EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Será que nem com 16 mortes a opacidade dos (ir)responsáveis termina?

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Pedro Almeida Vieira|23/09/2025

Três semanas após o acidente do Elevador da Glória, já não se pode falar de um mero incidente mecânico, de uma avaria técnica resolúvel com melhor manutenção, troca de peças e relatórios de ocasião. O que se revelou foi, acima de tudo, a imagem de um Estado em falência: simultaneamente mau gestor e mau regulador — incapaz de assumir a função preventiva e independente que lhe caberia, reduzindo a fiscalização ao mínimo, quando não a zero, apenas para não ter trabalho.

O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que deveria certificar, inspeccionar e fiscalizar, preferiu refugiar-se em legislação dúbia. A Câmara Municipal de Lisboa, tutora política da Carris, limita-se a discursos de circunstância, como se não tivesse qualquer dever de escrutínio — e cujo expoente máximo foi a hipócrita convocatória de uma reunião extraordinária no dia seguinte às eleições autárquicas.

Já a administração da própria Carris, que gere estes equipamentos centenários, parece considerar que os cidadãos são intrusos e os jornalistas incómodos sempre que se exige transparência, ou seja, sempre que se pede documentação que deveria estar disponível no Portal Base.

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Nas últimas semanas, todos se têm escondido atrás das próprias falhas e fazem de tudo para diluir responsabilidades, como se a degradação de um símbolo histórico de Lisboa fosse apenas um acaso técnico sem culpados.

Mas aquilo que está em causa não é apenas perceber porque é que um ascensor secular, que deveria ser motivo de orgulho patrimonial e de confiança para quem o utiliza, falhou de forma tão grave. Está em causa saber se a Carris, a sua administração nos últimos anos — que incluiu, entre 2016 e 2022, Tiago Lopes Farias, professor de Engenharia Mecânica do Técnico — e o próprio IMT cumpriram os mínimos deveres de prudência e responsabilidade na substituição do cabo e na manutenção dos veículos.

Tiago Lopes Farias, professor do Instituto Superior Técnico de Engenharia Mecânica, foi presidente da Carris entre 2016 e Maio de 2022: foi no seu mandato que se mudou as características do cabo do elevador da Glória. Porquê: a administração actual da Carris, liderada por Pedro Bogas, não explica. Foto: IST.

Até agora, apesar das manifestações públicas de pesar e promessas de colaboração, o silêncio tem sido a regra. Não se conhecem oficialmente os contratos celebrados para a aquisição e instalação dos cabos; não estão acessíveis os cadernos de encargos que deveriam fixar as especificações técnicas; não há qualquer prova de ensaios de carga ou de resistência realizados após a instalação. Nada. A Carris escuda-se agora na investigação criminal.

Este comportamento é inaceitável numa empresa pública, financiada por dinheiros públicos e que presta um serviço público. O Portal Base, onde por lei devem estar publicados os contratos, permanece mudo. E a administração da Carris, à semelhança de tantas outras do sector dos transportes, invoca interpretações inaceitáveis — e ilegais — para não colocar ali os documentos. Depois do acidente, e após até ter tentado enganar jornalistas com uma minuta forjada, a Carris tem a obrigação moral de publicar tudo: contratos, especificações técnicas, justificações da escolha do cabo.

Não se trata de uma curiosidade de jornalistas ou académicos. Trata-se do direito dos cidadãos a saberem em que condições circulam equipamentos que transportam pessoas todos os dias. Se a administração não é capaz de agir com decência cívica, só lhe resta a demissão — caso contrário, permanece um perigo social à frente de uma empresa desta natureza.

Yellow tram ascends a steep cobblestone street.

Mais grave ainda é a ausência de qualquer prova de fiscalização independente por parte do IMT, cuja presidência se mantém em silêncio. Como é possível que um regulador com a responsabilidade de zelar pela segurança da mobilidade nunca tenha realizado inspeções regulares a um equipamento com mais de um século? Como é admissível que, depois da substituição de um cabo crítico, não tenha havido um ensaio público, documentado e sujeito a escrutínio técnico? Se o IMT existe apenas para carimbar o que as empresas entregam, então não é regulador: é cúmplice.

Não é difícil perceber o que se quer esconder. Há fortes indícios de que a Carris alterou as especificações técnicas entre 2020 e 2022, optando por cabos mais baratos e menos resistentes. É crucial perceber as razões dessa transição, nomeadamente a passagem de um cabo com alma de aço para outro com alma de fibra — e se essa decisão comprometeu directamente a segurança do ponto de amarração.

Essa alteração pode explicar a falha que originou o acidente, mas só a documentação — contratos, especificações técnicas, relatórios de ensaio — o pode confirmar. Não chega depender de fugas e documentos parciais. É preciso transparência total.

Actual Conselho de Administração da Carris.

Depois do trágico acidente de 3 de Setembro, Lisboa e o país não podem tolerar esta cultura de opacidade. Um acidente num funicular não é apenas um problema de engenharia: é um problema de confiança. Os lisboetas e turistas que diariamente utilizavam o Elevador da Glória têm o direito de saber se quem gere transportes públicos cumpre padrões de segurança ou se apenas poupa dinheiro à custa da vida humana.

O que este episódio mostra, mais uma vez, é a tendência nacional para abafar falhas em vez de as enfrentar. Não há relatório independente, não há dados públicos, não há transparência. Há apenas a expectativa de que uma investigação criminal politizada sirva para apaziguar a indignação, que os cidadãos esqueçam e que a imprensa se distraia.

Não basta que a Carris assegure que “alguém está a investigar”. É preciso abrir os arquivos, publicar contratos, expor cadernos de encargos, justificar opções técnicas, explicar porque não houve ensaios e, sobretudo, assumir responsabilidades. E é preciso que o IMT deixe de ser figurante, esclarecendo porque nunca fiscalizou, porque nunca exigiu ensaios, porque se limitou a confiar na palavra da operadora.

Se nada disto acontecer, teremos o retrato cru do país: um país onde os acidentes não servem para aprender mas apenas para enterrar, onde a gestão pública se faz de silêncio e encobrimento, e onde “regulação” é apenas um eufemismo para a abdicação do dever de proteger os cidadãos.

Este editorial não é um apelo. É uma exigência. A Carris, o IMT e a tutela política têm de prestar contas. Porque não se trata de parafusos ou cabos abstractos. Trata-se de vidas humanas, de confiança pública, de património que é de todos.

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