VALORES EM VEZ DE IDEOLOGIAS: ENSAIO (III)

A soberania como pilar da democracia

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Pedro Almeida Vieira|08/10/2025

1. O conceito de soberania: origem, decadência e usurpação

Poucas palavras carregam tamanha densidade histórica e ideológica como o termo “soberania”. Olhada ora como escudo da liberdade colectiva, ora como instrumento de opressão estatal, a soberania é um conceito que, ao longo dos séculos, oscilou entre a justificação do poder absoluto e a consagração da autodeterminação popular. No entanto, é precisamente nesta ambiguidade fecunda que reside a chave para compreender a arquitectura política de qualquer regime que se pretenda democrático. A soberania é, em última instância, uma decisão fundadora sobre quem manda em quem — e porquê.

O jurista francês Jean Bodin foi, no século XVI, talvez o primeiro a sistematizar a ideia moderna de soberania: o poder supremo, indivisível e perpétuo de legislar, isento de qualquer sujeição. A soberania, para Bodin, repousava no monarca — mas não era um despotismo sem limites: deveria submeter-se à lei divina e à ordem natural. O seu conceito viria a ser radicalizado pelo britânico Thomas Hobbes, no século seguinte, que viu no soberano o Leviatã necessário para conter a barbárie da guerra de todos contra todos. A paz social exigia um poder absoluto, não por capricho, mas por necessidade lógica. O francês Jean Jacques Rousseau, por sua vez, operaria uma viragem já na segunda metade do século XVIII: a soberania não pertence ao rei, mas ao povo. E a vontade geral torna-se o novo trono.

Mas a transição histórica da soberania monárquica para a soberania popular não apagou o seu traço fundamental: a soberania é sempre uma fonte última de decisão política. A questão nunca é se há ou não soberania, mas onde reside e a quem serve. E é precisamente essa questão que o nosso tempo procura dissimular com neologismos administrativos como governança, resiliência institucional, cooperação reforçada, multilateralismo funcional — fórmulas pensadas para despolitizar o acto de decidir, camuflando relações de poder sob retóricas de consenso técnico.

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Se a modernidade política se construiu sobre o princípio de que o povo é soberano, o século XXI parece ter-se encarregado de esvaziar esse princípio da sua substância. O processo não foi abrupto, mas gradual — e, por isso, mais eficaz. O poder soberano foi-se deslocando silenciosamente para entidades não eleitas – como a Comissão Europeia –, tribunais constitucionais com vocação supranacional, organismos técnicos com competência normativa, bancos centrais com autonomia inquestionável. Aquilo que permanece nos parlamentos nacionais é, cada vez mais, a função de carimbar decisões tomadas noutros areópagos. A soberania transformou-se num ritual constitucional – e ainda por cima desprovido da sua força performativa.

A decadência da soberania não se fez apenas pelo alto, mas também pelo baixo. O cidadão comum, embrutecido por décadas de propaganda globalista, passou a ver a soberania como um resquício reaccionário, uma palavra tóxica associada a muros, autoritarismos e isolacionismo. O cosmopolitismo tecnocrático triunfou ao convencer as massas de que a renúncia à soberania era sinal de progresso, de maturidade democrática, de integração no concerto das nações civilizadas. Assim se forjou o paradoxo contemporâneo: o cidadão vota em representantes que não têm poder soberano, mas confia que os “órgãos competentes” farão o necessário — ainda que sem prestar contas a ninguém.

Esta renúncia voluntária ao exercício da soberania constitui, em si mesma, uma tragédia política. Quando um povo abdica de decidir sobre o essencial — as suas leis, os seus impostos, a sua moeda, os seus tratados, as suas fronteiras —, deixa de ser um corpo político e transforma-se numa clientela social. Os grandes pactos do século XX, como as constituições democráticas ou os contratos sociais pós-guerra, pressupunham a existência de comunidades soberanas. A sua erosão corrói a base sobre a qual repousa qualquer legitimidade política duradoura. Onde a soberania se eclipsa, o Estado torna-se apenas uma agência de execução.

A usurpação da soberania, no entanto, não é – ou não foi – feita com violência, mas com protocolos. Não exige – ou exigiu – tanques nas ruas, mas pareceres jurídicos. Não convoca – ou convocou – assembleias, mas workshops. Não declara – ou declarou – estados de sítio, mas ajustamentos estruturais. O golpe pós-moderno contra a soberania é tecnocrático e silencioso: não precisa de abolir a Constituição, basta interpretá-la à luz dos “compromissos europeus”. A excepção torna-se norma, o provisório torna-se estrutural, e o soberano torna-se amnésico — incapaz de recordar quando perdeu o direito de decidir sobre si mesmo.

O filósofo alemão Carl Schmitt, com a sua célebre frase sobre o estado de excepção, recorda-nos que o verdadeiro soberano é aquele que, num momento de crise, suspende a norma para ‘salvar’ a ordem. Mas no mundo actual, quem decide sobre a excepção? Não são os parlamentos. Não são os cidadãos. São os políticos, mas já com base em conselhos científicos, em directórios financeiros, em consórcios reguladores. Isto equivale a dizer que a soberania não desapareceu — apenas mudou de mãos.

É tempo, portanto, de resgatar o conceito de soberania não como bandeira de guerra, mas como instrumento de emancipação. A soberania não é um fetiche nacionalista, nem um capricho autoritário: é a condição para que uma comunidade se reconheça como autora das suas leis e responsável pelo seu destino. Sem soberania, não há cidadania plena — há obediência condicionada. E uma democracia sem soberania não passa de uma ilusão coreografada, onde todos dançam ao som de uma música que já não compuseram.

A restauração da soberania exige coragem intelectual e acção política. Mostra-se necessário romper com a anestesia discursiva que reduz a política a compliance. É preciso declarar que a legitimidade de um Estado não se mede pelo número de pareceres que respeita, mas pelo grau de autonomia com que decide e responde aos seus cidadãos. E, sobretudo, torna-se fundamental recuperar a ideia simples — mas hoje quase subversiva — de que um povo que não manda em si mesmo, não é livre. É apenas governado.

2. A União Europeia como laboratório da pós-soberania

Se o conceito de soberania passou, nas últimas décadas, por uma erosão sistemática, então a União Europeia é o seu laboratório mais avançado. Nenhuma outra estrutura política contemporânea foi tão eficaz a transformar a abdicação da soberania numa virtude moral, num imperativo económico e numa inevitabilidade institucional. A União Europeia não combateu a soberania de frente: dissolveu-a em regulamentos, derreteu-a em comissões, despolitizou-a em nome do progresso. O golpe foi subtil e inicialmente lento, mas depois mais rápido e profundo: não tirou o poder aos Estados; convenceu-os de que já não valia a pena exercê-lo.

