OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

A doutora Irene Pimentel e a tirania dos rótulos

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Pedro Almeida Vieira|04/10/2025

Há muito que as sociedades se tornaram arenas onde o combate de ideias foi substituído pelo duelo de rótulos. Já não se busca refutar um argumento, mas extirpar o seu autor com o selo conveniente — “negacionista”, “populista”, “fascista”, “extremista”, “antidemocrático”. Em tempos de redes e reacções instantâneas, a razão perdeu o passo para o reflexo condicionado.

A vitória, hoje, mede-se em “likes”, “retweets” e palmas digitais; o raciocínio cedeu o lugar à claque. É o triunfo da retórica preguiçosa sobre o debate informado, da vaidade performativa sobre a reflexão demorada. E este dogmatismo, que se disfarça de virtude moral, revela afinal uma patologia intelectual: o medo de pensar.

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A erosão do diálogo não resulta de mera incivilidade: é o sintoma de um tempo em que a autoridade substituiu a razão. Vence não quem demonstra, mas quem ostenta — um título académico, um prémio intelectual, uma tribuna televisiva. Já não se trata de argumentar, mas de invocar estatuto. Ora, a autoridade sem razão é apenas arrogância legitimada; e o prestígio sem humildade converte-se em censura.

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Confesso que, vindo da esquerda — hoje órfão partidário, mas não de princípios —, aprendi mais pela leitura e pela experiência do que pelos catecismos de ocasião. De Marx a Orwell, de Chomsky a Popper, sempre me ficou a ideia de que a liberdade é o primeiro e o último baluarte da dignidade humana. E foi precisamente durante a pandemia — esse laboratório da servidão consentida — que percebi como é frágil a promessa constitucional de direitos invioláveis.

Quando mais era necessário pensar, proibiu-se questionar; quando mais urgia duvidar, exigiu-se fé. Vi a Constituição convertida em papel decorativo e a liberdade de expressão reduzida à liberdade de concordar.

Aprendi então que compreender o outro não é aderir às suas ideias, mas reconhecer-lhe o direito de as ter. E esse exercício de empatia é a antítese do cancelamento moral que hoje domina uma certa esquerda — a mesma que se julga detentora do monopólio da virtude, mas que pratica o linchamento simbólico com zelo inquisitorial.

À medida que a direita populista cresce, em parte alimentada pelos erros da própria esquerda, esta responde com mais intolerância e menos autocrítica. O resultado é previsível: o eleitorado afasta-se, não por se ter tornado bárbaro, mas por se ter cansado da hipocrisia.

A polémica recente envolvendo Irene Flunser Pimentel, historiadora premiada e respeitada, é um exemplo paradigmático. No auge da comoção pela morte de Charlie Kirk — um jovem conservador americano, católico e combativo no debate público —, Pimentel não resistiu ao impulso digital de o rotular como “simpatizante nazi”, “anti-democrático” e outros mimos. Não discutiu as suas ideias; decretou-lhe a infâmia. Fê-lo sem rigor, sem contexto, sem compaixão.

Debate original e integral onde Charlie Kirk defende de os ‘Founding Fathers’ não defendiam a democracia pura e, nessa linha, a palavra Democracia não surge na Constituição dos Estados Unidos.

E quando a jornalista Elisabete Tavares, no PÁGINA UM, ousou questionar-lhe a leviandade, a historiadora reagiu não com argumentos, mas com indignação. Acusou o nosso jornal de extrema-direita, reivindicou-se vítima e, claro, invocou a autoridade do The Guardian — porque o dogmático nunca erra: é o mundo que o desrespeita.

E claro, na incandescência das redes sociais, lançou ela as suas Fúrias contra um projecto de jornalismo independente que não confunde isenção com ideologia, nem lucidez com dogmatismo. Fúrias dignas das tragédias áticas, desatadas contra quem ousa existir fora do seu templo moral. E com tantas palmas, a doutora Pimentel, na sua bolha, persistirá, persistirá nos rótulos até não precisar sequer de raciocinar e rebater.

No universo maniqueísta da doutora Irene Pimentel, ela habita, por direito divino, o lado da luz — e todos os demais, por simples acto de desacato à sua opinião de ‘trazer por casa’, são empurrados para as trevas. Assim, num salto lógico digno de um delirium ad reductum — que já não convoca o inevitável Hitler, mas o omnipresente Trump —, quem ousa apontar-lhe a falta de objectividade ou beliscar-lhe a virtuosa infalibilidade é, ipso facto, lançado ao inferno dos proscritos: cúmplice do Estado Novo, sequaz da PIDE e, por extensão metafísica, aliado de todos os demónios disponíveis para o conveniente contorcionismo ideológico.

Irene Flunser Pimentel. Foto: DR

Ora, o problema não é apenas moral: é epistemológico. Um historiador que manipula uma citação trai o próprio ofício, que assenta na crítica das fontes e na integridade da narrativa. Se um académico, habituado a lidar com documentos, não distingue um facto de uma opinião, o que garante que a sua obra — sobre o Estado Novo ou sobre qualquer outro tema — não reproduz o mesmo viés? Que valor tem a autoridade quando a verdade é sacrificada à convicção?

Já agora, convém salientar que duvidar dos métodos da doutora Pimentel não equivale a negar a existência do Estado Novo ou da sinistra PIDE. Mal estaríamos se a prova da malignidade do regime salazarista dependesse da sua exegese, como se a História só tivesse desvendado os seus horrores porque a doutora Pimentel, num rasgo iluminado, se dignou a investigá-los e a revelar ao mundo o que nenhum outro mortal teria ousado vislumbrar sem a sua intercessão académica.

Até porque a questão que eu levanto (e a Elisabete já o fizera) transcende a pessoa: é o sintoma de um meio cultural que confunde virtude com militância. O historiador transforma-se em activista, o jornalista em cruzado, o académico em pregador. E, nesse processo, a verdade torna-se refém da ideologia. O resultado é uma sociedade que já não debate — apenas denuncia e confronta o outro com rótulos. Onde a dúvida é crime e o contraditório, heresia.

Poder-se-á pensar que esta estratégia é eficaz: cala-se o adversário, preserva-se a bolha. Mas, a prazo, o custo reputacional é devastador. Quem vive de anátemas acaba por ser vítima deles. A falácia pode funcionar uma vez, duas talvez; mas a repetição expõe o artifício. Ninguém acredita eternamente em quem grita “lobo!” a cada sombra. O tempo, esse juiz silencioso, revela sempre a impostura.

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A acrimónia da doutora Pimentel é um aviso exemplar aos que confundem a ligeireza da rede social com a gravidade de uma cátedra, a vaidade opinativa com o exercício do magistério e a mera opinião com sentença definitiva. Não é o PÁGINA UM que está em causa, nem sequer Charlie Kirk; são as Irenes Pimenteis desta vida: é o princípio elementar de que a dignidade do debate depende da honestidade intelectual. A crítica é legítima; a difamação, nunca. A História não se escreve com insultos.

Por isso, e com a serenidade que a idade deveria inspirar, apelo à Dra. Pimentel: não desça ao rés-do-chão digital. Não comprometa a obra que construiu com o azedume daqueles quem confundem discordância com ataque. O historiador que semeia ódio colherá descrédito. E o académico que troca a fonte pela raiva acabará ele próprio a ser objecto de estudo — exemplo de como a vaidade e o dogma corrompem a ciência.

O dogmatismo é o ópio dos intelectuais. E quando a inteligência se converte em fé, a liberdade morre sem ruído.

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