OPINIÃO

Alterações climáticas: a explicação preguiçosa

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Gonçalo Elias|06/10/2025

As alterações climáticas (AC) estão na ordem do dia e são, cada vez mais, invocadas para justificar todo o tipo de “acontecimentos”, desde grandes incêndios a fenómenos meteorológicos supostamente atípicos, passando por inundações, secas, etc. Sempre que acontece um evento com características anormais, logo aparece alguém a classificar o fenómeno como “extremo” e a atribuir a culpa às AC, deixando implícita a ideia de que, se não fossem as AC, não haveria cataclismos naturais nem sobressaltos causados pelos elementos.

Não há grandes dúvidas de que o clima está a mudar e que isso tem consequências para a humanidade e também para a vida selvagem. Contudo, se por um lado é verdade que as AC acarretam diferentes impactos, alguns deles bastante sérios, tal não significa que tudo o que muda à nossa volta a elas se deva. Apontar acriticamente o dedo às AC para explicar todo e qualquer fenómeno é uma abordagem preguiçosa, porém conveniente: as AC são aquele “inimigo sem rosto” que serve de saco de pancada e arca com todas as culpas sem se queixar. Deste modo, dispensa-se a busca por responsabilidades mais concretas.

a group of seagulls sitting on a white fence

O problema desta abordagem, já de si cientificamente muito questionável, é que coloca o foco nas AC e ofusca outros factores que podem ser tão ou mais relevantes.

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Um dos temas que tenho acompanhado com atenção é o da distribuição das aves selvagens na Europa. Ao longo das últimas décadas, os padrões de distribuição de muitas espécies têm vindo a alterar-se bastante, havendo umas a expandirem-se e outras a regredirem.

A explicação preguiçosa diz que tais variações acontecem “obviamente” por causa das AC. A teoria resume-se assim: com o aquecimento global, as zonas de conforto das espécies, isto é, as áreas geográficas em que cada uma delas encontra condições favoráveis de sobrevivência, vão-se deslocando para norte e, portanto, é expectável que as áreas de distribuição sofram uma expansão a norte (à medida que fica menos frio em latitudes elevadas) e uma contracção a sul (onde vai ficando demasiado quente e mais seco).

Ou seja, supostamente as aves respondem às AC movendo-se para norte, podendo assim continuar a beneficiar das condições óptimas. Este raciocínio, aparentemente lógico, assenta numa premissa errada: a de que, num cenário sem AC, as áreas de distribuição das aves se manteriam estáveis. Todavia, a realidade é bastante diferente, pois há outros factores que condicionam fortemente as distribuições.

O segundo atlas europeu de aves nidificantes, ou European Breeding Bird Atlas (EBBA2), publicado em 2020, expõe detalhadamente as alterações registadas desde o EBBA1, realizado na década de 1980. Os mapas que se seguem foram retirados do site do EBBA2.

Exemplo 1: o abelharuco (Merops apiaster)

Ao longo das últimas duas décadas, o abelharuco teve uma forte expansão para norte na Europa e ocupou diversos países em latitudes temperadas. Esta espécie sido mencionada por diversos autores como um caso típico de uma ave que se expandiu para norte como consequência das AC. O efeito parece algo exagerado, porque, mesmo com algum aquecimento, as temperaturas na Alemanha estão, ainda hoje, bastante abaixo das que se registavam no Mediterrâneo há 40 anos.

Mapa comparativo da distribuição do abelharuco; a azul as quadrículas onde a espécie apareceu do EBBA1 para o EBBA2, a laranja onde desapareceu entre os dois atlas e a cinzento onde se manteve.

Exemplo 2: o tordo-ruivo (Turdus iliacus)

Há quarenta anos, o tordo-ruivo, espécie típica do norte da Europa, nidificava em diversas zonas temperadas europeias: Polónia, Chéquia, Eslováquia, Alemanha (incluindo nos Alpes) e Inglaterra. Hoje quase desapareceu como espécie nidificante de todos estes países e a sua área de distribuição abrange a Escócia, os países nórdicos, os países bálticos e a Bielorrússia. A área de distribuição deste tordo está claramente a deslocar-se para norte. Terá a Europa central ficado demasiado quente para esta espécie?

Mapa comparativo da distribuição do tordo-ruivo; a azul as quadrículas onde a espécie apareceu do EBBA1 para o EBBA2, a laranja onde desapareceu entre os dois atlas e a cinzento onde se manteve.

Os dois exemplos anteriores parecem confirmar a teoria apresentada, seja com expansões a norte ou com contracções a sul. Contudo, quando continuamos a ver mapas, surgem algumas dúvidas.

