A DERIVA DOS CONTINENTES
Em louvor dos bons exemplos

Tendo agarrado pelos cabelos a cabeça de Golias, que acabava de cortar com a sua própria espada, verdadeiramente mais pesada do que uma montanha, comecei a alimentar-me desse manjar raríssimo que é a glória.
Carlo Coccioli
MÉMOIRES DU ROI DAVID
Tenho um filho lindo que é um verdadeiro marginal, fugido à Justiça sabe-se lá por onde. Não deixei de ser[L1] mãe dele, gosto imenso dele,[L2] continuo a comover-me de cada vez que vejo aparecer no meu monitor a sua carinha linda de criança, mas vamos lá com calma – este menino já tem mais de trinta anos e não deixa de ser um verdadeiro marginal, fugido à justiça sabe-se lá por onde. Se voltasse a entrar em Portugal ia preso. Por isso sobrevive por aí, como todos os marginais, sem visto de residência nem autorização de trabalho. Faz biscates para o submundo e partilha quartos com as outras pessoas que o povoam. Eu nunca sei onde, nem quero saber. O que vou sabendo, porque são truques que ele não para de magicar, são os seus planos para ficar livre, sobretudo aqueles em que a minha ajuda é importante. Este último era um desses. O meu filho lindo estava tão entusiasmado com a possibilidade de juntarmos as nossas forças para o libertarmos do estigma de viver escondido para sempre que me deu cabo do coração.
Já tinha raiado o sol de um dia que viria certamente a ser muito quente, porque estávamos à época em pleno Verão. O Sebastião sai às seis para a sua volta matinal pelas padarias e tascos[1] de Estremoz onde o pessoal há muito que cede ao seu charme e lhe dá qualquer coisa bastante melhor do que a ração. Eu ponho-me minimamente visível para sair um bocado depois, tomar um café, dar dois dedos de conversa, tomar outro café e finalmente acordar mesmo, às vezes comprar uma coisa ou duas para trazer para casa, por isso hão de ser aí umas sete horas, e ainda sopra o ventinho fresco da manhã, quando descarrego a minha carga na mesa da cozinha e oiço tocar a chamada do Messenger.

O meu marginal está sentado numa estação de metro, enfiado numa das suas habituais hoodies escuras muito largas, com a mão cheia de tatuagens a segurar um resto de pizza que deve ser o fim do seu pequeno-almoço, num dia que se entrevê cheio de nuvens, debaixo de um relógio que indica precisamente uma hora a mais do que a nossa. Faz-me o seu sorriso lindo assim que me vê, mas já não diz “então kota?”, como dizia sempre antes de fazer a grandessíssima parvoíce que agora o impede de voltar para casa ou de se gozar dos privilégios da União Europeia. Agora diz, com grande dignidade, “olá mãe”. Houve muita coisa que mudou no comportamento dele. Talvez já tenha passado tempo que chegue para o meu menino perceber que foi muito, muito estúpido[2]. ↓
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Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
Isto pensava eu, só de ouvir aquele “olá mãe” tão sério e sóbrio, poderíamos mesmo dizer – tão adulto.
“Mãe,” continua o meu menino, que, entretanto, já engoliu o resto da pizza e acabou de chupar um refrigerante qualquer de uma palhinha e deitou tudo não sei para onde e se sente mais livre para se animar. “Mãe, fiquei a saber que ainda posso fazer uma coisa para ficar livre… mas mãe, eu precisava da tua ajuda.”
“Da minha ajuda, filho?”
“Pois, mãe, não conheço mais ninguém que possa ajudar-me.”
“Meu querido, eu já te disse que te amo muito, mas que, depois da última parvoíce que fizeste, escusavas de voltar a tentar contar com a minha ajuda. E não te atrevas a tentar pedir ajuda ao teu pai porque…”
Ele já fez zapping.
“Mas mãe, eu ia defender-me sozinho. Só que esta defesa só funciona se tiver muita cobertura dos jornalistas, e quem conhece os jornalistas és tu.”

“Queres um salvo-conduto para vires a Portugal contar uma versão falsa da tua história a um bando de jornalistas, como se isso fosse possível, e como se achasses que a mãe te ajudava numa coisa dessas?”