A génese da integração europeia não nasce da vontade de criar uma comunidade política plena, mas de impedir a repetição das tragédias do século XX. Foi um projecto fundado no trauma e erguido sobre a promessa de estabilidade, comércio e convergência. No seu alvorecer, era uma engenharia económica com pretensões civilizacionais. Mas cedo se percebeu que, para que o mercado comum florescesse, seria necessário conter os ímpetos soberanistas dos Estados-membros. A moeda única — introduzida com solenidade e propaganda — foi o dispositivo mais eficaz desse condicionamento.

Ao abdicar da sua política monetária, os Estados aceitaram um novo tipo de tutela: não a de uma potência estrangeira, mas a de uma arquitectura institucional que fala com o timbre neutro da razão técnica. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia — eis os vértices de um poder que decide sem se submeter ao escrutínio de um povo. A legitimidade não é democrática, mas funcional: a União decide “bem” porque decide “com competência”, porque tem “experts”, porque tem “estudos”. Mas quem define o que é “bem”? Quem decide os termos da competência? Quem fiscaliza os experts? O povo europeu, esse mito sem corpo nem voz, não entra na equação.

A União Europeia é, portanto, o lugar onde se inverteu a ordem clássica da soberania: em vez de os Estados fundarem uma união, é a união que reformata os Estados. Os tratados europeus funcionam como constituições não ratificadas: vinculam os parlamentos nacionais a políticas predeterminadas, sujeitam decisões orçamentais a metas comuns, impõem regras que nenhuma maioria eleitoral pode facilmente revogar. O caso grego, durante a crise da dívida, foi paradigmático: um povo inteiro disse “não” nas urnas, mas Bruxelas respondeu com um “sim” irrevogável. O referendo foi apenas uma pausa na austeridade.

Aquilo que temos, portanto, é uma transferência de soberania sem transferência de responsabilidade. Os líderes nacionais escondem-se atrás de “obrigações europeias” para justificar cortes, reformas ou imposições fiscais. A democracia é subcontratada. A impopularidade é externalizada. E assim o pacto entre governantes e governados vai-se dissolvendo numa névoa de relatórios e calendários comunitários. O cidadão não elege quem decide, nem pode demitir quem impõe. O seu único gesto político é o protesto infrutífero ou o voto simbólico num parlamento europeu que não legisla de facto.

A União Europeia, neste modelo, não é um império clássico — porque não conquista territórios — nem uma federação madura — porque não tem povo constituinte. É antes uma tecnocracia expandida, uma cúpula administrativa com pretensões normativas. E como toda a tecnocracia, vive do simulacro de neutralidade: os seus comissários não têm partidos, os seus pareceres não têm ideologia, os seus regulamentos não têm alternativa. Mas o facto de se apresentar como “apolítica” é precisamente o seu acto mais político.

Dir-se-á que tudo isto foi livremente aceite pelos Estados-membros. Mas o que significa “aceite” quando a pressão é feita sob chantagem económica? Quando se financiam campanhas de adesão com fundos europeus, quando se sancionam Estados desobedientes com cortes ou bloqueios, quando se condiciona o acesso a fundos a reformas estruturais que alteram profundamente o modelo social — o que resta da soberania senão um selo cerimonial? A adesão voluntária torna-se adesão extorquida.

A retórica da solidariedade europeia apenas esconde a assimetria de poder entre os Estados centrais e periféricos. A soberania não é apenas erodida; é hierarquizada. A França e a Alemanha têm direito ao déficit estratégico. Os pequenos Estados têm a obrigação da austeridade virtuosa. Os grandes bancos são salvos. As pequenas economias são auditadas. A soberania é selectiva — e, portanto, é privilégio.

Por isso, o projecto europeu, tal como hoje está desenhado, exige uma crítica profunda, não para ser destruído, mas para ser desmitificado. Já não se trata de um projecto comum de povos soberanos, mas de uma engrenagem institucional que sobrevive melhor quanto menos soberanias lhe resistirem. A verdadeira questão europeia deixou de ser o estar dentro ou fora da União — é se dentro dela ainda podemos ser donos do nosso destino.

Recuperar a soberania no contexto europeu não significa recuar para o isolacionismo, mas restaurar o princípio de que só há legitimidade política quando há capacidade efectiva de decidir com autonomia. Uma Europa de nações soberanas não é uma contradição: é uma necessidade democrática. Mas para isso, é preciso dizer o óbvio: uma união que exige obediência cega, que impõe regras sem voz, que apaga fronteiras sem fundar um povo — não é uma união, é uma simulação.

3. Soberania fiscal e monetária: o mito da convergência e a verdade da dependência

A perda de soberania raramente se anuncia em fanfarras. Não há decretos com brasões dourados, nem tanques a cruzar fronteiras. Há, isso sim, gráficos com curvas descendentes, relatórios de convergência, decisões técnicas ditas “inevitáveis”. E no centro desse processo silencioso está a renúncia ao controlo fiscal e monetário — os dois nervos centrais da autonomia de um Estado moderno. Um país que não pode determinar os seus impostos nem emitir a sua moeda já não é plenamente soberano: é um gestor subalterno da vontade alheia.

No caso europeu, a promessa da moeda única foi apresentada como um instrumento de convergência: os países do sul poderiam beneficiar da estabilidade germânica, e os países do norte ganhariam mercados estáveis para os seus produtos e capitais. A teoria era elegante, mas como em muitas fábulas da integração europeia, a prática revelou-se assimétrica. A convergência prometida tornou-se divergência estrutural. Os países mais frágeis perderam a capacidade de ajustar a sua economia através da desvalorização cambial e da flexibilidade monetária. E em troca receberam metas orçamentais rígidas, reformas impostas e vigilância permanente.

A independência do Banco Central Europeu (BCE), celebrada como garantia de estabilidade, tornou-se um dogma tecnocrático imune ao escrutínio popular. O BCE não responde a governos eleitos, nem a cidadãos. Decide com base em modelos macroeconómicos, projecções inflacionistas e pressões dos mercados. A sua missão não é a prosperidade de cada Estado-membro, mas a estabilidade da moeda — uma moeda que, não tendo dono político, acaba por ser capturada pelas conveniências do mais forte. Os juros sobem ou descem, não em função das necessidades de Lisboa ou Atenas, mas do humor de Frankfurt.

