QUEDA DE VENDAS DE 50% EM CINCO ANOS
Portugueses ‘divorciaram-se’ dos jornais em papel

O hábito matinal de parar no quiosque, comprar o jornal e folheá-lo no café, no trabalho ou nos transportes públicos desapareceu. O ritual que durante décadas marcou o quotidiano português está em vias de extinção. Os números de exemplares vendidos da imprensa escrita relativos ao ano passado, hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), mostram um colapso contínuo. Em 2024, venderam-se apenas 76,3 milhões de exemplares impressos, entre jornais, revistas, boletins, anuários, folhetos e outro tipo de publicações — o valor mais baixo desde que há registos sistemáticos.
Os jornais representaram 56,9 milhões de exemplares, enquanto as revistas 19,4 milhões, o que, podendo parecer, à primeira vista, números expressivos, acabam por ser deploráveis numa população que ronda os 10,5 milhões de habitantes. Ou seja, cada português comprou, em média, apenas sete publicações no ano passado — menos de um jornal a cada cinquenta dias. Há trinta anos, um leitor habitual comprava, em média, quase essa quantidade num único mês.

A crise mostra ser estrutural. Em 2019, antes da pandemia, o país ainda somava 151,5 milhões de exemplares vendidos, dos quais 105,4 milhões foram jornais. Em cinco anos, a quebra foi de quase 50%. E se recuarmos ao final dos anos 90, o panorama é ainda mais devastador: em 1999 e 2000 venderam-se mais de 400 milhões de exemplares de publicações por ano. Hoje, vende-se menos de um quinto. A imprensa escrita portuguesa atravessa, portanto, a maior derrocada da sua história moderna. ↓
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A erosão tem sido constante nesta era do digital. A partir de 2009, com a crise financeira e a ascensão das plataformas online, as tiragens começaram a ruir. A Internet ofereceu de graça — e com menor qualidade — aquilo que até então se comprava. E os jornais foram os seus próprios coveiros: colocaram online o conteúdo que justificava o papel, antecipando a notícia. O jornal impresso acabou por se transformar num repositório das versões digitais do dia anterior.
A pandemia da covid-19 acelerou o processo. Entre 2020 e 2024, desapareceram quase 45 milhões de exemplares anuais. Mesmo em relação ao ano anterior, a queda é evidente: menos 8,6 milhões de exemplares face a 2023. A leitura de jornais impressos tornou-se um resquício geracional. O quiosque, outrora espaço de sociabilidade e curiosidade cívica, é agora um posto de sobrevivência comercial. E a quebra de leitores em papel arrasta consigo toda uma economia paralela: distribuidores, tipografias, publicitários e pequenas editoras.

A comparação europeia sublinha, ainda mais, o declínio português. A comparação europeia sublinha, ainda mais, o declínio português. De acordo com dados compilados pela World Association of Newspapers and News Publishers (WAN-IFRA) e com as estatísticas nacionais de circulação da ACPM (França), BDZV (Alemanha) e OJD (Espanha), em países como a Alemanha e a França vendem-se entre 30 e 40 exemplares de publicações impressas por habitante e por ano, enquanto em Espanha o número ronda os 20. Portugal, o país que nos anos 90 chegou a ser um dos mais fiéis leitores de jornais per capita do sul da Europa, é hoje um deserto de notícias em papel.
Para Eduardo Cintra Torres, professor e crítico de media, ouvido pelo Página Um, a explicação é multifactorial. “Por um lado, a oferta dos conteúdos na Internet pelos que os vendiam até à véspera foi uma das causas. As alternativas gratuitas — jornalísticas, não-jornalísticas e até roubadas — tornaram desnecessário para muita gente o investimento na compra diária ou casual de imprensa.” O académico lembra ainda que “os próprios media fazem concorrência a si mesmos, com edições em papel e digital”, e que “o confinamento durante a pandemia erradicou o hábito da compra de jornais por muita gente. Muitos quiosques fecharam”.
Mas a crise não é apenas tecnológica: é também cultural e económica. A perda de leitores coincide com a perda de confiança e de relevância. O jornalismo transformou-se num produto rápido, opinativo, repetido, dependente da agenda oficial e cada vez mais desligado da vida real dos cidadãos. A falta de leitores pagantes gerou a dependência do Estado, da publicidade institucional e das grandes empresas. E uma imprensa que já não vive dos leitores deixa inevitavelmente de os servir.

Os dados das tiragens em papel revelados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) deste ano confirmam o colapso: o Público vende menos de 10 mil exemplares diários em papel, o Diário de Notícias mal ultrapassa 900, o Jornal de Notícias desceu para 16 mil, o Expresso para cerca de 33 mil por edição, e a revista Sábado fica-se nos 13 mil. O Correio da Manhã, outrora o bastião popular, regozija-se por vender “mais de 34 mil por dia”, o que ainda assim representa menos de um terço do que vendia em 2011. A popular revista Maria, que em 2008 vendia 325 mil exemplares por semana, está agora com vendas da ordem dos 23 mil. São números que confirmam a tendência captada pelo INE: um colapso social e económico da leitura impressa.
Em todo o caso, Eduardo Cintra Torres mostra-se optimista: “Como não há democracia sem jornalismo, e como as sociedades precisam dele, penso que estamos num período de ajustamento numa situação de mudança brutal na comunicação nacional e mundial e que terá de haver modelos rentáveis de comercialização dos conteúdos jornalísticos e informativos”.