“Não, mãe, eu vou contar a verdade. Mas, mesmo tendo cometido erros…”
“Erros? Filho, tu cometeste um erro monumental quando estavas quase a ser posto em liberdade e acabavam-se os erros todos, palerma!”
“Está bem, mãe, mas foi por amor[3]. E posso ser defendido em tribunal e ter uma pena já muito atenuada, desde que as pessoas estejam dispostas a ouvir-me. Não vou a Portugal, mãe. Posso ser julgado num país europeu que defenda os meus direitos de cidadão europeu. Eu agora estou em Inglaterra, mãe, e eles aqui têm esses tribunais e julgam casos desses, e portanto se os jornalistas portugueses prestassem atenção ao meu julgamento…”
“Filho…Alguém te vendeu essa história e te pediu dinheiro em troca? Ou foste tu que inventaste isso tudo sozinho para a seguir pedires não-sei-o-quê ao teu pai?”
“Não, mãe, é a sério. Há tribunais ingleses que fazem isto.”
“E tu achas que a tua mãe ia convencer todos os jornalistas portugueses que conhece a voarem para Inglaterra por causa de um malandro que fugiu da prisão?”
“Ó mãe não foi bem isso.”
“Porreiro, filho, combina com o teu advogado inglês como é que vão chamar ao que tu fizeste. Eu entretanto vou falar com alguns amigos jornalistas para ver se percebo melhor que raio de história é essa dos tribunais europeus que deliberam à luz de direitos europeus de que eu nunca ouvi falar.”
O miúdo percebeu que era melhor não dizer mais nada, e já estava em pé.
“Tenho de apanhar o metro, mãe.”
“Adeus, querido.”
O que se seguiu foi inacreditável[4], e claro que já não precisei de falar com ninguém.

Quando desliguei do meu marginal passava das sete e meia, fui tomar mais um café, arrumei na cozinha o que trouxe da rua e o que estava ainda em caos desde a noite anterior, tomei duche, e depois, por mero hábito, sentei-me a ver as notícias das oito.
Foi nesse dia que o Engenheiro Sócrates saiu todo arrogante[5] de dentro do Tribunal para dizer a uma multidão de jornalistas, microfones, e câmaras de televisão, que todo aquele processo era, de qualquer maneira, absolutamente irrelevante, pois que ele tencionava recorrer da forma como fora tratado durante todos estes anos para um tribunal da Europa alheio à União Europeia, mais precisamente em Inglaterra, invocando os seus direitos enquanto cidadão da Europa. E esse processo entraria em marcha assim que considerado necessário. Que eu saiba, esta foi a primeira refutação absurda que o primeiro grande governante corrupto da nossa democracia apresentou logo no início do seu julgamento, e eu nem queria acreditar.
Mas será que os marginais, de antípoda a antípoda, estão todos a seguir os males do mundo agarrados aos seus Smart Phones topo da gama[6], o que fez com que qualquer fora-da-lei da Austrália acordasse o meu filho a meio da noite com a grande notícia dos tribunais europeus que ilibavam os bandidos à luz das leis europeias? Basta acreditar que esta rede existe para o mundo ficar ainda um bocadinho mais horrível. E o meu filho acreditou na conversa com a mesma seriedade com que começou por experimentou começar por dizer-me que fez a sua incrível estupidez “por amor” antes de ver a minha raiva, que é uma coisa que ele não está habituado a ver.
O meu querido marginal tem lá dentro um ladrão formidável que aos treze anos já sabia desmontar fechaduras de alta segurança, entrar pela janela aberta de um terceiro andar, e executar outras proezas afins; mas, tirando isso, sempre foi de uma ingenuidade assustadora. Aos vinte anos acreditava mesmo que no futuro seria o Rei dos Bandidos, impossível de prender por estar no topo de uma pirâmide em que presos iam os outros, todos aqueles que lhe obedeciam e o protegiam à custa do seu próprio coiro.

Da última vez que o vi em pessoa estava a pedir-me a chave da casa para me fazer um jantar especial, dado que era o primeiro dia do meu novo emprego e eu ia chegar muito tarde e muito cansada. Acho que lha passei para a mão porque às sete da manhã já estava cansadíssima e atrasadíssima e houve ali um minuto em que deixei de pensar e o tratei como se ele fosse uma pessoa normal.