Este modelo cria uma divisão fundamental entre Estados de dívida soberana e Estados de dívida tutelada. A Alemanha pode emitir dívida sem grande risco de especulação. Portugal, Grécia ou Itália estão permanentemente sob ameaça de reacções adversas nos mercados. O resultado é uma transferência de soberania orçamental: quem quer emitir dívida deve convencer primeiro os mercados — e depois, implicitamente, o BCE. Não há autonomia fiscal sem margem orçamental. E não há margem orçamental sob uma moeda única desenhada sem união política.

Os Pactos de Estabilidade e Crescimento, os Semestres Europeus, os Programas de Ajustamento, os Planos de Recuperação e Resiliência — todos estes dispositivos transformaram a política orçamental interna numa extensão da política de contenção da inflação. A despesa pública é vigiada, os investimentos são avaliados por critérios de sustentabilidade financeira, as reformas estruturais são exigidas em troca de fundos. A política torna-se contabilidade. E o sufrágio universal, uma formalidade sem alcance real.

A dependência que daí resulta é mais profunda do que uma simples subordinação técnica – ela corrói a legitimidade interna. Governos eleitos com promessas de investimento público ou de justiça fiscal veem-se impedidos de cumpri-las por constrangimentos externos. Cria-se uma dissonância permanente entre o que se promete em campanha e aquilo que se executa no governo. Os políticos fingem governar; os burocratas fingem não mandar. No meio, o eleitorado afasta-se.

O euro, longe de ser um instrumento de coesão, funcionou como acelerador de desequilíbrios. Os países periféricos passaram a importar mais do que exportam, acumularam défices externos e viram os seus sectores produtivos fragilizarem-se. Sem possibilidade de ajustamento cambial, a única via de “competitividade” tornou-se a compressão de salários e o desmantelamento de direitos laborais. A famosa “austeridade expansionista” foi um eufemismo para dizer: empobreçam-se os povos para salvar a moeda.

O caso português é exemplar. Desde a entrada no euro, perdeu-se controlo sobre a moeda, sobre os juros, sobre as reservas. A política orçamental tornou-se prisioneira de metas externas e de agências de rating. A margem para uma política económica contra-cíclica desapareceu. Ficou a retórica europeísta como consolo simbólico. Mas perdeu-se mais do que ferramentas técnicas: perdeu-se a capacidade de decidir com base na realidade nacional.

Há quem acredite que tudo isto é o preço da integração e que a resposta será mais Europa — uma união fiscal, um governo económico comum. Mas essa proposta ignora a assimetria de interesses dentro da própria União Europeia. Uma união fiscal sem união política será apenas a formalização da tutela. Uma união política sem povo comum será um simulacro de democracia. E enquanto se espera por esse horizonte longínquo, a realidade continua a ser a de Estados que não podem decidir quanto gastar, onde investir, como tributar. Estados amputados da sua vontade.

Assim, recuperar a soberania fiscal e monetária não é um capricho nacionalista, mas uma exigência democrática. Significa devolver à deliberação política aquilo que nunca deveria ter sido expropriado pela gestão tecnocrática. Significa aceitar que o risco faz parte da liberdade — e que a estabilidade imposta de fora é, muitas vezes, apenas um outro nome para a servidão voluntária.

A moeda não é neutra. A dívida não é apolítica. O orçamento não é uma mera folha de Excel. São instrumentos de poder, de decisão, de justiça social. E um povo que os entrega sem resistência abdica, não apenas do seu presente, mas da sua possibilidade de futuro.

4. A soberania sanitária e o novo paradigma bio-administrativo

Durante séculos, a soberania assentava-se em dois pilares: o território e a autoridade sobre os corpos em caso de conflito — seja através da guerra, seja por meio da justiça criminal. O poder decidia sobre a vida e morte: quem podia matar, quem devia morrer, quem era punível. O Estado exercia o seu domínio por fora do corpo, ou sobre o corpo, mas não a partir de dentro.

Com o advento da biopolítica — conceito inaugurado por Michel Foucault e actualizado nas suas implicações mais sombrias por Giorgio Agamben —, a soberania desloca-se para um domínio mais insidioso: o da vida nua, do corpo gestionado, do ser humano transformado em vector de risco e unidade estatística.

A pandemia da COVID-19 não foi a origem desta mutação, mas recentemente comportou-se como um catalisador. De súbito, a gestão da saúde pública passou a sobrepor-se a todas as restantes dimensões da existência política: liberdades suspensas, direitos relativizados, deveres impostos. Não por imposição de um tirano, mas com o aval de peritos, agências sanitárias e instituições supranacionais. A obediência tornou-se uma virtude, e a dúvida — mesmo que científica — foi rotulada de negacionismo. O corpo deixou de ser sujeito político para ser tratado como possível ameaça bioestatística.

Este novo paradigma — que aqui designo como bio-administrativo — funda-se na tecnocracia médica, mas vai muito além da medicina: é uma fusão entre gestão, estatística, vigilância e narrativa. O risco sanitário substitui o risco político como fundamento da acção governamental. Os cidadãos tornam-se simultaneamente pacientes e suspeitos. A liberdade de movimento, de trabalho, de reunião e até de expressão passou a estar subordinada ao imperativo sanitário, gerido não por parlamentos mas por comités de crise.

Nada disto se mostra possível sem uma profunda mutação ideológica na percepção do bem comum. Em nome da saúde pública, aceitaram-se restrições impensáveis poucos meses antes. O confinamento compulsivo de saudáveis, o encerramento de escolas, a imposição de injecções periódicas, o rastreio digital de contactos, a segregação de não-vacinados — tudo isto foi normalizado, muitas vezes celebrado. As garantias constitucionais foram suspensas ou reinterpretadas à luz de uma urgência sanitária que passou a ser o novo estado de excepção.

Esta soberania sanitária não se exerce apenas sobre os corpos, mas sobre os dados dos corpos. A saúde digital, os certificados de vacinação, as plataformas de rastreio e os registos centralizados transformam o cidadão num fluxo contínuo de informação. E essa informação, longe de ser neutra, torna-se fundamento para decisões automatizadas: quem pode viajar, quem pode trabalhar, quem pode entrar num edifício, incluindo num restaurante ou num ginásio. A democracia transforma-se, assim, numa arquitectura condicional: os direitos tornam-se permissões.

