EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Quem quer estar sob o bisturi do doutor Pedro Miguel Mendonça Felício Cavaco Henriques?

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Pedro Almeida Vieira|07/09/2025

Desde tempos imemoriais que o erro acompanha o ser humano. Está na base das tragédias gregas e na argamassa da História, lembrando-nos que somos criaturas falíveis. Há erros de cálculo, de percepção, de oportunidade; há erros ingénuos, cometidos na ânsia do improviso e da boa-vontade, e erros devastadores, cujas consequências perduram para lá da vida de quem os cometeu.

Errar, sabemos, é humano; mas é precisamente por sabermos que erramos que criámos normas, códigos e sistemas de prevenção para evitar que erros similares, sobretudo cometidos pela mesma pessoa, se repitam. Mas existe também uma tragédia associada a muitos erros: a soberba e a recusa em aprender. Os erros, sobretudo os que se repetem, não são acidentes do destino: são sinais de falhas no carácter ou no sistema que os tolera.

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Não obstante, nem todos os erros são iguais. Há erros que resultam de circunstâncias imponderáveis, onde a incerteza domina e nenhuma decisão é plenamente correcta. Há outros que são filhos da incúria, da desatenção ou do desrespeito pelas regras estabelecidas. E há, finalmente, os erros persistentes, aqueles que se repetem com uma frequência tal que deixam de ser meros acidentes para mostrarem incompetência insanável ou se tornarem padrões de conduta e desrespeito pelo outros. Estes últimos merecem mais do que censura moral: exigem acção.

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Em Medicina, tal acção deve ser ainda mais redobrada, pois o erro não se mede em prejuízos financeiros ou em falhas de produtividade, mas em corpos e vidas humanas. E mais grave se torna quando a própria classe médica, em vez de agir, prefere o silêncio cúmplice, o arquivamento célere e a protecção dos seus mais próximos, blindados num sistema de castas.

Sucede que a negligência médica – afastemos o dolo, que é de outra ordem e de outra justiça – permanece um dos maiores tabus da sociedade portuguesa e da própria Ordem dos Médicos. Quando falo em negligência não me refiro às incertezas da ciência médica –  que opera sobre organismos complexos –, nem dos diversos níveis de conhecimento dos médicos – daí se concederem responsabilidades e intervenções mais complexas a quem detém maiores valências –, nem às limitações de meios técnicos ou farmacológicos – que variam de hospital para hospital.

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Refiro-me a erros grosseiros, repetidos, que violam de forma inequívoca as leges artis, isto é, as boas práticas e os padrões técnicos que protegem os doentes. E não uma vez, mas várias.

Ora, há três anos, uma jovem médica interna, Diana Pereira, em serviço no Hospital de Faro, teve a ousadia rara de romper o silêncio e denunciar, não aos seus superiores hierárquicos, porque desacreditou-se deles, mas directamente à Polícia Judiciária, um número inusitado de casos de negligência cirúrgica cometidos em poucos meses pelo seu orientador de internato, o cirurgião Pedro Cavaco Henriques, e pelo então director de serviços de cirurgia, Martins dos Santos.

Aquilo que se seguiu, nos meses seguintes, foi uma campanha suja, indigna de uma sociedade que se quer civilizada. Diana Pereira, em vez de apoiada e aplaudida – ou pelo menos ser considerada uma whistleblower credível –, foi alvo de tentativas de assassinato de carácter, sugerindo-se até que seria instável mentalmente. Houve violação dos seus dados pessoais e uma imprensa cúmplice dos pequenos e grandes poderes publicou peças que deveriam envergonhar qualquer profissional de jornalismo.

Trecho do processo disciplinar da IGAS contra Pedro Henriques.

Destaco uma noticia publicada em Julho de 2023 no Expresso, da autoria dos jornalistas Vera Lúcia Arreigoso e João Mira Godinho, que insinuava que Diana Pereira, então sem autonomia para tal decisão, estaria envolvida na morte de uma doente por alegadamente ter autorizado uma alta hospitalar. Além disso, a jovem médica foi ainda processada por difamação pelo seu ex-orientador e pelo director de serviços de cirurgia do Hospital de Faro – e ficou por sua conta, tendo que pagar as custas através de um crowfunding.

O tempo, porém, é um juíz teimoso, embora muitas vezes injusto. Ontem, o PÁGINA UM revelou em primeira mão que a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu, após um processo disciplinar de 59 páginas, que Pedro Cavaco Henriques cometeu em 2023 cinco infracções graves em apenas três meses, todas elas por violação da leges artis, algumas com consequências graves para os doentes. A reincidência foi um factor agravante, já que o médico tinha antes sofrido uma repreensão escrita. Mesmo assim, a sanção proposta foi de apenas 40 dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade.

Para além do PÁGINA UM, nenhum outro órgão de comunicação social que acompanharam o caso em 2023 abordou a sanção de Pedro Cavaco Henriques e o bom serviço à causa pública de Diana Pereira, porque um médico não salva vida apenas intervindo nos doentes e feridos, mas denunciando aqueles que cometem erros reiterados.

Sim, reiterados: em três meses, cinco doentes. Façamos o exercício de imaginar quantas mais infrações terão ficado por escrutinar em mais de 20 anos de prática clínica por este médico, quantos erros terão sido silenciados por colegas, quantas vítimas terão ficado fora das estatísticas disciplinares. Nunca o saberemos.

Sabemos, isso sim, que a jovem médica Diana Pereira, que denunciou estas situações, sofreu um calvário pessoal e profissional, que servirá de aviso a quem se atrever a romper o pacto de silêncio hospitalar. E sabemos também que, findo o período da suspensão, o doutor Pedro Cavaco Fernandes, que já foi professor convidado da Escola Superior de Saúde do Algarve, poderá regressar ao bloco operatório como se nada fosse.

A confiança dos cidadãos nos serviços de saúde assenta não apenas na competência técnica dos seus profissionais, mas também na certeza de que os erros serão identificados, corrigidos e, quando necessário, punidos de forma proporcional mas exemplar. Quando tal não sucede, instala-se a desconfiança e o medo. Não há cirurgião infalível – nem se pretende que haja –, mas há padrões mínimos de exigência que não podem ser relativizados. Cinco erros graves em três meses não são uma estatística banal: são um alarme.

Capa do relatório do processo disciplinar da IGAS que aplicou uma sanção de 40 dias de suspensão que terá de ser confirmada pela ULS do Algarve.

Por isso, a pergunta do título deste editorial não é meramente retórica: quem quer estar sob o bisturi do doutor Pedro Miguel de Mendonça Felício Cavaco Henriques? E mais: que confiança podemos ter num sistema que permite que médicos reincidentes regressem ao serviço após meras suspensões simbólicas?

A sociedade portuguesa deve decidir se continua a aceitar que o corporativismo e o medo da denúncia valham mais do que a vida dos doentes. Porque o erro é humano, sim, mas a omissão e o obscurantismo são escolhas. E as escolhas, ao contrário dos erros, são sempre julgadas pela História.

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