VISTO DE FORA

Diz-me se o Trump gosta de ti, dir-te-ei quem és

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Tiago Franco|23/10/2025

É habitual ouvir-se “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. É um lema que raramente desilude e que, aplicado a Trump, parece uma verdade matemática. Ainda estou para ver o Trump a elogiar alguém que se consiga ouvir, enquanto se janta, sem vomitar. No último texto que escrevi aqui no PÁGINA UM, a propósito de um encontro de líderes da extrema-direita em Madrid, referi-me a Maria Corina Machado como a senhora da Venezuela que apareceu por lá em vídeo.

Estava longe de imaginar que, umas semanas depois, a mesma senhora seria Nobel da Paz. Mesmo sabendo que o Nobel da Paz foi perdendo o seu sentido ao longo dos anos — pensemos que já foi entregue a personalidades como Kofi Annan, Malala, Ximenes Belo, Arafat, Rabin, Mandela, Gorbatchov, Dalai Lama, Desmond Tutu ou Lech Walesa —, ainda estou para perceber como é que foi parar a um Guaidó 2.0.

Maria Corina Machado (MCM) está a representar aquele papel, tantas vezes repetido na História, do fantoche útil ao serviço de uma potência externa. Não é um exclusivo americano, obviamente; russos e chineses usam e abusam da mesma estratégia, mas os Estados Unidos já andam nesta vida há pelo menos cem anos.

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Pahlavi no Irão, Suharto na Indonésia, Pinochet no Chile, Videla na Argentina, Somoza na Nicarágua, Trujillo na República Dominicana ou Batista em Cuba são alguns dos exemplos que me ocorrem assim de repente.

O caso da Venezuela é, obviamente, mais aborrecido porque tem as maiores reservas de petróleo do mundo e não há maneira de se arranjar um governo que agrade às sucessivas administrações americanas. Ou seja, por outras palavras, é um país em absoluto desespero para que lhe sirvam uma dose de democracia a sério. Ah, e que os libertem. Democracia e liberdade são, normalmente, as coisas de que os países que não partilham os seus recursos como as potências querem… mais precisam. Se forem países sem recursos naturais, bom, por norma já estão bem servidos de democracia e de todas as comodidades que fazem as pessoas sentirem-se livres.

MCM nem sequer se aproxima da população venezuelana com rodeios ou grandes argumentações. Diz mesmo ao que vai e, entre juras de amor a Trump, já prometeu a partilha das reservas de petróleo e o bar aberto para as multinacionais americanas. Pelo caminho, ainda aplaude e incentiva os ataques a embarcações venezuelanas, alegadamente na luta americana contra o tráfico de droga. É, aliás, um tema caricato.

Os Estados Unidos já mataram quase quarenta pessoas em ataques fora das suas águas territoriais, sem qualquer prova, acusação e muito menos julgamento. Não é preciso aqui dizer que isto é um acto ilegal de um país que mata habitantes de outro, sem estar em guerra com eles ou ter qualquer acusação fundamentada. É uma reversão do direito internacional e, claro está, uma imposição unilateral de regras que resulta na morte de civis acusados de nada. Que a administração Trump não respeite seja o que for na ordem instituída pelas Nações ao longo das décadas já é o novo normal; que Maria Corina Machado, a Nobel da Paz, aprove isto, é que é mais macabro.

Como é que alguém que está, descaradamente, ao serviço de interesses estrangeiros, por muito má que seja a situação interna, pode ser considerada uma pacifista?

A lista de países que são considerados ditaduras ou regimes híbridos (autocracias com bases democráticas) tem quase noventa candidatos — pouco menos de metade do globo. Para lá da Venezuela e de Cuba, os clássicos para onde me costumam mandar, aparecem nomes como os Emirados Árabes Unidos, o Azerbaijão (que é o novo amigão do gás da Von der Leyen), o Qatar, o Bahrain, a Ucrânia, a quem doamos boa parte dos impostos, a Tailândia, onde fazemos aquelas fotos porreiras para o Instagram, a Rússia, a Índia e, obviamente, a Arábia Saudita, estimado aliado do Ocidente e que manda barris em quantidade suficiente para não precisar de Marias Corinas de serviço.

Ou seja… não é verdadeiramente o regime político que nos importa, mas sim a forma como deixam meter a pata em cima. Durante décadas chamava-se a isto golpe de Estado, guerra fria, interesses geo-estratégicos, realpolitik e mais uma série de nomes óptimos para livros de lombada grossa. Em 2025 passou a chamar-se Prémio Nobel da Paz.

Sinal dos tempos.

Tiago Franco é engenheiro e CEO da techLisbon

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