A suposta neutralidade científica que sustenta as decisões é uma das maiores falácias deste novo modelo. O discurso técnico mascarou opções políticas, muitas vezes ideologicamente carregadas. A censura de alternativas terapêuticas, o monopólio narrativo das terapias genéticas catalogadas de vacinas, a criminalização de protestos — tudo foi justificado com base numa autoridade científica tão consensual quanto opaca. E quem ousou divergir, por mais qualificado que fosse, foi ostracizado, silenciado ou até perseguido judicialmente.

É neste contexto que a soberania sanitária revela o seu verdadeiro rosto: não é a saúde que comanda a política, mas a política que instrumentaliza a saúde para reforçar o seu poder. O corpo torna-se a última fronteira da soberania: um corpo disciplinado, injectado, rastreado, isolado, sacrificado se necessário. A medicina já não cura — administra. E o cidadão já não decide — consente, por vezes impelido a consentir mesmo sem compreender.

Este paradigma bio-administrativo tem ainda uma dimensão moral. A saúde passa a ser um imperativo ético, e quem o recusa é visto não como alguém com uma opção legítima, mas como um delinquente cívico. A vacinação ou a administração de um fármaco, por exemplo, torna-se um dever social, a máscara um sinal de obediência, o confinamento um acto de solidariedade. A política de saúde converte-se em liturgia, com os seus rituais, dogmas e heresias. E os apóstatas — os que questionam — são tratados como perigos públicos.

Esta nova forma de soberania é particularmente perigosa porque invisível e até desejada. Não exige polícias nem exércitos — basta uma aplicação, uma directiva sanitária, um boletim epidemiológico. A submissão não é forçada: é interiorizada. O cidadão exige ser controlado, pede que os outros sejam vigiados, denuncia infractores. A servidão é voluntária, porque se acredita estar a salvar vidas.

Mas o que se perde neste processo é incalculável: perde-se a ideia de que a liberdade é um valor em si, mesmo em tempos de risco. Perde-se o princípio de que o Estado existe para garantir direitos, e não para suspender vidas. Perde-se a distinção entre cuidado e controlo. E ganha-se uma sociedade mais segura, talvez — mas menos humana, seguramente.

É por isso defender a ponderação da soberania sanitária não é um apelo ao obscurantismo, nem uma recusa da ciência. É, pelo contrário, a exigência de que a ciência permaneça livre, que o debate permaneça aberto, e que a saúde nunca seja usada como cavalo de Tróia para destruir as liberdades que ainda nos restam. A soberania sanitária deve ser, acima de tudo, uma soberania cidadã — não um decreto de emergência perpétua.

5. Soberania energética e a ideologia da transição verde

Se outrora a soberania energética significava a capacidade de um Estado controlar as suas fontes de energia, vital para a sua independência económica e até política, gerir os seus recursos estratégicos e garantir o abastecimento em nome da autonomia nacional, o discurso contemporâneo — dominado pela retórica da transição verde — dissolveu essa noção num nevoeiro ideológico. Sob a aparência virtuosa do combate às alterações climáticas, assiste-se hoje à edificação de um novo sistema de dependências, mais difuso e tecnológico, mas não menos assimétrico e coercivo.

Durante o século XX, a soberania energética estruturava-se segundo os 4S clássicos: Security (Segurança), Sustainability (Sustentabilidade), Supply (Abastecimento) e Smartness (Racionalidade Tecnológica). Estes quatro princípios procuravam equilibrar as dimensões geopolítica, ambiental, económica e científica da energia: garantir fornecimento estável, reduzir a poluição – e não apenas a questão das emissões de dióxido de carbono, mas também a conservação de áreas sensíveis e a qualidade de vida das populações –, assegurar autonomia de recursos e aplicar a inovação com prudência.

Com a globalização digital e a financeirização da energia, contudo, este equilíbrio foi capturado por lógicas corporativas e tecnocráticas. O poder decisório passou dos Estados para oligopólios tecnológicos e financeiros, que controlam redes, algoritmos e fluxos de dados, substituindo a prudência política pela eficiência algorítmica. O apagão de Abril de 2025 na Península Ibérica veio demonstrar essas fragilidades.

O abandono progressivo dos combustíveis fósseis é hoje apresentado como um imperativo científico inquestionável, um dogma moral acima de qualquer divergência. Contudo, a substituição do petróleo (um produto demasiado precioso para ser simplesmente como combustível) e do gás natural por energias renováveis e mobilidade eléctrica não dissolve as lógicas geopolíticas da energia — apenas as transmuta. As torres eólicas, os painéis fotovoltaicos e as baterias de lítio não emergem do ar nem se alimentam do sol: dependem de cadeias de valor globais, assentes em matérias-primas críticas, tecnologias proprietárias e processos de extracção frequentemente violentos e ambientalmente agressivos.

A nova soberania energética não é nacional, mas corporativa. Aquilo que outrora era domínio das políticas públicas tornou-se mercado regulado por fundos de investimento, tratados climáticos e bolsas de carbono. A Europa, que antes edificara a sua segurança energética sobre uma base industrial diversificada, rendeu-se à ‘teologia da neutralidade carbónica’, aceitando como inevitável a dependência de semicondutores asiáticos, de lítio sul-americano, de cobalto africano e de turbinas chinesas. Em nome do clima, sacrificou-se a autonomia e até sectores ambientais relevantes como a preservação de habitats e da paisagem natural.

Não se trata de negar a necessidade de uma transição energética — mas de questionar o modo como ela é conduzida: verticalmente, sob hegemonia tecnocrática, fora do escrutínio democrático e do debate plural. E com pouco ênfase para a eficiência. A transição verde, em vez de projecto emancipador, tornou-se um processo pós-político, onde as decisões são impostas por agências multilaterais que definem metas, calendários e custos à revelia das comunidades. Qualquer dissidência é rapidamente considerada patológica: quem ousa criticar é rotulado de negacionista climático ou reaccionário energético, anulando-se o espaço para uma ecologia crítica e plural. Mimetiza-se o que se fez na pandemia.

A retórica verde oculta também a violência material da sua própria infraestrutura. A mineração intensiva de lítio, a expropriação de terras para megaparques eólicos e solares, a precarização laboral e os danos ecológicos são efeitos colaterais silenciados, apresentados como preço inevitável de um futuro limpo. Não há neutralidade quando os custos recaem sobre o Sul global e os benefícios se concentram no Norte financeiro.

