DEPENDÊNCIA POLÍTICA E FALTA DE TRANSPARÊNCIA NA IMPRENSA REGIONAL

Município das Caldas gasta 145 mil euros para ficar com “espólio” de dois jornais, mas não revela o que comprou

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Elisabete Tavares|23/09/2025

A Câmara Municipal das Caldas da Rainha decidiu transferir 145 mil euros a dois jornais “da terra” justificando-o como aquisição de “espólio documental”, mas não são revelados detalhes daquilo que efectivamente adquiriu.

Em causa estão duas despesas no espaço de um ano, e num período que antecede as eleições autárquicas, que beneficiam dois periódicos locais, a Gazeta das Caldas e o Jornal das Caldas. A autarquia é liderada desde finais de 2021 por Vítor Marques, antigo presidente social-democrata da União de Freguesias das Caldas da Rainha (Nossa Senhora do Pópulo, Coto e São Gregório), mas eleito para a Câmara Municipal como independente. E recandidata-se para as eleições do próximo mês de Outubro, com o apoio do Partido Socialista.

Close-up view of stacked newspapers tied with twine, ideal for recycling and storage concepts.
Foto: D.R.

A primeira despesa do município caldense foi feita em 9 de Setembro do ano passado. A autarquia pagou à dona da Gazeta das Caldas, a Cooperativa Editorial Caldense, o montante de 100.280 euros, excluindo o IVA. Segundo os dados desta aquisição que constam a plataforma de registo de compras públicas, o Portal Base, o objecto do negócio foi a “aquisição de espólio documental – arquivo histórico Gazeta das Caldas”.

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Mas o município não fez nenhum contrato escrito, invocando o artigo 95.º do Código dos Contratos Públicos relativo a “locação ou aquisição de bens móveis ou de serviços”. Assim, não existem detalhes sobre esta aquisição, designadamente que tipo de documentos foram comprados e como foram avaliados. Também se desconhece onde é que a autarquia está a armazenar o “arquivo” comprado à Gazeta das Caldas e o que pretende fazer com ele.

A segunda despesa foi efectuada no dia deste mês de Setembro e envolveu o pagamento de 44.490 euros à Medioeste com a justificação de se tratar da “aquisição de espólio documental do Jornal das Caldas”. Também neste caso não foi efectuado qualquer contrato escrito e também não existem dados sobre o tipo de documentos que foram adquiridos pela autarquia.

Foto: D.R. / Museu Bordalo Pinheiro

A Gazeta das Caldas completa no próximo dia 1 de Outubro o seu centenário. Foi fundado em 1925 e terá um arquivo vasto. Já o Jornal das Caldas foi fundado em 1992. Assim, pelo menos no caso da Gazeta das Caldas, a autarquia poderá ter desejado ficar com alguns documentos históricos em termos da imprensa da região. Mas o quê? Ninguém quer dizer.

O PÁGINA UM questionou o presidente da Câmara Municipal das Caldas da Rainha sobre o que foi adquirido a estes dois jornais. Também quisemos saber o que a autarquia pretende fazer com os “espólios” adquiridos e onde estão armazenados. Até à publicação desta notícia ainda não recebemos qualquer resposta. Saliente-se que toda a documentação associada a estas aquisições, incluindo lista de bens, sua avaliação monetária e destino, são documentos administrativos, susceptíveis de serem solicitados por qualquer cidadão.

Segundo António Salvador, proprietário da Medioeste – que, além da Jornal das Caldas, gere o Jornal Mais Oeste e Jornal Região da Nazaré -, a aquisição do espólio documental dos dois jornais do concelho “visam salvaguardar o acervo documental destes, antes que fechem, face à crise do sector, tendo sido iniciativa do outro jornal (Gazeta) junto do município”. Salientou ainda que as despesas foram aprovadas pelo “Executivo por unanimidade e deliberado pela Assembleia Municipal, com três forças políticas na Câmara e quatro na Assembleia Municipal”.

Foto: D.R.

Certo é que as verbas pagas pelo município das Caldas aos donos dos dois jornais “da terra” ocorreram no último ano, coincidindo com o período que antecede as próximas eleições autárquicas.

Para as empresas proprietárias dos dois jornais, o dinheiro veio mesmo a calhar. A Medioeste fechou o ano de 2024 com um prejuízo de 70.260 euros depois de obter receitas de 108 mil euros. Assim, a verba que recebeu este mês da autarquia das Caldas de Rainha corresponde a 41% das receitas totais obtidas no ano passado. A não ser que este ano a Medioeste tenha receitas muito superiores às do ano passado, a empresa terá de registar o município das Caldas da Rainha como “cliente relevante” no Portal da Transparência dos Media, gerido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

Acresce que a Medioeste recebeu, no passado dia 12 de Agosto, a verba de 13.940 euros da mesma autarquia a título de “aquisição de publicidade” no Jornal das Caldas, o que representa mais de 10% do total, devendo também ficar registado no Portal da Transparência dos Media.

Organized filing cabinets stacked with indexed books in a library setting.
Foto: D.R.

No caso da dona da Gazeta das Caldas, ainda não houve registo das contas de 2024 no Portal da Transparência. Porém, em 2023, teve um lucro de 42.831 euros e receitas de 393 mil euros. Se as receitas registadas em 2024 forem da mesma ordem, somando a verba recebida da autarquia das Caldas, significa que o montante do encaixe da venda do “arquivo” da Gazeta das Caldas terá superado os 20% das receitas, o que também obriga a registo na ERC da autarquia como “cliente relevante”.

Acresce que a autarquia pagou à dona deste jornal, no passado dia 12 de Agosto, o montante de 19.045 euros, para a compra de publicidade na Gazeta das Caldas.

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Foto: D.R.

Se não restam dúvidas sobre a importância da preservação de arquivos e acervo documental com valor histórico, também se levantam questões sobre se ónus das facturas a pagar para tapar a crise na imprensa, seja ela regional ou nacional, deve sair do bolso do Zé Povinho, ou seja, dos contribuintes.

No caso destes dois jornais, a factura paga só no último ano pelos contribuintes para a compra de “espólios” e publicidade foi de 178 mil euros, excluindo o IVA. E se estas dependências do poder local nas contas da imprensa regional não são depois reflectidas num portal gerido pelo regulador sobre a transparência dos financiamentos, resta perguntar para que serve esse portal.

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