Ao princípio da tarde, sem qualquer espécie de embaraço, voltou a aparecer na rua e parou diante do meu prédio, num Volkswagen carocha descapotável e todo artilhado, obviamente roubado de propósito para a operação em vista, com a putéfia ao volante. Explicou aos vizinhos que ia ter com o irmão a Londres onde já estava à sua espera um bom emprego como segurança[7]. Assim sendo, ia vender todas as suas posses electrónicas, que não teriam qualquer utilidade em Inglaterra. Dito isto, e contando até com a ajuda bem-intencionada de alguns vizinhos que andavam por ali e nem hesitaram em ajudar o filho da Clarinha que todos eles conheciam perfeitamente, tratou de limpar tudo o que lá havia em casa – plasma gigante, o meu PC topo da gama cheio de trabalho original que no entanto estava escondido no meu quarto e o meu quarto estava trancado, aparelhagem, máquina Nespresso que na altura ainda era um verdadeiro investimento, enfim: não consigo lembrar-me da lista toda, mas lembro-me do ridículo de até o meu secador de cabelo, daqueles pequeninos, de viagem, ter ido na voragem. Só escapou a varinha mágica, porque estava dentro de uma gaveta e o meu ladrão nem se deve ter lembrado de que isso existia.
Não está em causa se me partiu ou não o coração. Está em causa a ingenuidade do ladrão audacioso que dá uma golpada destas depois de uma longa acumulação de processos em tribunal, e acredita mesmo que não vai acontecer-lhe nada.
O Engenheiro Sócrates também deve ter passado toda a sua governação de roubos e favores acreditando mesmo que não ia acontecer-lhe nada.
Parte do que o meu filho levou era minha, de facto[8]. Mas a outra parte, na mesma medida, era do senhorio. Telefonei-lhe imediatamente, e ele veio imediatamente, e fez imediatamente o inventário de tudo o que faltava, tanto do que era dele como do que era meu e estava ao serviço da casa. Ouviu atentamente as descrições dos vizinhos que tinham visto o dito cujo carocha descapotável todo artilhado, e certamente roubado, com uma gaja feia como cornos ao volante, tomou nota das horas, raciocinando que alguém havia de apresentar queixa pelo roubo do carro e depois seria tudo uma questão de cruzar dados. Convidou-me para ir com ele à polícia formalizar a queixa, eu declinei porque o que podia fazer já tinha feito, mas alguns espontâneos que tinham visto ou mesmo ajudado no roubo por engano juntaram-se a ele, e lá foram todos para a sua Batalha da Alfarrobeira pessoal.

Dada a quantidade de casas que aluga naquele bairro, e a enorme rotação de pessoas que habitam essas casas, o senhorio tem uma relação privilegiada com a polícia.
Qualquer polícia gosta de protagonizar a conclusão inevitável de uma história tão bem contada, praticada por um indivíduo cujo nome consta em tantos processos.
Na manhã seguinte, quando o meu ladrão foi com a putéfia vender os seus despojos da batalha ao Cash Converters, fez soar o alerta e já nem sequer conseguiu voltar a sair de lá de dentro.
Ela fugiu com o carocha e deixou-o abandonado num baldio qualquer.
Ele, depois de tudo baralhado e voltado a dar, apanhou uma pena não comutável de oito anos de prisão.
Há já uma eternidade que eu lhe dizia que era isto mesmo que acabaria por acontecer ao Rei dos Bandidos.
Não que esta justiça poética me faça feliz.
Agora o meu Rei dos Bandidos, que pelos vistos ainda acredita no Pai Natal, inspira-se num Rei dos Bandidos de outra índole para tentar adquirir o direito a não passar mais tempo na prisão. Só que o Rei dos Bandidos também conhecido como O Único Primeiro-Ministro Português Que Foi Preso Até À Data pela prática de 31 crimes tem uma rede impressionante de facínoras a trabalhar para ele desde que assumiu as rédeas do seu primeiro governo absoluto em 2005. E, pelos vistos, sobram-lhe a título de escudo humano suficientes restos dessa rede, ou porque entretanto também já foram presos e precisam de protecção, ou porque entretanto já se criaram também suspeitas contra eles e precisam de ajuda para não virem a ser presos. A verdade, meu filho, é que, ao todo, esta tropa-fandanga incluía 28 pessoas, com um total de 189 crimes distribuídos entre elas. E eram todas, todas, todas – autarcas, banqueiros, administradores de grandes empresas públicas ou privadas, estes membros da Rede Sócrates, que foram sendo presos um por um para estupefação crescente dos portugueses, eram todos, de facto, verdadeiros bandidos.
