EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Vá lá, Dino d’Santiago, tu és capaz: processa lá um jornalista por fazer jornalismo

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Pedro Almeida Vieira|18/10/2025

O primeiro dever de um jornalista é o da verdade, e o segundo é o da coragem. Entre ambos não pode existir hesitação. O jornalismo não serve para confortar consciências nem para proteger reputações, mas para escrutinar o poder e a influência — sejam de ordem política, económica, social ou cultural.

Dito isto, toda a actividade nobre deve ser reconhecida, mas nenhuma, por mais virtuosa que se proclame, pode ser transformada em reduto imune ao olhar público. A missão do jornalista é, de facto, desconfortável: quando cumpre o seu dever, inevitavelmente fere susceptibilidades. Porém, se o medo das consequências orientar a sua investigação, então já não se pratica jornalismo — pratica-se reverência.

Não coloco em causa o mérito de causas sociais cívicas – fui dirigente nacional da Quercus nos anos 90 – nem o valor de quem as promove; o que coloco em causa é a ideia de que a nobreza de um propósito justifica o silêncio sobre a origem e a aplicação dos dinheiros públicos. O Estado não deve ter beneficiários especiais. Quando a visibilidade mediática se torna porta de acesso privilegiado a fundos públicos, o dever de escrutínio torna-se ainda mais imperativo. As boas intenções não substituem a prestação de contas.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

O PÁGINA UM publicou, em dois artigos ao longo desta semana (aqui e aqui), uma investigação documentada sobre os financiamentos públicos recebidos pelo músico Dino d’Santiago — quer através da sua empresa unipessoal, a Batuku Roots, quer através da associação que fundou e preside, a Mundu Nôbu. É uma história que não se resume a música ou a filantropia, mas que envolve quase 1,6 milhões de euros de dinheiros públicos.

A associação, criada há menos de dois anos, garantiu já perto de 800 mil euros em apoios e contratos, incluindo concertos a preço hiperinflacionado. E, apesar de se apresentar como entidade de intervenção social, não divulga os seus órgãos sociais, não revela o número de associados, não promove adesões e não apresenta relatórios e contas aprovados. Aparenta ser um clube de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços sob a capa de associação para se livrar do estatuto de empresa, menos escrutinável.

Sublinhe-se: em democracia, ninguém, por muito admirado que seja, está acima do escrutínio. Não é o talento musical, a cor da pele, a fé política ou o empenho comunitário que conferem imunidade à fiscalização pública. Quando um cidadão, como Dino d’Santiago, gere dinheiros do Estado, a opacidade é um insulto a todos os contribuintes. É precisamente em nome da igualdade e da justiça que o jornalismo não pode distinguir entre “bons” e “maus” destinatários de fundos.

Reconheço — e é preciso dizê-lo sem hipocrisia — que investigações como esta podem gerar reacções indesejáveis, e pessoalmente não aprecio absolutamente nada (e até abomino) algumas reacções que li nas redes sociais sobre os artigos do PÁGINA UM. Há quem procure distorcer a crítica legítima em ataque pessoal, ou até em insinuação racial.

Mas o jornalista que se retrai, por receio das interpretações do seu trabalho, trai o próprio sentido da profissão. Um jornalista não é juiz de intenções nem profeta de reacções; é apenas alguém que procura e expõe a verdade factual. Se dessa verdade emergem desconfortos, e reacções inflamadas, que se trate então de os resolver com transparência — não com vitimizações ou ameaças ao mensageiro.

Aquilo que é verdadeiramente se mostra intolerável é transformar o mérito artístico ou o activismo social em arma contra a liberdade de imprensa. Quando um protagonista público, como fez Dino d’Santiago, responde a perguntas legítimas de um jornal com ameaças de processos judiciais e acusações de difamação, demonstra precisamente o contrário do que proclama: falta de abertura e ausência de confiança na força dos seus próprios argumentos. A transparência não teme perguntas; teme-as quem tem algo a esconder.

Não ignoro que existam associações de base voluntária, frágeis na sua gestão e sustentadas por orçamentos diminutos. Essas merecem compreensão e até auxílio técnico. Mas não é esse o caso da Mundu Nôbu: em menos de dois anos, obteve somas avultadas de várias entidades públicas e estabeleceu mais de uma dezena de parcerias privadas. Uma estrutura com tal envergadura deve cumprir escrupulosamente as obrigações legais e morais de prestação de contas – até para dar o exemplo aos jovens que auxilia. Se o não faz, a legítima suspeita instala-se.

Dino d’Santiago, cidadão português nascido em democracia, com plenos direitos e também (presumo) deveres, deve compreender que viver de apoios públicos implica responsabilidade pública. Nenhuma biografia, por mais inspiradora, suspende as regras da República. As causas sociais não são licença para o sigilo, e a popularidade não é escudo contra o dever de transparência. É esse o princípio elementar de uma sociedade decente — e é esse o princípio que o PÁGINA UM defenderá até ao fim.

Deixo, pois, um repto claro: se Dino d’Santiago se julga injustiçado e difamado, que concretize a ameaça e me processe. Terá então oportunidade de nos explicar, em tribunal, como foram geridos os fundos públicos que recebeu. Do meu lado, não espere simpatias. Aliás, porque também sou cidadão, e não aprecio ameaças desta natureza (que andam a aumentar) pedirei à Inspecção-Geral das Finanças e ao Tribunal de Contas uma averiguação rigorosa sobre o destino das verbas públicas entradas na associação de Dino d’Santiago.

A transparência, devia ele saber, não é ofensa; é um dever. E o jornalismo não é instrumento de perseguição; é um serviço público. Quem verdadeiramente acredita na sua integridade não teme a luz da verdade. Que se acendam, pois, todos os holofotes: não apenas para a música de Dino d’Santiago, mas para a sua postura.

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