EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
‘Deixai vir a mim as criancinhas’, diz Filipe Froes, o zelota das farmacêuticas

Há uma espécie de ironia quase bíblica na crescente preocupação de certos doutores com a saúde das crianças, mas agora sempre associado a fármacos. Ainda ontem, confinavam-nas por decreto, fechavam-lhes escolas, isolavam-nas dos avós e impunham-lhes máscaras que jamais tiveram base científica sólida.
Hoje, os mesmos cruzados da “proteção total” — que transformaram o medo em catecismo e a obediência em virtude — apresentam-se como novos apóstolos da vacinação infantil universal contra a gripe, anunciando com o medo da morte. Isto num país com uma taxa de mortalidade infantil que nem chega aos três óbitos por mil nascimentos. Há 50 anos era quase 10 vezes superior (cerca de 20 em mil); há século, quase 100 vezes superior (cerca de 250 em mil). Em vez de se celebrar o progresso, os arautos da salvação compulsiva impõem-se reciclando o pânico.
Durante a pandemia, bastou-lhes uma curva estatística ou um modelo informático às três pancadas para decretar a suspensão da infância. O contacto humano passou a ser visto como contágio, o abraço como ameaça, a escola como foco pestilento. O resultado foi uma geração sujeita a isolamento, atraso pedagógico, distúrbios emocionais e uma perigosa crença de que a vida se gere por decreto e com a bênção das farmacêuticas.

Até agora, nenhum desses zeladores da saúde pública pediu desculpa pelo exagero. Ao invés, regressam ao púlpito — se é que alguma vez saíram — com redobrado fervor, revestidos de uma nova missão redentora: vacinar em massa as crianças: no ano passado contra o vírus sincicial respiratório, que não mata crianças em Portugal, e agora contra a gripe. ↓
O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
O expoente destes zeladores é o pneumologista Filipe Froes, teólatra-mor da farmacologia moderna, que se apresenta com todos os epítetos menos com o de ‘avençado’ da indústria farmacêutica. Durante a pandemia da covid-19 distinguiu-se pela promoção incondicional à doutrina do medo, mesmo entre as crianças, e agora surge, na imprensa, com um inenarrável artigo de opinião no vetusto Diário de Notícias, a dramatizar a mortalidade infantil por gripe, citando números absolutos sem contexto e sem explicar que a letalidade na idade pediátrica é, felizmente, residual.
É verdade que o próprio Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos refere que, na época gripal de 2024-2025, morreram 280 pessoas em idade pediátrica (até aos 17 anos) com uma idade mediana de 7 anos, num universo de 43 milhões de infecções e 560 mil hospitalizações — e é curioso que, quando lhe interessa, Froes não se importa de citar uma instituição tutelada por Robert Kennedy Jr.

Mas convinha ser sério — virtude pouco atreita a Filipe Froes —, assumindo que a vida tem a si associada um risco que jamais será de zero. Essa mortalidade absoluta de 280 crianças e adolescentes está integrada numa população global de 72,8 milhões de pessoas, o que significa que estamos a falar de uma taxa de mortalidade pediátrica de 3,8 por milhão, e em quase 90% dos casos sem vacinação completa. A estatística impressiona no absoluto, mas perde dramatismo quando colocada em proporção: 0,00038% das crianças e jovens norte-americanos morreram de gripe.
Enquadremos isto melhor para denunciar a falácia de Froes. Um estudo detalhado sobre as causas de mortes em 2016 em idade pediátrica nos Estados Unidos mostra que a maioria dos óbitos não foi por doenças, e muito menos infecciosas. Vejamos os números: 4.074 mortes por acidentes de viação (20% do total); 3.143 mortes por ferimentos de armas de fogo (15% do total), sendo que 1.865 foram homicídios e 1.102 suicídios; 1.430 mortes por sufocação (7% do total); 995 mortes por afogamento (5% do total) e 982 mortes por overdose ou intoxicação por drogas (5% do total). As neoplasias malignas causaram 1.853 mortes (9% do total), enquanto as doenças cardíacas e respiratórias crónicas responderam, em conjunto, por 873 mortes (4,3% do total), sendo que 274 óbitos foram causados por doença respiratória crónica, onde se insere a gripe.
Assim, perante 20.360 mortes pediátricas totais, é, no mínimo, demagógico — ou mesmo populista — elevar as doenças respiratórias, e em particular a gripe, à condição de prioridade de saúde pública em idade pediátrica. Se há verdadeiros flagelos que merecem essa designação, eles residem na mortalidade evitável: acidentes de viação, armas de fogo, suicídios, afogamentos e drogas, e não na gripe. Basta observar os dados dos Estados Unidos: a letalidade associada à gripe — 280 óbitos numa população de 72,8 milhões de menores — traduz-se numa probabilidade de morte 14 vezes inferior à de um acidente rodoviário e mais de 100 vezes menor do que por arma de fogo.