Sabes, amor, a tua mãe às vezes interrogava-se. Por exemplo, via seis autoestradas, todas paralelas, rasgar de alto a baixo o Norte do país. O Norte do país não precisa de seis autoestradas paralelas. O lobby do betão tinha pago a alguém, mas a quem? Pela rapidez com que aquilo aconteceu, até parecia que tinham pago directamente ao Primeiro Ministro. Ainda por cima, ele tinha antecedentes. Os jornais já tinham exposto a ligação da sua família à construção do FREEPORT[9] em plena zona protegida do estuário do Tejo. Claro que ele disse que eram só calúnias. Tinha a seu favor ainda ser cedo no primeiro mandato. Eu, pelo menos, não gosto de pensar mal de ninguém. E devem ter existido, nessa altura, milhares e milhares de outros portugueses como eu.
Mas depois via o Primeiro-Ministro a passar férias com os filhos e com a namorada, o que ao todo faz quatro pessoas, durante quinze dias na Quinta do Lago. E pensava, mas que estranho, a Quinta do Lago é um dos resorts mais caros e exclusivos de todo o Algarve, onde é que ele vai buscar o dinheiro? É que os primeiros-ministros, enquanto estão nessas funções, não podem ser mais do que empregados do Estado ao serviço do Estado. E um funcionário público que é primeiro-ministro pode ser mais bem pago do que outro que é médico num Centro de Saúde, mas não é propriamente tão bem pago que possa assim instalar-se à vontadinha durante quinze dias na Quinta do Lago, sempre a frequentar restaurantes e outros locais a pagantes conforme constava das fotos que iam aparecendo nos jornais.

E dava ideia de que os seus rendimentos eram cada vez maiores, porque os seus comportamentos eram cada vez mais dignos do parolo a quem saiu o euromilhões. Ao fim de três anos do seu segundo governo, já em plena “gestão da crise”, quando o pessoal cada vez tinha menos dinheiro mas não conseguia perceber nem como nem porquê, nem os bancos nos davam grandes explicações[10], o Engenheiro Sócrates convocou a Troika para gerir as finanças portuguesas, invocou a sua eterna cláusula de estarem todos a faltar-lhe ao respeito, e apresentou a demissão. Logo a seguir fez o que disse ser o seu dever fazer para não deixar o povo português entregue às más línguas: partiu para Paris, onde foi fazer um Mestrado em Engenharia na Sorbonne.
Estas más-línguas nem sequer eram assim muito más. Foram antes um murmúrio de estupefacção quando se soube de onde vinha o título de engenheiro de José Sócrates: tirara-o numa universidade privada sem historial de cursos de engenharia, com aulas dadas aos domingos propositadamente para si, e créditos baseados sobretudo no seu trabalho político, incluindo a introdução no país dos carros eléctricos, que ainda estava em curso aquando desta investigação. Mas bom, vá: já que os grandes intelectuais portugueses tinham suspeitado gravemente das suas credenciais, ele agora ia mostrar a todo o seu país o que valia com um Mestrado tirado numa das melhores universidades da Europa.
Tudo bem, mas – uma vez mais, tudo aquilo era muito estranho. A Sorbonne aceitava sem hesitações um candidato com aquela licenciatura duvidosa, vinda de um candidato que nunca ninguém ouviu falar francês e cujo inglês, até, era medíocre? Tinha dinheiro para viver calmamente numa cidade tão cara como Paris, e ainda por cima naquele apartamento de luxo num bairro de luxo?
Eu acho que não fui só eu. Acho que foram todos os portugueses que, a partir daí, descreram cada vez mais da honestidade daquele indivíduo, que ainda por cima depois disso nem pareceu estar a estudar nem se mostrou muito dado a por os pés em Portugal.
O primeiro-ministro sem vergonha em quem tu te inspiraste para seres ouvido num “tribunal europeu” foi preso no Aeroporto da Portela quando regressava de Paris, a 21 de Novembro de 2014. Juntamente com ele, começaram logo a ser presos os outros suspeitos que lhe eram mais chegados. A situação foi-se revelando de tal forma séria que, mesmo quando foi libertado, a 16 de Outubro de 2015, ficou proibido de voltar a falar com todos os outros arguidos no processo, que não paravam de crescer em número.
