A DERIVA DOS CONTINENTES

Então e o Google?

Author avatar
Clara Pinto Correia|14/09/2025

O Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Sophia de Mello Breyner Andersen



No dia 19 de Agosto, de manhã cedo, as notícias abriam com o futebol, depois com a meteorologia, e depois com a lição de bom português. Só faltava terem posto a mosca logo a seguir e eu seria a recipiente premiada de uma sequência em bloco de temas que pouco me interessam. Sobretudo àquela hora, sendo que, de forma assaz indecente, sérias destas tendem a acontecer o tempo todo, como se eles quisessem mesmo que a pessoa se levante e vá arrumar a cozinha e tomar banho antes de dar outra espreitadela às notícias, que provavelmente irão a meio de umas histórias indistintas de fogos, e depois sair de casa. Nem toda a gente está de férias em Agosto. E, esteja ou não esteja, nem toda a gente tem paciência para a forma de dar notícias da televisão portuguesa, sobretudo logo de manhã.

Mas enfim.

A seguir, quando menos se esperava, as notícias tornaram-se subitamente interessantes.



       A esta hora já toda a gente deve ter ouvido falar da história dos barcos de civis que rumaram à Palestina, mas eu rememoro.

          A questão é que esta guerra horrorosa, com o comportamento indescritível e inaceitável que Israel tem observado e mantido sempre a bater o pé desde o primeiro dia[1], nunca mais chegou a qualquer espécie de fim, por muito que as Nações Unidas a condenassem repetidamente. Ainda por cima, a destruição da Palestina conta com o apoio sanguinário de Donald Trump, que chega ao ponto absolutamente alarve, que nós vemos passar na televisão em grande gala e sem qualquer vergonha, como se assistíssemos à trama de um espectáculo de marionetes de péssimo gosto, de receber Netanyahu em Washington para um banquete de honra, em que o segundo ergue o copo num brinde em que insiste que o primeiro devia receber o Prémio Nobel da Paz. É evidente que aquelas duas pessoas não têm qualquer noção nem do ridículo, nem da realidade do mundo em que vivem. Mas continuam vivas.  E nós continuamos a deixá-las viver.

          E portanto, já que passaram quase dois anos desde o início deste conflito[2] e os políticos não conseguiram nem alimentar nem tratar decentemente os palestinianos, nem chegar a um mínimo acordo de paz, os civis deitaram mãos à obra e fizeram o que entretanto já foi assunto do dia.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Com partida a 31 de Agosto de Barcelona, e a 4 de Setembro da Tunísia, a maior flotilha humanitária de sempre[3] contou com a partida de activistas de 44 países que se fizeram ao mar rumo à Faixa de Gaza. O seu objetivo era levar ajuda humanitária e tentar romper o bloqueio de Israel, chamando ao mesmo tempo a atenção do mundo para aquilo que os organizadores descrevem como “o genocídio em curso contra o povo palestiniano.”

E, nos barcos que partiram de Barcelona a 31 de Agosto, apareciam uns nomes já habituais como o de Greta Thunberb, que já não tem longas tranças e já nem sequer é tão loirinha[4], ou o neto de Nelson Mandela, Mandla Mandela. Mas, desta vez, a iniciativa contava também com presença de três portugueses: a atriz Sofia Aparício, o defensor dos direitos humanos Miguel[L1]  Duarte[5], e a coordenadora do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua[6]. Os barcos que partiam mais tarde de vários portos da Tunísia somavam-se em várias dúzias. Se tudo isto é heroico ou não, não sei. No mínimo, requer a todos os participantes que estejam prontos para uma grande resiliência emocional: as duas últimas tentativas de levar ajuda humanitária por mar à Faixa de Gaza, em Junho e Julho, foram interceptadas pelas tropas israelitas em águas internacionais, com os barcos Madleen e Handala a serem levados para portos israelitas e os seus tripulantes e passageiros detidos e deportados em seguida. Ora, há muitas formas de deter e deportar. Mas ninguém está a ver Israel a praticar nenhum destes actos com meiguice, e muito menos se estiver perante uma frota gigante de civis indignados.

Antes de partir, Mariana Mortágua[7] fez as únicas declarações directamente ligadas ao seu estatuto político. Lembrando que “a última missão que conseguiu furar o bloqueio há mais de uma década integrava a Marisa Matias”, então eurodeputada, disse que aceitou o convite por entender que “Portugal deve ter uma delegação e ela deve ser composta por titulares de cargos públicos e figuras públicas, pois isso ajuda a chamar a atenção para a missão humanitária e essa presença protege a flotilha”, tornando mais difícil ao governo israelita bloquear a sua passagem.

 “A proteção diplomática que tenho enquanto deputada ajuda esta missão, e esse foi um dos elementos que ponderei para aceitar o convite”, prosseguiu a orientadora bloquista no comunicado dirigido ao Governo português sobre a sua participação na missão, apelando a que sejam feitos os esforços diplomáticos para garantir “a proteção necessária à passagem segura destas embarcações com ajuda humanitária”.

O Governo ainda se comportou durante uns tempos como se não tivesse nada a dizer. Finalmente, a 19 de Agosto, o Ministro dos Negócios Estrangeiros achou que estava na altura de posar à entrada do Parlamento com um ar muito sério e digno, e dar uns bons acoites nessa tal dessa descarada dessa deputada do Bloco de Esquerda.

Então agora Mariana Mortágua julga-se no direito de insultar o Governo Português?” – diz Paulo Rangel, extremamente sério, como se não tivesse reparado que, uma vez sem exemplo, Mariana Mortágua acaba de não insultar absolutamente ninguém e muito menos o governo. – “Ela pode querer que o povo português esqueça, mas nós nunca esqueceremos, nem deixaremos que se esqueça. Mariana Mortágua já dirigia o Bloco de Esquerda no tempo em que António Costa era Primeiro-Ministro, e, como tal, nessa altura fez parte integrante do seu governo de esquerda[8]. E esse governo nada fez, nada fez, nada fez, Meus Senhores, para pôr fim às batalhas constantes entre Israel e a Palestina!

