MANUTENÇÃO POR ANO: PORTO GASTA 47.500 EUROS POR VEÍCULO; LISBOA APENAS 3.00 EUROS
‘Low cost’ no contrato dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações

A Carris dispensou a MNTC — a empresa também responsável pela manutenção do Elevador da Glória no momento do acidente mortal de 3 de Setembro — de apresentar qualquer comprovativo das qualificações profissionais dos técnicos afectos à manutenção dos eléctricos históricos e articulados Siemens , antes da adjudicação.
Ou seja, a empresa municipal está a permitir que a manutenção seja realizada por pessoas sem experiência ou qualificações. Recorde-se, aliás, que, apesar de ser uma obrigação contratual da MNTC, o cabo do Elevador da Glória terá sido substituído por técnicos da Carris, uma vez que a empresa contratada não detinha conhecimentos para essa função.

Aliás, a respeito do acidente do Elevador da Glória, caso se prove que a Carris assumiu a substituição do cabo e a ligação deste ao trambolho, através de um soquete de liga metálica, a responsabilidade passará a recair directamente sobre a própria empresa municipal, por ter violado as regras contratuais — ao intervir num equipamento cuja manutenção estava externalizada —, passando a assumir integralmente o ónus técnico e jurídico de um acto de montagem que exige certificação específica segundo as normas EN 13411-4 e EN 12385-8, com todas as consequências em termos de responsabilidade civil e criminal. ↓
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De acordo com os elementos do procedimento do concurso público da manutenção dos eléctricos de Lisboa, a que o PÁGINA UM teve acesso, o programa do concurso previa que “o júri do procedimento pode solicitar aos concorrentes quaisquer comprovativos das formações, certificações ou experiência profissional mencionados no currículo de qualquer um dos elementos a afectar à prestação dos serviços”.
No entanto, esse poder nunca foi exercido. Aliás, o júri do concurso — Isabel Cruz, Alexandra Silva e Ana Tomás, técnicas da Carris — acabou por tranquilizar a MNTC, esclarecendo por escrito, ainda antes da decisão final, que não seria necessário cumprir esse requisito durante a fase de concurso, embora tenha ressalvado que a empresa municipal “reserva-se o direito de solicitar, em sede de execução contratual, todas as certificações que se demonstrem necessárias”. Porém, tal nunca sucedeu até agora, segundo apurou o PÁGINA UM.

Com essa flexibilização, a MNTC pôde concorrer e vencer o procedimento, apresentando uma proposta abaixo do preço base (475.200 euros), derrotando a concorrência da Gasfomento. A Carris aceitou, assim, celebrar um contrato de manutenção de três anos sem comprovação prévia das competências técnicas da adjudicatária — uma lacuna grave, tendo em conta que se trata da mesma empresa envolvida no acidente do Elevador da Glória, onde se verificaram falhas estruturais e ausência de certificações válidas no cabo de tracção.
Mas o problema não se resume ao controlo da adjudicação. O PÁGINA UM analisou o caderno de encargos da manutenção dos 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados de Lisboa, tendo concluindo que é tecnicamente pobre, revelando, tal como já sucedia com o caderno de encargos dos ascensores, um nível de exigência muito inferior ao praticado pela STCP, no Porto, em matérias de segurança, rastreabilidade e rigor metrológico. Saliente-se que a MNTC é também a empresa responsável pela manutenção dos eléctricos na Cidade Invicta.
Com efeito, enquanto a operadora portuense estruturou o seu plano de manutenção segundo princípios de engenharia industrial, com verificações periódicas diferenciadas (diárias, quinzenais, mensais, semestrais, anuais e de revisão geral), a Carris limita-se a prever revisões a cada 3.000 quilómetros no caso dos eléctricos, com verificações diárias, mas sem qualquer diferenciação por subsistema nem definição de critérios técnicos de aceitação ou rejeição.