Os portugueses nem sabiam o que é que haviam de pensar.
Em Maio de 2018, quando o Engenheiro abandonou o Partido Socialista, os portugueses sentiram-se ainda mais incomodados.

E aqui aparece o último personagem sem vergonha que se descobre ter entrado em conluio com o Engenheiro, quando ele já ia nesse seu tal segundo mandato e estava a ver toda a Europa social-democrata à sua volta a caminhar lentamente para o desastre financeiro – e não devia ser nada disso que queria para a sua vida pessoal.
Este novo amigo secreto era o banqueiro Ricardo Salgado, director do antigo Banco Espírito Santo, que ensinava carinhosamente aos colegas mais novos que é importante ter sempre um Xanax no bolso de dentro do casaco, para ir rapidamente dar-lhe uso à casa de banho em caso de crise de pânico durante as reuniões mais difíceis[11]. Os outros banqueiros chamavam-lhe o DDT[12].
Ora bem, a certa altura, por volta desse ano fatídico de 2014, este Ricardo Salgado transferiu quase dois mil milhões de euros para contas em nome da mulher e dos filhos. Cinco meses mais tarde, declarou o colapso financeiro do seu próprio banco. Isto devorou, logo ali, num segundo, todos os investimentos, grandes e pequenos, que dois mil portugueses tinham feito ao longo da vida. Estas pessoas tornadas subitamente pobres, que agora tinham apenas um rótulo taxonómico digno de uma tabela de Excel, passaram a chamar-se “os lesados do BES” e tem sido impossível recompensá-las até hoje. Só à sua conta, Ricardo Salgado fizera entretanto desaparecer duzentos mil euros num offshore de Singapura onde o Governo português não tem maneira de chegar. Depois foi proibido de sair do país e começou a ser visto em grandes passeios ali pelo Estoril na companhia dos seus dois guarda-costas, que se não eram agentes da MOSSAD imitavam muito bem.
Finalmente, em Janeiro de 2017, também este indivíduo simpático foi condenado no mesmo processo que envolvia o Engenheiro José Sócrates[13]. E, em Março, foi também condenado o administrador da Quinta do Lago, pelo que ao menos ficámos a saber de onde é que vinham aquelas férias em família de bizarro luxo.
Os portugueses, que pensavam que já tinham visto tudo, e que tinham tudo isto subtraído das suas contas bancárias, nem queriam acreditar na porcaria do filme que estavam a obrigá-los a ver.
Querido filho, se por acaso estiveres mesmo a ler isto, como a mãe te pediu, lembra-te por favor de uma coisa: o ex-primeiro-ministro que está a ser julgado e se saiu com essa conversa do “tribunal europeu” em Inglaterra é tão desavergonhado que consegue mentir mais vezes seguidas do que tu. Tu podes ter feito muito mal à tua mãe, bastante mal ao teu pai, e, agora para o fim, um mal a que eu chamaria imperdoável ao teu irmão mais velho. Mas aquele senhor conseguiu fazer muito pior, porque fez mal a todos os portugueses. Fez-lhes o pior mal que se pode fazer a um povo: tirou-lhe o chão de debaixo dos pés.
Esquece o gajo, que ele não podia ser mais tóxico.
Eu ainda me lembro de Portugal ser uma nação feliz, onde nós tínhamos de ser fortes e resilientes e segurar a barra das nossas próprias ideias quando as levávamos para o trabalho ou para a educação dos nossos filhos, mas desde que a segurássemos com força conseguíamos todos ter vidas bonitas, com amigos porreiros iguais a nós que eram pais de filhos da idade dos nossos, e seguir viagem com alegria porque essas viagens eram possíveis desde que lhes planeássemos bem os custos à partida. Portugal nunca foi um país de ricos, mas era um país onde as pessoas da classe média como nós podiam encher os carrinhos dos supermercados até eles ficarem a deitar por fora, mandar entregar aquilo tudo em casa sem pensar mais do assunto, e sair logo dali rumo a qualquer outra coisa mais interessante porque nessa altura, nesse tempo, havia imensas coisas interessantes e era possível viver assim. Se isso agora se tornou tudo tão inacessível que já nem pensamos em fazê-lo com os nossos netos, hás de ter ouvido dizer muitas coisas sobre de quem foi a culpa. Foi do Euro. Foi da União Europeia. Foi do Passos Coelho. Foi da Troika.