Neste quadro, o conceito de soberania energética converteu-se em ornamento discursivo. Os Estados já não governam os seus recursos: executam agendas internacionais, medindo o êxito não pela resiliência dos cidadãos, mas pela adesão a metas de descarbonização definidas em conferências e gabinetes. A democracia energética cedeu lugar à governança tecnocrática, onde a legitimidade deriva de algoritmos, e não do voto.

Mais preocupante ainda é o uso do paradigma verde como nova gramática de austeridade. Sob o pretexto da sustentabilidade, impõem-se políticas regressivas: tarifas elevadas, proibição de veículos de combustão, taxação de carbono e imposição de obras coercivas de eficiência habitacional. Os ricos compensam com painéis solares e viaturas Tesla; os pobres pagam a factura da virtude climática. Assim, a transição verde corre o risco de reproduzir as desigualdades que prometia corrigir.

Há também uma dimensão simbólica nesta nova dependência. A bandeira ecológica tornou-se instrumento de legitimação política, substituindo a promessa de prosperidade pela retórica da sobrevivência. Os governos já não prometem direitos, mas metas ambientais; já não garantem bem-estar, mas salvação climática. A energia, outrora domínio da soberania, transforma-se em credo moral, onde a dúvida é heresia e a obediência é cidadania.

E, como em todas as cruzadas morais, os lucros concentram-se. Os fundos globais dominam as redes de distribuição, as multinacionais monopolizam a inovação, e as plataformas digitalizam e comercializam a pegada de carbono. O verde deixa de ser cor da terra: é o novo verniz do capital financeiro.

O verdadeiro desafio, portanto, não é recusar a transição energética, mas repolitizá-la. O combate às alterações climáticas não pode servir de cavalo de Tróia para a erosão da soberania e o agravamento das desigualdades. Uma autêntica soberania energética deve assentar em quatro princípios: diversidade de fontes, resiliência territorial, transparência dos custos e participação cidadã.

A dependência verde é, na verdade, sempre uma dependência; a soberania amputada é mera gestão da escassez com selo ecológico. Devolver à energia o seu estatuto de bem comum, e não de activo financeiro é, sim, a verdade emergência – e só uma cidadania energética consciente poderá converter o imperativo ambiental em instrumento de liberdade, e não em novo grilhão dourado da servidão tecnológica.

6. Soberania alimentar e a submissão aos mercados globais

A alimentação, por mais banal que pareça no quotidiano dos supermercados, é a forma mais íntima de dependência de um cidadão face ao seu Estado. A soberania alimentar, portanto, não é uma questão de agricultura nem de ambiente — é uma questão de poder. E, como acontece frequentemente na história dos impérios, a perda de controlo sobre os alimentos assinala a queda silenciosa da soberania.

No discurso político contemporâneo, a expressão “segurança alimentar” tornou-se uma espécie de calmante semântico, como se estivesse em causa uma mera classificação biológica. Tudo parece garantido desde que os lineares estejam cheios. Mas o que se omite neste conforto aparente é o seguinte: os alimentos chegam, mas a que custo? De onde vêm? Quem os produz? O que se adiciona? Quem os controla? E sobretudo: quem define o que comemos e como comemos?

A globalização dos sistemas alimentares criou uma estrutura em que as cadeias de produção são tão longas quanto opacas. Um tomate consumido em Lisboa pode ter sido produzido com sementes patenteadas por uma multinacional suíça, cultivado em estufas espanholas com mão-de-obra marroquina, embalado na Holanda e distribuído por uma cadeia sediada na Alemanha. Nada neste processo é soberano. Tudo é funcional a um mercado global onde as decisões são tomadas por empresas cotadas e intermediários logísticos. Os Estados limitam-se a assegurar que não haja protestos populares — ou, quando muito, no limite, que haja alimentos suficientes para as escolas e os quartéis.

Esta submissão é frequentemente disfarçada de modernidade. Fala-se em eficiência da globalização, em segurança no controlo alimentar, em produtividade, em livre comércio. Mas por trás desta retórica, oculta-se a verdade crua: a dependência alimentar da Europa — e de Portugal em particular — é estrutural, estratégica e crescente. Por exemplo, a produção nacional de cereais é anémica, com excepção do arroz, a balança comercial de bens alimentares é deficitária, e as políticas agrícolas são cada vez mais determinadas por directivas comunitárias negociadas entre gabinetes e lobbies, em Bruxelas, onde a terra é apenas uma abstração.

A Política Agrícola Comum (PAC), que foi frequentemente apresentada como um pilar de coesão europeia, tem funcionado sobretudo como um instrumento de uniformização e submissão dos sistemas produtivos nacionais. Sob o pretexto de eficiência e competitividade, a PAC impôs quotas, penalizações e modelos de financiamento que favorecem grandes explorações mecanizadas e penalizam o agricultor tradicional, aquele que, com o corpo e o saber, sustenta a fertilidade de uma comunidade. Em Portugal, a PAC contribuiu para a liquidação do sector pesqueiro e leiteiro tradicional, o abandono da cultura cerealífera e a reconversão forçada de zonas produtivas em áreas de conservação “passiva”, geridas por burocratas e organizações não-governamentais que vivem do culto do “reverdecer sem cultivar”.

Mas o problema não é apenas externo. A degradação da soberania alimentar é também cultural e institucional. A pressão regulatória, ambiental e sanitária sobre os pequenos e médios produtores tem conduzido à desertificação rural e ao colapso de estruturas locais de produção. A agricultura de proximidade é tratada como folclore ecológico, boa para feiras de fim-de-semana e relatórios de responsabilidade social. O modelo dominante é o da agricultura intensiva para exportação — ou da monocultura subsidiada —, gerida por operadores financeiros mais interessados em fluxos de capital do que em alimentos.

É nesta lógica que se impõe a ditadura do “custo por quilo” ou do “preço à saída da fábrica”, como se a alimentação de um povo devesse ser gerida com os critérios de uma cadeia de montagem. A qualidade nutricional, a resiliência do território, a justiça intergeracional ou a saúde pública tornam-se externalidades ignoradas. E quando surgem crises — guerras, pandemias, disrupções logísticas —, descobre-se que não há cereais suficientes, que os fertilizantes vêm todos de fora, que os circuitos de distribuição estão concentrados, que os preços disparam e que o país é apenas um entreposto.