É curioso que não se tenha ouvido ninguém, entre quem esteve presente e quem ouviu em casa, no mínimo murmurar, com todo o devido respeito, então mas…

…então mas o gajo está parvo?

Antes de mais nada, quem esteve no governo de António Costa no tempo da “Geringonça[9]” não foi Mariana Mortágua, mas sim Catarina Martins. E desculpem mas um político, se é um bom político e mais ainda se tenciona chamar à colação um determinado partido na entrada da Assembleia, tem a obrigação de estudar aquilo de que vai falar[10]. Confundir Catarina Martins com Mariana Mortágua, para um político no activo, quase parece um daqueles lapsus linguae que roubaram a Joe Biden qualquer hipótese de voltar a candidatar-se no último ano antes das eleições, quando era demasiado tarde para preparar devidamente outro democrata que o substituísse[11]. Mas o pior desta picardia é falar de ninguém ter feito nada para travar a chacina de Israel no tempo da “Geringonça”, como se essa chacina, situada no presente, se tivesse situado antes entre 2015 e 2019, quando a Geringonça esteve no poder[12].

O Ministro dos Negócios Estrangeiros podia escolher a AR para recusar, em público, qualquer apoio do Estado Português à Flotilha da Liberdade. Mas era bom que se munisse de argumentos válidos, que, já agora, não o cobrissem de ridículo. Imagina-se, por não haver outro remédio senão imaginar, tal é a descrença que os portugueses têm hoje nos seus governantes, que António Costa faria o mesmo com ou sem Geringonça. Ou seja, também ele, em pessoa, se encarregaria de espingardar contra qualquer opção do governo de direita que, por qualquer razão de sentido contrário, o irritasse na mesma medida. Creio que traria o anúncio público bastante melhor preparado. E que o debitaria a sorrir. O efeito global seria melhor. Mas não importa. Num caso como este, seria à mesma uma escolha cuidadosa de palavras, destinadas e alinhadas numa frase onde a língua portuguesa seria usada por forma a manipular discretamente a verdade.

Dá ideia de que que eles entram para as Js e começam logo os seus estudos superiores de demagogia.

E parece que, depois de os terem concluído, já não se livram do capitalismo das palavras mesmo que queiram.

E pensar que a iluminação visionária da Sophia criou este poema logo em Junho de 1974. O dom da poesia perfeita é tão absolutamente espantoso como o dom de saber ver o futuro. Nós é que éramos uns brutos ignorantes.

COM FÚRIA E RAIVA

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



[1] Digamos que é aquele estilo “Ai deste-me um estalo? OK, então vou destruir o teu bairro inteiro”.

[2] O primeiro passo do conflito foi, indiscutivelmente, dado pelo Hamas. No entanto, foi o passo de um anão comparado com a fúria de um gigante com que Israel procedeu à terraplanagem de Gaza, reduziu a conta-gotas a entrada de alimentos, e dificultou propositadamente o funcionamento do equipamento hospitalar. Enquanto os palestinianos morrem de fome e de falta de cuidados médicos, Israel acusa-os, e às organizações encarregues da prestação de cuidados, de serem os únicos culpados – por negligência e desvio de fundos. Que Donald Trump está do lado do genocídio para que seja possível construir em Gaza um colossal condomínio de luxo à beira do Mediterrâneo (em que ele terá, certamente, a sua parte), isso já toda a gente sabe.

[3] Conhecida globalmente como a Global Sumud Flotilla associa coordenadores, organizadores e participantes da Flotilha da Liberdade, da Flotilha Sumud do Magrebe, do comboio Sumud Nusantara e do Movimento Global Para Gaza.

[4] O que quer dizer que cresceu muito desde que apareceu nas Nações Unidas pela primeira vez. Podia ter desistido. Mas nunca desistiu.

[5] Por acaso era simpático alguém ter posto mais ênfase nos nomes destes dois.

[6] Que, entretanto, de repente apareceu em Lisboa a apoiar a candidatura da Catarina Martins à Presidência da República. Estas coisas são muito chatas. Tiram a credibilidade aos movimentos de defesa de outros povos, e às reais intenções das pessoas que os incorporam.

[7] Sem se saber ainda quem iria substituí-la na sua ausência.

[8] Conceito e/ou frase repetidos várias vezes, para que as pessoas recordem o tal Governo com vários partidos de esquerda.

[9] Não houve outra altura em que o Bloco de Esquerda tenha feito parte do “Governo de Esquerda” de António Costa.

[10] Eu estudei. Há datas, há nomes, há grafias que a gente já nem sabe se levam uma ou duas consoantes… e temos a obrigação de fazer bem o nosso trabalho, se queremos mesmo fazê-lo. É para isso mesmo que existe o Google, Senhor Ministro. Ainda por cima, ao contrário de mim, o senhor tem certamente assistentes, trainees, secretários, estagiários, e mais outros tantos jovens que lhe procuram em cinco minutos tudo o que o senhor precisar de saber.

[11] Na América estas escolhas são feitas com muita antecedência, depois de uma longa disputa interna. O candidato selecionado começa desde logo a dar nas vistas, e não demora muito a nomear o seu candidato a vice-presidente.

[12] Outra que eu fui ver ao Google, senhor ministro. Além de a política interna não ser a minha área de especialidade, na época da Geringonça eu estava nos Estados Unidos. Poderia falar de cor sobre os dois mandatos Obama, mas de Portugal nesses tempos não posso.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.