JULGAMENTO NO PORTO: GUSTAVO CARONA VS. PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Receita para acabar com o PÁGINA UM (e o respectivo antídoto)

Há receitas fáceis para acabar com um jornal independente. Não se pense que é preciso censura explícita, polícia a bater à porta ou confiscos de máquinas, como em tempos sombrios. Não: em democracia, os mecanismos são mais subtis, mais higiénicos, mais sofisticados. Basta seguir o guião que tão bem tem sido ensaiado contra mim e contra o PÁGINA UM.
O exemplo mais acabado vem de Gustavo Carona, médico que, durante a pandemia, encontrou nos media uma ribalta permanente, sustentada na retórica do medo e da urgência, no alarme contínuo que dividiu cidadãos entre bons e maus, entre responsáveis e irresponsáveis. O tempo passou, a poeira assenta, e hoje não faltam evidências sobre os erros de palmatória cometidos na gestão da crise.

Mas em vez de responder pela sua retórica alarmista, Carona preferiu acusar-me de 31 crimes de difamação. Trinta e um. Pede uma indemnização de 40 mil euros. Acusa-me de danos na sua saúde, apesar de ele próprio revelar desde 2022 que sofre de um síndrome associado à doença de Lyme transmitido pelos seus cães através de carraças. ↓
O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
Amanhã, dia 25 de Setembro, pelas 9h00, sento-me assim como arguido no Tribunal do Bolhão, no Porto, no ‘banco dos réus’.
E porquê? Porque tive a ousadia de criticar Gustavo Carona com base em dados que comprovavam os seus exageros e mentiras – os exageros são sempre mentiras – e pela sua postura segregacionista e belicosa contra quem pensava diferente. Porque escrevi com mordacidade. Porque fiz ironia, porque brinquei com palavras. Vejamos alguns exemplos que dão a exacta medida do absurdo:
– Sou acusado – eu que tenho orgulho de ter uma biografia literária que não envergonha -de crime por gozar com um poema francamente mau, escrito pelo próprio, onde se rimam “parte” com “reparte-te” e “abraço” com “traço”, numa estética de escola secundária. Criticar poesia medíocre passou a ser difamação.

– Sou acusado por lhe chamar “médico da treta”, expressão satírica, tão leve como dizer de um fadista desafinado que é “fadista de vão de escada”.
– Sou acusado por trocadilhos jocosos, como o “Cónego Guca Stavorona”, mero exercício de caricatura verbal, sem imputação de crime ou desonra profissional.
– Sou acusado por ironizar com a sua auto-intitulação de Humanitarian Doctor, quando usei as siglas “HD” e “Full HD”, em tom de brincadeira literária.
– Sou acusado até por lhe chamar “cromo-mor”, palavra de uso banal para designar comportamento excêntrico ou ridículo.
Tudo isto são crimes, diz ele. Ele que chegou a responsabilizar-me de estar por detrás de uma tentativa de agressão de que terá sido vítima. E o Ministério Público, em vez de fazer o que devia — analisar os contextos, distinguir crítica de imputação factual, separar ironia de injúria — preferiu acompanhar estas acusações de cruz, como se fosse um mero carimbador e não uma instituição com especiais deveres de defender a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.

Pior: um juiz, em vez de se pronunciar sobre a substância, entendeu antes da primeira audiência, como primeira e única diligência, mandar a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais saber se eu – que não tenho cadastro nem sequer uma multa de trânsito nem um atraso na Autoridade Tributária e na Segurança Social – vivo numa casa com água e como ocupo os meus tempos livres. Eis a solidez da justiça portuguesa.
De uma coisa já não me livro: terei de me deslocar a pelo menos três audiências no Porto, gastando tempo que não tenho e dinheiro que não sobra, em estadias, deslocações e encargos com a defesa. E tudo porque, escrevendo, critiquei um senhor que fez da pandemia um palco de vaidade, criando pânico e segregação.
Nos quase quatro anos de existência doPÁGINA UM, já perdi a conta às ameaças de processos judiciais e de outra índole. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abriu-me dois processos disciplinares que acabaram em nada, mas que cumpriram o objectivo: chatear, intimidar, consumir energia. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decide arbitrariamente como aplicar a lei, sempre com zelo redobrado no meu caso e indulgência noutros.