A própria relação com os alimentos tornou-se precária e artificial. O saber culinário — que outrora garantia variedade, aproveitamento e saúde — foi substituído por uma dependência de alimentos ultra-processados, formatados para vício e longevidade de prateleira. A perda da soberania alimentar começa também na ignorância do que se come. E continua na renúncia voluntária a cozinhar, a plantar, a guardar sementes, a cuidar do solo e a conhecer o seu ciclo.

Mais recentemente, a subordinação alimentar assumiu contornos ainda mais inquietantes com a entrada em cena das novas narrativas tecnológicas: agricultura de precisão, carnes sintéticas, proteínas de insecto, agricultura vertical, alimentos geneticamente modificados. Tudo é apresentado como solução moderna e inevitável – e sempre com um selo científico. Mas quem controla estas tecnologias? Quem detém as patentes? Quem define as normas? A promessa de inovação serve, muitas vezes, para encobrir uma nova camada de dominação — agora biotecnológica — sobre os sistemas alimentares. A soberania, outrora exercida pela terra e pelas mãos, cede agora lugar ao algoritmo e à licença.

Estas novas formas de controlo alimentar têm ainda uma componente neocolonial. Os países do Sul global são, cada vez mais, tratados como “armazéns vivos” de terras aráveis, aquíferos e mão-de-obra barata. Os fundos soberanos, multinacionais alimentares e grandes investidores de tecnologia agrícola compram, em silêncio, milhões de hectares em África, Ásia e América Latina. Aquilo que aí se produz já não alimenta os povos locais — alimenta os mercados de capitais e as projecções de lucros dos fundos de investimento. E esta apropriação silenciosa da terra reverte-se, num dia, em chantagem alimentar sobre os que, nas cúpulas diplomáticas, dizem querer combater a fome no Mundo.

E não faltam novos sacerdotes deste culto alimentar: consultores do Fórum Económico Mundial, filantrocapitalistas entusiastas da agricultura sem solo, ecologistas que pregam o fim da pecuária e da cozinha tradicional, políticos que recitam metas de sustentabilidade sem nunca ter plantado um nabo. Todos dizem agir pelo bem do planeta, mas raramente pelo bem do cidadão concreto, que apenas quer pão digno, carne limpa, leite de verdade, preços justos e um campo vivo.

A soberania alimentar, em sentido estrito, não significa auto-suficiência integral – estamos muito preconizar políticas na linha da famigerada Campanha do Trigo que devastou campos agrícolas no Alentejo durante o Estado Novo. Significa, isso sim, a capacidade de um povo determinar o seu modelo agrícola, proteger os seus produtores, garantir o acesso justo aos alimentos e decidir, sem imposições externas, aquilo que come e o que recusa comer. Significa também saber dizer não à chantagem das sanções, aos diktats dos tratados de comércio, às imposições fitossanitárias que mascaram guerras económicas. E significa recusar a lógica que transforma a alimentação numa, em mais uma, mercadoria volátil ao sabor dos mercados de futuros.

Reabilitar a ideia de soberania alimentar como pilar de independência política é, por isso, uma prioridade. Um povo que não se alimenta a si mesmo não decide por si mesmo. Um Estado que não protege os seus produtores entrega-se, aos poucos, à servidão económica. E uma sociedade que aceita comer o que lhe mandam, não perde apenas um dos pilares da sua soberania – perde o último resquício de liberdade.

7. Soberania digital e o império dos algoritmos

A soberania, que outrora se media pelo controlo da moeda, do território ou das fronteiras, é hoje silenciosamente dissolvida nos cabos de fibra óptica, nos servidores remotos e nos centros de decisão algorítmica que orbitam acima da soberania clássica dos Estados. Aquilo a que se chama “transformação digital” é, na sua essência, uma operação de desmaterialização do poder, mas não da sua concentração. A materialidade do mundo político cedeu espaço à opacidade do ciberespaço, e a democracia passou a ser modulada por métricas, plataformas e inteligências artificiais que não prestam contas a ninguém — excepto aos seus accionistas. E são inalcançáveis aos cidadãos.

Quando se diz que os dados são o novo petróleo, diz-se mais do que se imagina. O petróleo serviu para alimentar a revolução industrial, mas também para cimentar hegemonias e alimentar guerras. Os dados não são diferentes. São matéria-prima, mas também instrumento de controlo. E os Estados que não controlam os seus dados, nem as infra-estruturas onde eles circulam, tornaram-se protectorados tecnológicos, mesmo que mantenham as cores da sua bandeira e os hinos da sua soberania.

O cidadão médio, iludido pela ubiquidade do digital, imagina-se mais livre por ter mais acesso à informação, mais meios de comunicação, mais serviços online. Mas esta aparente emancipação é, na verdade, uma nova forma de sujeição. A economia da atenção extrai da mente humana o seu rendimento mais cobiçado — o comportamento previsível. Através de sistemas de vigilância consentida, as grandes plataformas analisam padrões, antecipam decisões, moldam preferências e, a pouco e pouco, anulam a liberdade. A manipulação algorítmica não é ficção distópica — é prática corrente.

O modelo das plataformas é hoje a forma dominante de organização digital, e a sua arquitectura não é neutra. Foi desenhada para maximizar lucros por via da captura de dados, da modulação do comportamento e da intermediação de relações. A própria linguagem da rede — os gostos, as partilhas, os seguidores — transformou-se em sistema simbólico de legitimação, onde o mérito foi substituído pela visibilidade e a verdade pelo engajamento. O algoritmo substituiu o editor. E quando o algoritmo se torna a autoridade editorial, a censura deixa de ser um acto explícito: torna-se um desvio estatístico.

Não há aqui apenas um problema de concentração económica. Há um problema de concentração civilizacional. Nunca, em tempo algum, meia dúzia de empresas privadas teve tanto poder sobre a linguagem, a memória, a comunicação e a imaginação de biliões de seres humanos. E nenhuma destas empresas é europeia. O velho continente, ao abdicar da sua soberania digital, colocou-se numa posição de subalternidade histórica, à semelhança de colónias tecnológicas que importam ferramentas, lógicas e dependências, sem ousar construir alternativas.

Os governos, quando não colaboram, acobardam-se. Em nome da segurança digital, da inovação ou da luta contra o “discurso de ódio”, crimes de pornografia infantil ou abusos de opinião, aceitam mecanismos de vigilância e de filtragem de conteúdos que nunca passariam por referendo popular. Delegam nas plataformas privadas o policiamento da linguagem, entregam dados sensíveis a operadores externos e compram sistemas críticos a fornecedores estrangeiros. A soberania digital, entendida como a capacidade de um Estado garantir o controlo estratégico das suas redes, dos seus dados e das suas infra-estruturas, é sacrificada em nome da conveniência.