Não, meu amor. A culpa foi deste senhor em quem tu te inspiras para tentar apagar as faltas do teu passado,
Sabes, filho, por alguma razão este senhor que te deu o exemplo há de ter passado 288 dias de prisão preventiva em Évora, e depois mais 42 dias de prisão domiciliária. Passada a fase do “Tribunal Europeu”, a sua estratégia é tão repetitiva que já toda a gente a percebeu e já absolutamente ninguém lhe liga: vai para os julgamentos empatar, empatar, empatar, à espera que a maioria dos seus processos prescrevam.
O mal que ele fez aos portugueses, tornando-os tristes e cansados, tão paralisados pela falta de fundos que ainda conseguem juntar-se para beber uns copos mas já não viajam juntos nem sonham acordados, incapazes de acreditar nos políticos e na política, e por regra mais absentistas do que outra coisa – esse mal, infelizmente, não é passível de prescrever. Foi com este senhor que dez milhões de nós perceberam, com sincero horror, que um primeiro-ministro pode ser uma ave de rapina voraz, que todos os dias abate mais uma presa para seu proveito próprio e de mais ninguém. Isto, e mais tudo o que se seguiu como se a culpa fosse nossa – ah, meu filho, isto quebra mesmo a espinha às pessoas, e se ainda não lhes roubou tudo agora rouba-lhes o orgulho. E tu podes andar por aí a vida inteira a roubar aquelas cenas que tu sabes roubar tão bem que nunca haverá forma de chegares a Rei dos Bandidos – nem fora nem dentro da prisão, como viste.
Um beijo de muita saudade,
da Mãe.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] E mesmo casas de pessoas que se levantam cedo e apreciam os olhos meigos da sua visita feliz. É um total desavergonhado, o meu cão.
[2] Não podia mesmo ter sido mais estupidamente cretino. A sorte dele foi eu não poder esbofeteá-lo. Ao fim de seis anos, quando basicamente estava quase a cumprir os oito anos estipulados pelo Tribunal e muitíssimo bem merecidos, aproveitou o seu primeiro fim de semana em liberdade para fugir da prisão “porque eu morro de saudades do meu amor, ó mãe”. Mentiu ao Pai para conseguir sacar-lhe os cobres ingénuos do costume, obrigou o irmão a acolhê-lo na sua casa perto de Londres onde já vivem o casal e quatro filhos, e o tio a dormir na sala e todo o dia a fumar ganzas e a ver filmes de porrada não é bom exemplo para ninguém, mas não era o irmão mais velho que ia denunciar fosse a quem fosse o que realmente se passava na vida do irmão mais novo, eu ainda não tinha conseguido falar com ele mas percebi logo a história toda graças ao Engenheiro Sócrates, e tive de ser o corvo enorme das más notícias. Ainda por cima há aqui uma chatice acrescida, que é que o meu rapaz marginal adora o Primeiro-Ministro Marginal, porque houve um dia dourado na sua vida, aos oito anos, em que todos nós menos o Dick corremos a meia-maratona de Lisboa, passámos sobre a Ponte 25 de Abril, o meu menino adorável e lindo, que tinha andado a treinar, fez um sprint de todo o tamanho e ultrapassou o Sócrates. Um dos Guarda-Costas até o pôs aos ombros, toda a gente lhe bateu palmas, e eu até escrevi uma crónica a dizer que democracia é quando um puto de oito anos ultrapassa um primeiro-ministro. Só mo vieram entregar à noite e ele estava nas nuvens. E não se fala mais nisso.
[3] De certeza que ele viu a minha cara quando invocou o amor, porque deixou logo cair o argumento. A mulher a quem o meu filho chama o seu amor é uma putéfia feia como cornos, mas em contrapartida bastante sábia na arte da ladroagem, que tem o rapaz estranhamente hipnotizado há mais de dez anos.
[4] Para mim, claro.
[5] Passe a redundância.