Em Portugal, não temos o flagelo das armas de fogo, mas a gripe também está muito longe de ser o principal risco de vida em idade pediatria para causar este pânico semeado por Froes e seus correligionários. No seu artigo no Diário de Notícias, publicado hoje com o sugestivo título “Mas as crianças,Senhor, porque lhes dais tanta dor?!…“, refere um um estudo (sem referências) que, no período 2008-2018 e abrangendo crianças até aos cinco anos, estima 95 mortes em excesso associadas à gripe em dez épocas sazonais. Ou seja, cerca de nove mortes por época gripal num país com mais de 400 mil crianças nesse grupo etário.
Mas convém ainda esclarecer mais uma falácia ‘froeseana’: essas “95 mortes em excesso” não representam 95 mortes por gripe, nem há qualquer prova de relação de causa-efeito. Trata-se de um cálculo estatístico que compara a mortalidade observada com a esperada, assumindo que parte da diferença possa estar associada à circulação do vírus. Ora, essa associação será ecológica e indirecta, não causal.
Tudo isto não interessa para estes pregadores, que ainda por cima omitem o verdadeiro motivo pelo qual os números da gripe dispararam nos últimos anos: não foi a ausência de vacinação, mas o vazio imunológico deixado pelas políticas de confinamento.

Durante dois anos, as crianças foram privadas de contacto com vírus comuns — gripe, rinovírus, vírus sincicial respiratório —, criando uma geração imunologicamente “ingénua”. A supressão da circulação viral, longe de proteger, apenas adiou o inevitável: quando os vírus regressaram, encontraram organismos ‘sem treino’, e o resultado foi uma vaga mais intensa de infecções respiratórias, em especial nos mais novos.
O próprio CDC reconhece esse fenómeno: o ressurgimento simultâneo das estirpes gripais A(H1N1)pdm09 e A(H3N2), após duas épocas quase estéreis, explica o número elevado de mortes pediátricas. Foi o preço da chamada ‘super-proteção pandémica0 promovida por Froes & Ca. — a ilusão de que a saúde se mantém isolando-se da vida.
E aqui reside o cerne do problema contemporâneo: a crença supersticiosa de que os fármacos são superprotectores e inócuos, achando que a Medicina moderna pode transformar-se em Medicina Veterinária . A ciência — a verdadeira, não a patrocinada — diz exactamente o contrário. Nenhum estímulo farmacológico é neutro: cada intervenção no sistema imunitário tem um custo fisiológico, uma resposta inflamatória, uma reprogramação celular. Vacinar é uma ferramenta racional quando há risco concreto e benefício mensurável; mas fazê-lo em massa, como ritual anual e sem necessidade epidemiológica, é uma forma de medicalizar a infância e atrofiar o treino natural da imunidade.
Um estudo recente publicado no Journal of Experimental Medicine, já este ano, mostra que a vacinação repetida contra a gripe pode atenuar a resposta imunitária subsequente, o chamado blunting effect. Outro, publicado no Frontiers in Immunology comprova que ainda em existem muitas incerteza sobre as verdadeiras interferências imunológicas em administrar as vacinas da gripe e da covid-19 em conjunto, algo que somente sucede por questões logísticas e não de saúde pública. Ou seja, a prudência está arredada da Medicina associada às farmacêuticas

Nada disto significa que as vacinas sejam perigosas — pelo contrário, há vacinas seguras, mas que ganharam esse predicado pela precaução e pelo histórico. O problema é querer vestir-se o ‘hábito’ (chamar vacinas) e querer ser logo ‘monge’ (necessária, segura e eficaz).
Infelizmente, as autoridades sanitárias parecem hoje reféns de uma nova teologia da prevenção farmacológica. O discurso médico foi sequestrado por uma cultura de submissão económica e simbólica à indústria, que vende tranquilidade em frascos e transforma cada época gripal numa oportunidade de mercado. Muitos dos seus porta-vozes, outrora profetas do confinamento, surgem agora como evangelistas da imunização total — com a mesma linguagem paternalista, as mesmas metáforas bélicas e o mesmo desprezo pela autonomia dos cidadãos.
O problema não está em defender a vacinação — que é, em muitos contextos, uma conquista civilizacional, sobretudo em países com graves deficiências sanitárias, higiénicas e de cuidados de saúde primária e hospitalar —, mas em transformá-la numa panaceia dogmática.

O zelo excessivo com a saúde infantil pode degenerar em instrumentalização das crianças como pretexto para novos programas de despesa pública e contratos milionários de fornecimento de vacinas sazonais, que não correspondem a um risco real, sobretudo quando temos ainda mais de um milhão de pessoas sem médico de saúde.
A pandemia da covid-19 mostrou como a retórica da urgência e da solidariedade pode servir de cortina para interesses económicos. O presente repete-se, agora com roupagem de ternura e discursos piedosos.
Por isso, quando se lê um artigo como o de Filipe Froes — com invocações poéticas à dor das crianças — convém recordar que muitas dessas dores foram consequência directa das medidas que ele próprio incentivou e promoveu: confinamentos, máscaras obrigatórias, afastamento social. Foram os mesmos que defenderam o “fechar para proteger” que agora se apresentam como salvadores. A medicina deve proteger, não colonizar; a saúde pública deve informar, não moralizar.

As crianças precisam de liberdade, ar livre, imunidade construída em contacto com o mundo real. Não precisam de ser transformadas em escudos de campanhas políticas ou de marketing. O cuidado verdadeiro não se mede em doses administradas de fármacos, mas em equilíbrio, sensatez e humildade científica — virtudes raras entre os zelotas que confundem saúde com submissão.
Em suma: vacinar pode ser prudente; vacinar massivamente, sem necessidade comprovada, é apenas a versão moderna do confinamento emocional que nos impuseram em nome da segurança. A diferença é que, desta vez, o confinamento é biológico, mascarado de compaixão. Que quem errou em 2020 tenha, pelo menos, a decência de não se reinventar em 2025 como profeta da imunização universal. Mas isso, no caso do doutor Filipe Froes, é pedir-lhe muito.