A ERC chegou ao desplante de abrir um processo contra o PÁGINA UM porque um jornalista promíscuo da CNN – apanhado em irregularidades – quer o encerramento deste jornal. Em vez de proteger o jornalismo independente, a ERC – liderada por Helena Sousa – protege os algozes da imprensa e quem mercantiliza o jornalismo.
E há mais. Nos próximos meses terei dois processos em tribunal: um movido pela Ordem dos Médicos (acrescido os médicos Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas) e pelo almirante Gouveia e Melo; outro que une as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, Apifarma (a indústria farmacêutica) e a ministra da Saúde, ambos sob a mesma chancela de um escritório de advogados. Não sei ainda quem paga a conta, mas sei que a intenção é clara: esmagar pela litigância, paralisar pela ameaça, silenciar pelo desgaste.
Chama-se a isto SLAPP, sigla inglesa para Strategic Lawsuit Against Public Participation: acções judiciais estratégicas para sufocar a participação pública. É a arma preferida de quem não suporta o incómodo da crítica. E se há algo que sei é que sou incómodo. Não caibo em jantares de bastidores, não recebo convites de assessorias, não vivo de publicidade de empresas públicas ou privadas. Não me podem ver nem pintado nas direcções de muitos jornais instalados.

Eu percebo porquê: o PÁGINA UM mostra que é possível fazer jornalismo com independência ideológica e partidária, sem obediência a agendas de poder.
Que me resta, então? Resistir até durar, porque a desistência seria a vitória de quem considera o jornalismo independente um incómodo – por muito que bata no peito contra a desinformação. E o PÁGINA UM tem durado porque não depende de patrocínios nem de dinheiros escondidos. Dura porque é sustentado por quem realmente acredita nele: os leitores.
Ao contrário do que acontece com quase toda a imprensa, que se divorciou do seu público para viver de expedientes, nós existimos apenas porque os leitores assim o querem. Cada apoio, cada doação, cada subscrição, cada gesto de incentivo é o que nos mantém vivos – e se por vezes não damos retorno (como deveríamos), tal não se deve a ingratidão, mas sim por procurarmos privilegiar aquilo que sabemos fazer: notícias e causar debate, mesmo quando não agradamos a todos todas as vezes (mal estará um jornal que conseguir esse pleno).

E é isso que, no fundo, incomoda tanto: um jornalismo que não deve nada a ninguém, excepto a quem lê. Não precisamos de favores do Estado, de publicidade institucional, de contratos ocultos com grupos de interesse. Precisamos apenas de leitores livres.
Porém, reconheço as nossas fragilidades e da existência de uma receita aparentemente simples para acabar com o PÁGINA UM: repetir processos judiciais, abrir investigações disciplinares sem fundamento, multiplicar ameaças, gastar o meu tempo em tribunais e em respostas a entidades que confundem regulação com perseguição. O objectivo é claro: cansar-me, isolar-me, arruinar-me.
Contra isto, porém, um antídoto: continuar. Continuar porque a verdade é incómoda, mas necessária. Continuar porque a liberdade de imprensa não se mede nos editoriais cheios de princípios, mas na prática diária de enfrentar poderes e interesses. Continuar porque a independência tem um preço, e eu aceito pagá-lo.

Sei que este jornal não recolhe simpatias fáceis. Sei que não teremos o conforto das palmadinhas nas costas. Sei que muitos prefeririam que desaparecêssemos. Mas também sei que o PÁGINA UM mostra aos leitores que não se deixa enganar pelo ruído, que sabe distinguir jornalismo de propaganda, e que valoriza um espaço onde a verdade não é negociável.
É por isso que escrevo este editorial: para dizer que a receita para nos matar está em curso, mas também para lembrar que a nossa força está onde sempre esteve — nos leitores. Enquanto eles acreditarem em nós, resistiremos. E resistir, neste tempo de silêncios comprados nesta suave tirania, é já uma vitória.