DA VARANDA DA LUZ
Santa Clara 1.1

Cheguei atrasado mais uma vez, confesso. Não foi, como alguns poderiam suspeitar, por desleixo, mas antes por uma espécie de cálculo tácito: há jogos para os quais se vai com espírito de peregrinação, há jogos que exigem pontualidade de relógio suíço, há jogos em que se chega cedo para beber o ambiente, como se o estádio fosse templo e o aquecimento liturgia. E depois há estes jogos, os burocráticos, que mais parecem formulários do campeonato: é preciso preenchê-los, carimbar e entregar, mas sem alma.
Este Benfica-Santa Clara, empurrado no calendário para uma sexta-feira pela avidez das competições europeias, tinha precisamente esse ar de expediente, de nota de rodapé. Entrei, portanto, tarde e resignado, sem a vertigem das noites grandes, convencido de que seriam noventa minutos mornos, um resultado previsível, apenas a decidir a margem da vitória.

E o jogo, generoso na sua mediania, confirmou as expectativas. O Benfica rodava a bola como quem lava-loiça ao fim do jantar: movimentos repetidos, gestos mecânicos, nenhum prazer. O Santa Clara, obediente até à caricatura, defendia-se com disciplina açoriana, fechado como quem enfrenta um temporal no canal da ilha. Uns ossos de jogada aqui, uma tentativa ali, mas sem chama. ↓
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Parecia um treino puxado, desses em que os músculos sofrem mais do que o coração vibra. Até que, no meio da pasmaceira, um gesto desastrado trouxe a primeira variação: o lateral esquerdo do Santa Clara, Paulo Victor, tão certinho na postura, acertou certeiro na cara de Tomás Araújo. Amarelo, revisão do VAR, cartão vermelho, onze contra dez.
A monotonia parecia abrir-se para a lógica inevitável: mais de uma hora para transformar a superioridade numérica em golo. A Luz suspirou, convencida de que a vitória estava sendo inscrita nas estrelas, mas afinal estava apenas rabiscada no acaso.

Mas o futebol, esse grande mestre de ironias, não se deixa domesticar por estatísticas nem por aritméticas simplórias. Chegou o intervalo e nada. E a segunda parte prolongou a mesma ladainha: passes falhados, cruzamentos sem nexo, remates desinspirados, circulação de bola digna de um colóquio sobre burocracia.
O Santa Clara, em inferioridade, parecia até mais inteiro do que antes, como se o vermelho o tivesse purificado. Só num canto o destino se dignou aparecer: Otamendi, num rasgo de autoridade, cabeceou com violência; o guarda-redes defendeu para a frente; Pavlidis, carniceiro de área, empurrou para dentro. A Luz respirou, aliviada. A ordem natural parecia restaurada.
Só que, como sempre, a ordem natural do Benfica é o caos. Vieram minutos de posse inócua, de ataques em piloto automático, de remates que não lembram a ninguém. A sensação era a de que o jogo caminhava para a vitória magra, daquelas que envergonham pouco sem inspiram ninguém.

E foi então que se cumpriu a lição amarga. Noventa minutos no relógio, mais quatro de compensação, e muitos já a levantar-se para fugir ao trânsito e regressar às suas vidas. É nesse instante de confiança, nesse segundo de abandono, que o futebol escolhe cravar a sua punhalada.
Numa bola para a frente, Otamendi, em vez de pontapear a bola para onde calhasse, decidiu ser artista: quis recuar de cabeça para Trubin, gesto de elegância que o destino tratou de ridicularizar. Falhou o cálculo, ofereceu o presente, e um avançado do Santa Clara, do qual não quero aqui perpetuar o nome – e com a frieza de quem sabe que é nos instantes roubados que se fazem as grandes memórias – empatou.
Um a um. Silêncio. Um estádio gelado, reduzido a murmúrios. E depois a aumentar em assobios quando o árbitro deu o apito final. Um banho de água fria que nos lembra que a confiança, quando excessiva, é arrogância. O colapso da certeza é sempre repentino.

Há quem insista que isto é apenas futebol. Mas basta estar na Luz, nesse instante, para perceber que não é. Quando estas fífias surgem não se sente apenas a perda de dois pontos – é um reencontro com a fragilidade, com a precariedade das coisas humanas. É a pedagogia cruel de certos jogos do Benfica que mostra que nada é inevitável, que o destino não se cumpre por decreto, que até a superioridade numérica é apenas uma ilusão.
No fundo, um golo contra o Benfica nos momentos finais, aqui na Luz, nunca e apenas azar, mas também aselhice. . E, nestes momentos, resta-nos a amarga resignação.
número três t