[6] A facilidade com que este rapaz deita as unhas aos melhores gadgets dos outros é digna do Flash e corta mesmo o fôlego. Há muito, muito tempo, teria ele uns doze anos e uma voz mais de criança do que de adulto, andava eu às voltas na Rotunda dos Três Pastorinhos a praguejar cada vez mais alto no meio do trânsito espesso do Natal. Tínhamos encontro marcado na aldeia dos nossos Avós, e eu queria ir lá ter pela estrada antiga, aquela por onde os nossos Avós nos levavam de férias para a Nazaré. Sabia que tinha de escolher ali mesmo uma daquelas imensas saídas, mas o mundo tinha mudado ferozmente desde a minha infância e eu não conseguia encontrar-lhe nem o rasto. De repente oiço aquela vozinha inconfundível lá de trás: “Ó Mãe, mas como é que se chama a nossa aldeia?” – “Então filho, chama-se Tremês, não é? Porquê?” – “É que o meu telemóvel tem GPS”. Pôs-nos no caminho certo num segundo, e eu achei melhor nunca lhe perguntar de onde é que vinha aquele Smart Phone com GPS, que na altura ainda era uma raridade. Não foi nenhum de nós que lho deu, e a semanada nunca chegaria para a aquisição de semelhante estravagância. Os putos estavam todos tão maravilhados por verem casas verdadeiras com pessoas verdadeiras, e até um cavalo estranho que eu tive de esclarecer que era uma mula e explicar como é que se obtinha e para quê, que deixei o ladrão de doze anos ter o seu momento de glória. O irmão mais velho também não é melhor, foi o que eu pensei para me calar. Ainda não estava refeita do desaparecimento do meu maravilhoso zipo dourado, e esse levou caminho numa altura em que o mais novo estava comigo em Tavira a participar numas filmagens para o Cunha Telles, em que lhe assistia o privilégio de chamar puta à Marisa Cruz, e depois levar um beijinho dela. Só o mais velho é que ficou em casa.
[7] Era o emprego do irmão naquela altura.
[8] Agora lembrei-me de outro farrapo igualmente ridículo, que foi a minha escova de dentes eléctrica já muito velhinha. Dada a penúria, passou-se bastante tempo até conseguir comprar outra.
[9] Lembro-me muito bem do que os meus filhos gostavam de ir ao FREEPORT quando era preciso fazer compras por atacado, tipo meias e sapatos para o início do ano escolar naquelas idades em que eles não param de crescer e de rasgar as calças todas nos joelhos a jogar futebol no recreio. Decrépito como o outlet está agora, duvido que lhes parecesse muito apelativo. Em troca de uns cobres a família Sócrates terraplanou uma área vastíssima do estuário, e acabou por criar um elefante branco.
[10] Era mais que nos incitavam a comprarmos a segunda casa sem termos ainda acabado de pagar a primeira. Parece que tinham combinado o golpe com o primeiro-ministro em pessoa.
[11] As coisas que eu sei, estão a ver? E, na altura, ninguém sonhava, sequer, com o que este mestre seria capaz de fazer mais tarde.
[12] Dono Disto Tudo era um epíteto negativo muito em voga entre a estudantada do esquerdalho durante os dias agitados do PREC. “E depois chega a gaja, a arrastar as botas, completamente DDT”, indicava que quem estava a falar detestava a dita gaja, que devia estar no poder de qualquer coisa, nem que fosse, simbolicamente, de um coro, ou de uma comissão de moradores. O termo pareceu extinguir-se com o tempo, para ser surpreendentemente reacendido pelos outros banqueiros quando inicialmente questionados sobre a seriedade de Ricardo Salgado. Não deixou de estar em uso desde então.
[13] E pouco depois apresentou-se ao grande público com um caso crescente de doença de Alzheimer, igual àquela que a tua Avó teve, lembras-te? Aquela que te fez deslocar-me a omoplata porque podia ser Natal à vontade mas tu não ias visitá-la ao Hospital nem morto? São brutalidades destas que dão origem a ordens de restrição, eu é que me fiz de mula e olhei para o outro lado quando voltei da UMass porque tinha muitas saudades tuas. Agora, no caso no Ricardo Salgado, que estava dolorosamente mais decadente quando eu voltei, claro que aquele Alzheimer até pode ser uma mentira muito bem arquitectada, mas enfim, convenhamos: dá imenso jeito.