Exemplo 3: o rolieiro (Coracias garrulus)

O caso do rolieiro não se encaixa na lógica acima descrita. Efectivamente, o mapa desta ave revela que se tem registado um aumento da presença a sul, e não a norte: repare-se como as novas quadrículas estão sobretudo na orla do Mediterrâneo e do Mar Negro. Além disso, as quadrículas onde a espécie desapareceu, ainda que distribuídas um pouco por todo o continente, surgem em maior número na metade norte da área de ocorrência, seja na metade norte da Península Ibérica, seja acima de tudo no leste europeu.

Claramente, o “centro de gravidade” do rolieiro moveu-se para sul, como que desafiando a narrativa segundo a qual as espécies se deslocariam para norte com o aumento das temperaturas. Poderia este ser um caso isolado, mas não é.

Mapa comparativo da distribuição do rolieiro; a azul as quadrículas onde a espécie apareceu do EBBA1 para o EBBA2, a laranja onde desapareceu entre os dois atlas e a cinzento onde se manteve.

Exemplo 4: o picanço-de-dorso-ruivo (Lanius collurio)

Este picanço é uma espécie escassa em Portugal. Historicamente só era conhecido das terras altas do norte, mas, em anos recentes, têm sido detectados novos núcleos cada vez mais para sul, havendo já vários casos de nidificação a sul do rio Douro. Na vizinha Espanha, o terceiro atlas de nidificantes dá conta de uma expansão semelhante para sul, com ocupação do Sistema Central.

O mapa do EBBA2 mostra também que a espécie está a regredir mais a norte, nomeadamente no Reino Unido (de onde praticamente desapareceu) e em várias zonas da Escandinávia, e a leste, como na Itália e na Grécia. A situação em Espanha parece contrariar a narrativa dominante e o atlas espanhol apresenta uma interpretação bizarra: reconhece a expansão para sul, mas salienta que os modelos baseados nos efeitos previstos das AC prevêem uma forte contracção deste picanço nas próximas décadas para as zonas altas e frias.

E se essa contracção não se verificar e a expansão para sul continuar, quanto tempo será necessário até os autores aceitarem a realidade e admitirem que os modelos baseados apenas em AC precisam de ser revistos?

Mapa comparativo da distribuição do picanço-de-dorso-ruivo; a azul as quadrículas onde a espécie apareceu do EBBA1 para o EBBA2, a laranja onde desapareceu entre os dois atlas e a cinzento onde se manteve.

Estes quatro exemplos foram seleccionados, entre várias centenas de espécies de aves, para ilustrar diferentes situações de alterações registadas nas áreas de distribuição. Claro que a interpretação destas variações e as conclusões que daí resultam dependerão sempre do conjunto de exemplos escolhidos.

Assim, e para eliminar o inevitável enviesamento resultante de uma amostra pouco representativa, nada melhor que olhar para os resultados globais, isto é, para o conjunto de todas as espécies registadas no atlas, que são muitas centenas. Estes resultados foram apresentados publicamente pela equipa que organizou o EBBA2, num workshop realizado em Dezembro de 2020 e cuja gravação está disponível online.

O orador Aleksi Lehikoinen que apresentou os resultados globais do projecto (1h19m a 1h29m) exibiu um gráfico de barras, no qual se representa o número de espécies cuja distribuição se moveu para norte e para sul, bem como a distância média de deslocamento.

Variações latitudinais nas áreas de distribuição, registadas entre o EBBA1 e o EBBA2.

Os resultados são surpreendentes: embora em termos globais haja uma ligeira deslocação para norte à velocidade média de 1 km por ano, o próprio orador releva o facto de 42% das espécies se terem deslocado para sul e reconhece que este resultado é bastante diferente do que a equipa esperava. Como interpretar que haja tantas espécies a deslocarem-se em sentido contrário ao que “era suposto”? A conclusão óbvia, segundo o próprio, é a de que haverá outros factores em jogo para além das AC e que será necessário estudar de perto esses factores, para os compreendermos melhor.

As alterações climáticas são, sem dúvida, um aspecto a ter em conta na avaliação das políticas ambientais, mas é essencial não esquecermos que elas representam apenas uma parcela numa equação complexa, da qual fazem parte outros factores limitantes – no caso das aves, há a considerar as alterações de uso do solo, a perturbação, a introdução de espécies exóticas e o abate intencional. Não devemos, pois, cair no erro de tirar conclusões precipitadas com base em pressupostos simplistas, desconsiderando outros aspectos que são igualmente relevantes, caso contrário estaremos não apenas a fazer má ciência, como também a alimentar ilusões acerca da forma como evolui o mundo que nos rodeia.

Gonçalo Elias é ornitólogo, com uma vasta bibliografia de livros de divulgação de aves.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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