Por outro lado, o plano da STCP obriga a ensaios não destrutivos (magnetoscopia e ultrassons), medições dimensionais com registo obrigatório, testes de equilíbrio dinâmico conforme a norma ISO 1940 G 2.5, verificação geométrica dos bogies segundo padrões UIC (Union Internationale des Chemins de Fer) e certificação de estanquidade de reservatórios de ar por entidades acreditadas. No caso do Porto, cada operação deve ser registada em ficha própria, com valores medidos, instrumento utilizado, data, técnico responsável e assinatura, garantindo rastreabilidade integral.
Já a Carris não exige nenhum ensaio metrológico à MNTC, não define instrumentos nem tolerâncias e limita-se a indicar que devem ser efectuadas “verificações” e “revisões”, sem qualquer método prescrito. As “verificações”, como sucedia com os elevadores, podem ser a ‘olhómetro’.
Essa diferença traduz-se num fosso de cultura técnica: enquanto o plano de manutenção da STCP demonstra a existência de engenharia aplicável a sistemas críticos de transporte, o da Carris é uma listagem funcional, assente na observação empírica e sem referências normativas. Em Lisboa, não há menção a normas ISO, EN ou UIC, nem exigência de certificações independentes de componentes críticos, como rodados, eixos, travões ou molas. Também não se prevê qualquer sistema de rastreabilidade técnica: o controlo documental resume-se a folhas de obra e relatórios administrativos, sem fichas metrológicas nem rastos de auditoria.

A pobreza técnica do caderno de encargos da Carris contrasta com a gravidade dos riscos envolvidos. Os eléctricos históricos — tal como os funiculares — são equipamentos antigos, sujeitos a fadiga estrutural e esforços dinâmicos que exigem inspecções especializadas e ensaios periódicos. Ainda mais no caso dos eléctricos de Lisboa, como o famoso 28, que percorrem zonas de grande declive, como a Calçada da Estrela, mesmo ao lado da Assembleia da República, a Calçada do Combro, a zona que liga o Chiado à Baixa, a Rua da Voz do Operário e a Rua Angelina Vida.
A ausência de critérios técnicos e de medições verificáveis fragiliza o controlo de integridade e aumenta o risco de falhas não detectadas. Mesmo as penalizações contratuais, de 100 a 150 euros por omissão de manutenções, são simbólicas e não contemplam as consequências de incumprimentos que ponham em causa a segurança operacional.
O PÁGINA UM já havia revelado, ao longo do mês passado, que a Carris tem adoptado um modelo de fiscalização essencialmente formal sem exigências escritas, baseado na confiança contratual. Agora, comprova-se que esse laxismo se estende à fase de planeamento técnico, com um caderno de encargos desprovido de parâmetros objectivos e metodologias de verificação.

Na verdade, a Carris aparenta privilegiar o preço baixo, algo que pode sair caro quando se trata de segurança. Com efeito, para a manutenção de 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados, a empresa municipal de Lisboa vai gastar, em média, 158 mil euros com a manutenção da MNTC. Por sua vez, a STCP está disposta a gastar 380 mil euros por ano, em média, para a manutenção de apenas oito eléctricos históricos. Numa outra perspectiva, o custo no Porto por veículo é de De um lado, o ‘low cost’; do outro, a segurança.
A comparação entre a STCP e a Carris – que há poucos dias até suspendera um concurso pública de ‘remotorização’ de 57 eléctricos antigos, que nada tem a ver com manutenção, para melhorar o caderno de encargos, conforme revelou a CNN Portugal – evidenciam dois modelos distintos: enquanto no Porto se seguem regras e se mede com rigor, em Lisboa continua a valer o improviso e o “olhómetro”. Adivinhe-se qual aquele modelo com maior probabilidade de estar sujeito aos ‘azares’ que resultam em desastres.
N.D. O PÁGINA UM optou, intencionalmente, por desta vez não colocar questões à Carris, uma vez que, invariavelmente desde Setembro, a empresa municipal não remete nem revela quaisquer documentos, alegando que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social” e prometendo que “a todos está a ser dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”.
Como há questões formuladas à Carris há mais de três semanas ainda sem resposta, presume-se que novas perguntas não seriam respondidas em tempo útil, juntando-se ao rol de promessas não cumpridas pela administração liderada por Pedro Bogas. Naturalmente, o PÁGINA UM incluirá quaisquer comentários que a Carris entenda relevantes.