Durante a pandemia, este processo acelerou-se de forma brutal. Os passaportes sanitários digitais, os sistemas de rastreio, a monitorização de movimentos e a partilha compulsiva de dados médicos tornaram-se normalizados. A privacidade foi tratada como luxo burguês ou excentricidade conspirativa. Quem questionava os mecanismos digitais de controlo era silenciado, rotulado, banido. O que era provisório tornou-se estrutural. E as populações habituaram-se a não decidir, mas apenas a clicar.

Mas a perda de soberania digital não é apenas uma questão de governança técnica – é um problema filosófico. A substituição da mediação humana por sistemas automatizados implica uma nova ontologia do poder. O algoritmo não apenas executa uma ordem: interpreta, decide, antecipa. A inteligência artificial, mesmo quando limitada, actua como filtro da realidade e, por conseguinte, como poder constituinte. E se esse poder não é sujeito a controlo democrático, então temos uma nova forma de tirania — uma tirania sem rosto.

Repare-se como os sistemas de inteligência artificial já são usados para decidir sobre crédito bancário, admissões universitárias, prioridades de tratamento médico e medidas de vigilância policial. E como, perante decisões erradas ou discriminatórias, não há responsabilidade pessoal: o erro é do sistema, que não pode ser julgado, nem processado, nem removido por voto. Cria-se assim uma imunidade estrutural, onde os novos tiranos não usam uniforme nem ceptro, mas código e contrato de adesão.

Recuperar o conceito de soberania digital como parte integrante da soberania política é um dos desafios dos próximos anos. Isso implica exigir transparência algorítmica, limitar a concentração de plataformas, proteger dados sensíveis, reforçar infra-estruturas públicas de comunicação e, acima de tudo, promover uma cultura de autonomia tecnológica. Um país que não domina os seus sistemas digitais – e isso já se verifica, uma vez que, por exemplo, a ANACOM não tem intervenção diercta sobre as plataformas – está condenado a ser governado por entidades que não controla de facto por mais regulação e ameaças de multa que prometa.

Mais do que “inclusão digital”, o que mais falta é uma independência digital. Mais do que “competências digitais”, o que se precisa é de visão estratégica. A Europa, em particular, tem de decidir se quer ser uma colónia digital dos Estados Unidos e da China, ou se pretende construir uma civilização tecnológica própria, assente nos seus valores — incluindo o da liberdade.

E para isso, talvez seja preciso recusar o encantamento com a inovação pelo simples facto de ser nova. Nem toda a tecnologia é emancipadora. Nem todo o progresso é libertador. A soberania digital, enquanto condição de liberdade, exige não só engenharia, mas também coragem intelectual e vontade política. Exige dizer não ao servilismo tecnológico, e sim a uma nova ideia de civilização — onde os algoritmos não sejam senhores, mas servos.

8. Soberania institucional e o ocaso da legitimidade democrática

Uma instituição viva não se distingue de uma estrutura decadente por via de uma longevidade formal, nem pela pompa dos seus rituais, mas sim pela confiança que nela depositam os cidadãos que a sustentam. Por isso, uma democracia, enquanto arquitectura institucional, depende menos de sufrágios e mais de legitimidade. Mas essa legitimidade está hoje profundamente corroída no mundo ocidental — não por golpes de Estado, ou por riscos dessa natureza, mas por um longo processo de esvaziamento simbólico e captura funcional. Hoje, as instituições continuam de pé, mas muitas já não se têm de pé.

O apelo contemporâneo à “estabilidade”, à “transparência” e ao “progresso” transformou-se, paradoxalmente, num instrumento de legitimação da excepção política. Em nome da estabilidade, legitimaram-se na Europa governos tecnocráticos sem mandato popular directo, como na Itália de Mario Monti ou na Grécia de Lucas Papademos, ambos investidos em 2011 por via parlamentar e sob tutela da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, quando o discurso da urgência financeira permitiu suspender a lógica representativa. Em nome da transparência, aceitaram-se decisões opacas de organismos supranacionais, que fixam directrizes políticas sem qualquer sufrágio. E, em nome do progresso, normalizou-se a imposição de políticas públicas — fiscais, sanitárias ou ambientais — por peritos não eleitos, cujo saber técnico se tornou uma nova forma de autoridade moral.

Esta mutação semântica — em que valores emancipatórios são invocados para restringir a deliberação colectiva — representa um dos traços mais insidiosos da modernidade política. O filósofo alemão Jürgen Habermas descreveu este fenómeno como a “colonização do mundo da vida”: o momento em que a racionalidade burocrática e económica subjuga a comunicação pública, substituindo o diálogo pelo imperativo técnico. A estabilidade e o progresso, outrora promessas de emancipação, converteram-se afinal em narrativas de contenção, justificando governos de excepção.

Em Portugal, esta inversão atingiu o seu ponto mais visível durante a intervenção da troika (2011–2014). Sob o pretexto da salvação nacional, impuseram-se reformas estruturais — cortes salariais, privatizações e desmantelamento de serviços públicos — sem mandato eleitoral e sob condicionalismos externos. As eleições mantiveram-se, mas a soberania material foi transferida para instâncias externas, num modelo que aparentava legalidade democrática, mas operava segundo lógicas de tutela. Um padrão semelhante reapareceu durante a crise pandémica, quando restrições severas de direitos fundamentais foram legitimadas por autoridades sanitárias e comités científicos, frequentemente imunes a escrutínio.

O pensador italiano Giorgio Agamben identificou neste tipo de situações a consolidação do “estado de excepção permanente”: um regime em que a suspensão temporária da norma se torna condição habitual do poder. E se outrora a excepção era uma resposta transitória ao caos, hoje ela ameaça ser a gramática da governação. A autoridade democrática dissolve-se na gestão de crises, e o cidadão é convidado a obedecer em nome da sua própria protecção.

Neste cenário, a crítica e a contestação social, que constituem a essência da cidadania, são frequentemente requalificados como desvios. Quem exige escrutínio, contesta consensos ou questiona a retórica da inevitabilidade é rotulado de “populista”, “negacionista” ou “antissistema”. Este mecanismo de deslegitimação cumpre uma função disciplinadora: neutraliza a divergência e restaura o monopólio interpretativo das elites políticas e mediáticas, ainda mais quando a própria comunicação social se encontra, cada vez mais, sequestrada financeiramente por grupos económicos associados ao poder político.

