MANUTENÇÃO POR ANO: PORTO GASTA 47.500 EUROS POR VEÍCULO; LISBOA APENAS 3.00 EUROS

‘Low cost’ no contrato dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações

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Pedro Almeida Vieira|06/10/2025

A Carris dispensou a MNTC — a empresa também responsável pela manutenção do Elevador da Glória no momento do acidente mortal de 3 de Setembro — de apresentar qualquer comprovativo das qualificações profissionais dos técnicos afectos à manutenção dos eléctricos históricos e articulados Siemens , antes da adjudicação.

Ou seja, a empresa municipal está a permitir que a manutenção seja realizada por pessoas sem experiência ou qualificações. Recorde-se, aliás, que, apesar de ser uma obrigação contratual da MNTC, o cabo do Elevador da Glória terá sido substituído por técnicos da Carris, uma vez que a empresa contratada não detinha conhecimentos para essa função.

a yellow trolley car on a city street

Aliás, a respeito do acidente do Elevador da Glória, caso se prove que a Carris assumiu a substituição do cabo e a ligação deste ao trambolho, através de um soquete de liga metálica, a responsabilidade passará a recair directamente sobre a própria empresa municipal, por ter violado as regras contratuais — ao intervir num equipamento cuja manutenção estava externalizada —, passando a assumir integralmente o ónus técnico e jurídico de um acto de montagem que exige certificação específica segundo as normas EN 13411-4 e EN 12385-8, com todas as consequências em termos de responsabilidade civil e criminal.

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De acordo com os elementos do procedimento do concurso público da manutenção dos eléctricos de Lisboa, a que o PÁGINA UM teve acesso, o programa do concurso previa que “o júri do procedimento pode solicitar aos concorrentes quaisquer comprovativos das formações, certificações ou experiência profissional mencionados no currículo de qualquer um dos elementos a afectar à prestação dos serviços”.

No entanto, esse poder nunca foi exercido. Aliás, o júri do concurso — Isabel Cruz, Alexandra Silva e Ana Tomás, técnicas da Carris — acabou por tranquilizar a MNTC, esclarecendo por escrito, ainda antes da decisão final, que não seria necessário cumprir esse requisito durante a fase de concurso, embora tenha ressalvado que a empresa municipal “reserva-se o direito de solicitar, em sede de execução contratual, todas as certificações que se demonstrem necessárias”. Porém, tal nunca sucedeu até agora, segundo apurou o PÁGINA UM.

Resposta do júri do concurso público de manutenção dos eléctricos, esclarecendo a MNTC de não ser necessário cumprir uma norma do programa de concurso sobre os comprovativos do currículo dos elementos das equipas.

Com essa flexibilização, a MNTC pôde concorrer e vencer o procedimento, apresentando uma proposta abaixo do preço base (475.200 euros), derrotando a concorrência da Gasfomento. A Carris aceitou, assim, celebrar um contrato de manutenção de três anos sem comprovação prévia das competências técnicas da adjudicatária — uma lacuna grave, tendo em conta que se trata da mesma empresa envolvida no acidente do Elevador da Glória, onde se verificaram falhas estruturais e ausência de certificações válidas no cabo de tracção.

Mas o problema não se resume ao controlo da adjudicação. O PÁGINA UM analisou o caderno de encargos da manutenção dos 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados de Lisboa, tendo concluindo que é tecnicamente pobre, revelando, tal como já sucedia com o caderno de encargos dos ascensores, um nível de exigência muito inferior ao praticado pela STCP, no Porto, em matérias de segurança, rastreabilidade e rigor metrológico. Saliente-se que a MNTC é também a empresa responsável pela manutenção dos eléctricos na Cidade Invicta.

Com efeito, enquanto a operadora portuense estruturou o seu plano de manutenção segundo princípios de engenharia industrial, com verificações periódicas diferenciadas (diárias, quinzenais, mensais, semestrais, anuais e de revisão geral), a Carris limita-se a prever revisões a cada 3.000 quilómetros no caso dos eléctricos, com verificações diárias, mas sem qualquer diferenciação por subsistema nem definição de critérios técnicos de aceitação ou rejeição.

Exigências dos eléctricos históricos do Porto são incomensuravelmente superiores aos de Lisboa.

