam-se os ensaios de magneto-indução (que permitem detectar fios partidos no interior do cabo), correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente úteis para verificar a integridade da zona de ancoragem no trambolho.
Também é possível realizar medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos. Estes procedimentos são considerados boas práticas internacionais em sistemas de transporte por cabo e estão descritos em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

O contrato de manutenção da Carris, contudo, não exigia nenhum destes ensaios, remetendo para a prestadora de serviços a decisão de realizar ou não ensaios complementares. A ausência de uma norma técnica clara poderá vir a ser um elemento central na atribuição de responsabilidades civis e criminais, uma vez que o Estado, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista num sistema que transporta milhares de passageiros por dia em forte declive urbano.
Em conversa com o PÁGINA UM esta noite, Pedro Bogas, presidente da Carris, afirmou que “serão em breve disponibilizadas mais inspecções do que as diárias, para que se saiba que tipo de ensaios eram executados”, sem, contudo, confirmar se existiram alguma vez medições de carga ou ensaios de magneto-indução ao cabo que colapsou no trambolho superior da cabina número um, tanto mais relevante porque o relatório preliminar apresentado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) mostra que a ruptura do cabo ocorreu no ponto de fixação dentro do trambolho superior, isto é, numa zona que não é passível de inspecção visual sem desmontagem.
Assim, mesmo que a inspecção diária tivesse sido cumprida escrupulosamente — como os registos parecem comprovar —, não havia forma de detectar a degradação incipiente do cabo. A questão, portanto, é saber se alguma vez, em inspecções semanais, mensais e semestrais, a MNTC fez a desmontagem dessa peça ou se usou algum instrumento de medição para verificar as condições de segurança do cabo.


Quer a empresa tenha feito ou não, o caderno de encargos era (e será) omisso, uma vez que apenas exigia uma “verificação”, termo técnica e juridicamente vago. Ou seja, responsabilizar a empresa de manutenção com base num caderno de encargos omissos pode ser complicado.
Certo é que esta noite, já depois da conversa do PÁGINA UM com Pedro Bogas, a Carris disponibilizou o mais recente relatório mensal, com data de 1 de Setembro, dois dias antes do acidente. E aparente confirma-se: as “verificações” eram elementares, sem recurso a equipamentos, embora mais demoradas(a última durou duas horas e quatro minutos). Na prática, consistiu apenas em verificar visualmente se existiam ruídos anómalos, empenos ou parafusos desapertados, bem como testar o funcionamento da bomba submersível do sistema do cabo de equilíbrio.
A ficha de manutenção é preenchida com um simples “OK” e uma nota genérica de que a inspecção foi realizada, sem qualquer valor medido ou referência a ensaios técnicos. Este nível de controlo é manifestamente insuficiente para detectar a degradação interna de um cabo de tracção, já que não inclui desmontagens, medições de carga, ensaios de magneto-indução ou outros testes não destrutivos considerados boas práticas internacionais para sistemas de transporte por cabo.

Em todo o caso, o relatório do GPIAAF sublinha um aspecto ainda mais aterrador: embora o sistema de corte de energia e de accionamento automático dos travões pneumáticos tenha funcionado como previsto, estes não tinham capacidade suficiente para imobilizar o veículo sem o equilíbrio de massas garantido pelo cabo.
Ou seja, os freios não constituem um sistema redundante à falha da ligação por cabo, o que, na prática, significa que milhões de passageiros andaram ao longo dos anos literalmente presos por um fio – que rompeu no dia 3 de Setembro. Significa isto que, no actual desenho do sistema, uma ruptura como a que ocorreu dificilmente poderia ter outra consequência que não um acidente grave.
Sobre as dúvidas da validade contratual dos serviços de manutenção – que o PÁGINA UM tem noticiado –, Pedro Bogas assegura que existe mesmo um contrato válido, por si assinado no dia 25 de Agosto mas com data do dia 20. E diz que a distribuição de uma minuta na conferência de imprensa de quinta-feira – que continha a assinatura tapada do gerente da MNTC – mas colocava uma pequena tarja negra numa zona onde ainda não estavam sequer as assinaturas – foi um lamentável lapso dos seus serviços. “Não fazia sentido terem disponibilizado esse documento preliminar; ainda mais porque existia já o contrato assinado e nunca as suas assinaturas deveriam ter sido tapadas”.

Pedro Bogas diz que uma garantia de que existe um contrato mesmo em vigor está no facto de que, se não houvesse, a empresa de manutenção teria já descartado responsabilidades, mas não deu uma explicação cabal sobre a razão de não ter optado pela assinatura digital (com timestamp), que anularia quaisquer dúvidas na legalidade do processo.
Prometendo transparência máxima, Pedro Bogas diz que a Carris disponibilizará todos os documentos envolvendo o acidente, incluindo as inspecções e demais documentos.