Contudo, o verdadeiro problema não se encontra na desobediência dos povos, mas na deslealdade das instituições face ao seu pacto fundacional. Como advertiu o pensador francês Pierre Rosanvallon, as democracias correm o risco de se transformar em “contrademocracias invertidas” — isto é, sistemas em que o voto permanece, mas o poder de decidir se esvai. As estruturas políticas tornam-se autorreferenciais, orientadas não pelo bem comum, mas pela autopreservação.

Em Portugal, este desvio tem-se manifestado na crescente delegação da decisão soberana em agências reguladoras, tribunais e peritos sob a forma de task forces ou comissões – supostamente independentes, mas quase sempre controladas –, cujos critérios escapam ao controlo público. Sob a aparência da competência técnica, esconde-se uma lógica de distanciamento democrático. O cidadão, reduzido a espectador, é convidado a confiar em vez de deliberar. E quando o consentimento substitui o juízo, o espaço público converte-se num ritual vazio.

O sociólogo alemão Ulrich Beck defendia que vivemos já na “sociedade do risco”, em que o medo se torna agora um método de governo. A antecipação do perigo — financeiro, sanitário, climático — serve de justificação para medidas extraordinárias: governa-se pelo alarme, e o medo converte-se em legitimidade.

A crise das democracias, portanto, não é uma crise de participação, mas de representação e responsabilidade. O desafio do nosso tempo é restituir sentido político às instituições, reconectando-as ao juízo cívico e à pluralidade de vozes que lhes dá legitimidade. A estabilidade não pode ser pretexto para abdicar da soberania; a transparência não pode servir de cortina à opacidade; e o progresso não pode impor-se por decreto. Enquanto o contraditório for tratado como heresia, a democracia será apenas um eco do poder, e não a sua medida. As democracias liberais do pós-guerra construíram-se sobre a ideia de representação, separação de poderes, garantias de direitos e controlo público da autoridade. No entanto, à medida que a globalização e o neoliberalismo se tornaram hegemónicos, essas instituições foram sendo adaptadas a uma nova realidade em que a política se subordinou à tecnocracia e o eleitor se transformou num espectador irrelevante.

A União Europeia é, neste ponto, um caso de estudo: o Parlamento não tem iniciativa legislativa, a Comissão não é eleita, o Conselho decide à porta fechada. A soberania institucional foi sacrificada à eficiência burocrática. Em simultâneo, os parlamentos nacionais foram-se tornando caixas de ressonância de partidos cartelizados, mais atentos às sondagens do que à soberania popular. A separação entre poder executivo e legislativo diluiu-se, a fiscalização perdeu vigor, e os poderes de controlo — como tribunais, entidades reguladoras ou órgãos de comunicação social — passaram a agir em simbiose com o poder, não como seu limite. O sistema deixou de ser um jogo de pesos e contrapesos e tornou-se um circuito fechado de legitimação mútua.

Na administração pública, a situação é igualmente preocupante. A lógica de “governança” substituiu a ideia de serviço público, transformando direcções-gerais em plataformas de execução de políticas externas ou interesses corporativos. A permeabilidade a grupos de pressão e fundações ditas “filantrópicas” compromete a independência decisória, e os organismos de supervisão são frequentemente habitados pelos próprios supervisionados, numa dança de cadeiras que anula qualquer aparência de imparcialidade.

Mas o mais grave é que esta erosão institucional decorre muitas vezes com o aplauso — ou a indiferença — da cidadania. Viciada no ruído mediático, absorvida por escândalos episódicos, anestesiada por políticas identitárias superficiais, a opinião pública deixou de exigir responsabilidade estrutural. Substituiu a crítica pela indignação – amiúde apenas nas redes sociais –, a acção pela denúncia moral, a participação pelo comentário. E as instituições, percebendo isso, adaptaram-se: tornaram-se mais performativas, mais mediáticas, mais decorativas.

No plano internacional, a subordinação das instituições democráticas a organismos multilaterais de contornos nebulosos acelerou a perda de soberania real. Decisões com impacto directo na vida dos cidadãos — como políticas sanitárias, fiscais ou ambientais — são frequentemente tomadas em fóruns onde não há representantes eleitos nem mecanismos de escrutínio. A democracia nacional torna-se uma ficção mantida por rotinas eleitorais, enquanto o essencial do poder escapa à deliberação popular.

Esta crise de legitimidade não é invisível: manifesta-se também em taxas crescentes de abstenção, desconfiança nas instituições, voto de protesto em partidos populistas e surgimento de movimentos alternativos — alguns genuinamente democráticos, outros perigosamente oportunistas. Mas a resposta institucional tem sido, quase sempre, reforçar os mecanismos de blindagem: criminalização da contestação (mesmo que apenas por palavras), censura disfarçada, reformas eleitorais que limitam a pluralidade, concentração dos media em grandes grupos, cooptação de movimentos sociais. Em vez de ouvir o clamor popular, o poder instituído procura abafar-lhe o eco.

E, contudo, mesmo assim há resistências. Há cada vez jornais de nicho, com linhas editoriais livres. Há plataformas jurídicas e académicas que desmontam narrativas oficiais e expõem as contradições normativas. Há cidadãos que, mesmo sem rede nem tribuna, insistem em escrever cartas, organizar debates, contestar decretos. São minorias — mas são esses elementos que preservam a ideia de que as instituições não são apenas mecanismos, mas formas de dignidade colectiva.

Se observarmos bem, a soberania institucional começa por uma ideia simples: a de que o poder deve prestar contas. E que não basta ser legal — é preciso ser legítimo. Ora, a legitimidade exige transparência, participação, pluralismo, justiça e memória. Quando as instituições se tornam opacas, exclusivas, dogmáticas, punitivas ou amnésicas, deixam de ser democráticas, mesmo que conservem os nomes e os edifícios. Passam a ser simulacros.

Recuperar a soberania institucional não é uma tarefa administrativa — é uma missão civilizacional. Exige reconquistar o valor da palavra dada, o peso da responsabilidade, a coragem da dissidência, a centralidade do bem comum. Exige que se diga, sem medo nem cálculo, que o rei vai nu — e que há mais dignidade na verdade solitária do que na mentira partilhada.

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