Por outro lado, o plano da STCP obriga a ensaios não destrutivos (magnetoscopia e ultrassons), medições dimensionais com registo obrigatório, testes de equilíbrio dinâmico conforme a norma ISO 1940 G 2.5, verificação geométrica dos bogies segundo padrões UIC (Union Internationale des Chemins de Fer) e certificação de estanquidade de reservatórios de ar por entidades acreditadas. No caso do Porto, cada operação deve ser registada em ficha própria, com valores medidos, instrumento utilizado, data, técnico responsável e assinatura, garantindo rastreabilidade integral.

Já a Carris não exige nenhum ensaio metrológico à MNTC, não define instrumentos nem tolerâncias e limita-se a indicar que devem ser efectuadas “verificações” e “revisões”, sem qualquer método prescrito. As “verificações”, como sucedia com os elevadores, podem ser a ‘olhómetro’.

Essa diferença traduz-se num fosso de cultura técnica: enquanto o plano de manutenção da STCP demonstra a existência de engenharia aplicável a sistemas críticos de transporte, o da Carris é uma listagem funcional, assente na observação empírica e sem referências normativas. Em Lisboa, não há menção a normas ISO, EN ou UIC, nem exigência de certificações independentes de componentes críticos, como rodados, eixos, travões ou molas. Também não se prevê qualquer sistema de rastreabilidade técnica: o controlo documental resume-se a folhas de obra e relatórios administrativos, sem fichas metrológicas nem rastos de auditoria.

Manutenção engloba eléctricos históricos e os modernos eléctricos articulados da marca Siemens. Foto: Carris.

A pobreza técnica do caderno de encargos da Carris contrasta com a gravidade dos riscos envolvidos. Os eléctricos históricos — tal como os funiculares — são equipamentos antigos, sujeitos a fadiga estrutural e esforços dinâmicos que exigem inspecções especializadas e ensaios periódicos. Ainda mais no caso dos eléctricos de Lisboa, como o famoso 28, que percorrem zonas de grande declive, como a Calçada da Estrela, mesmo ao lado da Assembleia da República, a Calçada do Combro, a zona que liga o Chiado à Baixa, a Rua da Voz do Operário e a Rua Angelina Vida.

A ausência de critérios técnicos e de medições verificáveis fragiliza o controlo de integridade e aumenta o risco de falhas não detectadas. Mesmo as penalizações contratuais, de 100 a 150 euros por omissão de manutenções, são simbólicas e não contemplam as consequências de incumprimentos que ponham em causa a segurança operacional.

O PÁGINA UM já havia revelado, ao longo do mês passado, que a Carris tem adoptado um modelo de fiscalização essencialmente formal sem exigências escritas, baseado na confiança contratual. Agora, comprova-se que esse laxismo se estende à fase de planeamento técnico, com um caderno de encargos desprovido de parâmetros objectivos e metodologias de verificação.

Conselho de Administração da Carris: a privilegiar o baixo custo e a elevada insegurança.

Na verdade, a Carris aparenta privilegiar o preço baixo, algo que pode sair caro quando se trata de segurança. Com efeito, para a manutenção de 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados, a empresa municipal de Lisboa vai gastar, em média, 158 mil euros com a manutenção da MNTC. Por sua vez, a STCP está disposta a gastar 380 mil euros por ano, em média, para a manutenção de apenas oito eléctricos históricos. Numa outra perspectiva, o custo no Porto por veículo é de De um lado, o ‘low cost’; do outro, a segurança.

A comparação entre a STCP e a Carris – que há poucos dias até suspendera um concurso pública de ‘remotorização’ de 57 eléctricos antigos, que nada tem a ver com manutenção, para melhorar o caderno de encargos, conforme revelou a CNN Portugal – evidenciam dois modelos distintos: enquanto no Porto se seguem regras e se mede com rigor, em Lisboa continua a valer o improviso e o “olhómetro”. Adivinhe-se qual aquele modelo com maior probabilidade de estar sujeito aos ‘azares’ que resultam em desastres.

N.D. O PÁGINA UM optou, intencionalmente, por desta vez não colocar questões à Carris, uma vez que, invariavelmente desde Setembro, a empresa municipal não remete nem revela quaisquer documentos, alegando que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social” e prometendo que “a todos está a ser dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”.

Como há questões formuladas à Carris há mais de três semanas ainda sem resposta, presume-se que novas perguntas não seriam respondidas em tempo útil, juntando-se ao rol de promessas não cumpridas pela administração liderada por Pedro Bogas. Naturalmente, o PÁGINA UM incluirá quaisquer comentários que a Carris entenda relevantes.

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