MUITO PARA ALÉM DO SIONISMO (III)

A consolidação do ocupante: aliança com os Estados Unidos e a guerra do Líbano

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Luís Gomes|26/10/2025

A derrota moral do mito do “milagre defensivo” em 1967 abriu espaço a uma nova fase: não mais um Estado inseguro que só se defendia, mas uma potência que precisava de se legitimar e gerir vastos territórios ocupados. Essa transição ficou mais visível na década de 1970.

Em Outubro de 1973, o Egipto e a Síria lançaram um ataque-surpresa no dia do Yom Kippur – a data mais sagrada do calendário judaico, dedicada ao jejum e à expiação dos pecados; os primeiros dias foram um choque – Israel sofreu perdas e foi pressionado; até que, com a mobilização total e um gigantesco reabastecimento aéreo norte-americano, virou o jogo e impôs um armistício.

O Yom Kippur mudou tudo: demonstrou que a ocupação tornara a região instável, empurrou Israel a depender militar e diplomaticamente dos EUA (a ponte aérea norte-americana, Operation Nickel Grass, foi decisiva) e reforçou a ideia de que só uma aliança estratégica com Washington garantiria a supremacia militar israelita.

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Politicamente, a década de 70 do século transacto também significara uma mudança interna: a vitória eleitoral do Likud em 1977 pôs fim à hegemonia trabalhista e abriu caminho a políticas mais assertivas de colonização. A partir daí, os assentamentos deixaram de ser apenas pioneirismo ideológico: tornaram-se política de Estado, recebendo financiamento, benefícios fiscais e protecção militar. A ocupação deixava de ser temporária e passava a ser reengenharia demográfica deliberada – estradas, postos militares, incentivos para populações judaicas deslocarem-se para a Cisjordânia e para Jerusalém Oriental.

Em 1978–79, os Acordos de Camp David criaram uma fissura ainda maior: o Egipto assinou a paz com Israel e recuperou o Sinai, mas o custo foi enorme para a causa árabe e para os palestinianos – a questão palestiniana foi marginalizada, a autoridade egípcia virou um parceiro ocidental, e o espaço político para uma solução palestiniana diminuiu. Washington consolidou o seu papel de patrocinador privilegiado de Tel Aviv: ajuda militar maciça, cobertura diplomática e tecnologia de defesa tornaram-se pilares da relação.

O ponto de viragem seguinte ocorreu em 1982, com a invasão do Líbano. Oficialmente destinada a “destruir a infra-estrutura terrorista” da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), a operação transformou-se numa ocupação profunda do sul libanês e numa intervenção que ultrapassou largamente os objectivos declarados.

A queda de Beirute, o cerco longuíssimo e o massacre de Sabra e Shatila – perpetrado por milícias locais sob a responsabilidade indirecta das forças israelitas – marcaram brutalmente a imagem internacional de Israel e criaram um ressentimento duradouro. A ocupação do sul do Líbano e a política de segurança instalada aí deram origem a novos focos de resistência (mais tarde o Hezbollah), mostrando que a lógica ocupante gera sempre mais resistência, mais violência e mais custos humanos e estratégicos.

No balanço de 1973 a 1982: Israel saiu desta década com maior poder militar e com uma aliança profunda com os Estados Unidos; saiu também com uma ocupação cada vez mais institucionalizada – assentamentos, infra-estrutura militar, leis e práticas que consolidavam uma realidade colonial. Politicamente ganhou aliados poderosos, mas perdeu legitimidade entre os vizinhos árabes e agravou a situação dos palestinianos, que viram o sonho de retorno e de Estado tornar-se cada vez mais remoto.

A década de 1980 terminou com uma erupção inesperada: em Dezembro de 1987, depois de anos de ocupação, colonização e repressão, os palestinianos da Cisjordânia e de Gaza levantaram-se numa revolta popular conhecida como a Primeira Intifada. Não foi planeada por líderes exilados nem armada até aos dentes – começou com greves, boicotes, pedras contra tanques e a mobilização de uma geração inteira que já nascera sob ocupação.

A resposta de Israel foi brutal. Ariel Sharon e Yitzhak Rabin usaram uma política que o próprio Rabin resumiu na fórmula: “quebrar os ossos”. As tropas receberam ordens para reprimir manifestações com violência física sistemática, centenas de casas foram demolidas, milhares de jovens presos sem julgamento. A imagem internacional de Israel sofreu um golpe profundo: o mundo viu, em directo, a disparidade entre colonos armados protegidos e crianças palestinianas a enfrentar soldados com pedras.

Politicamente, a Intifada mudou o equilíbrio: mostrou que os palestinianos não eram apenas refugiados em campos ou figuras em negociações diplomáticas, mas um povo vivo, organizado, capaz de resistir colectivamente. Também empurrou Israel e os EUA a reconhecerem a OLP como um interlocutor legítimo – até então tachada de “terrorista” – e abriu caminho para negociações.

Esse caminho culminou em 1993, com os Acordos de Oslo. Apresentados ao mundo como um “histórico aperto de mão” entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, prometeram um processo de paz, a criação de uma Autoridade Palestiniana e a perspectiva de um futuro Estado palestiniano – essa organização criminosa que sempre é proposta como solução para toda e qualquer salvação.

Na prática, porém, Oslo funcionou como uma armadilha: a ocupação militar manteve-se intacta, os colonatos não só não pararam como aceleraram, e a nova Autoridade Palestiniana ficou reduzida a um gestor subcontratado da população sob controlo israelita. A promessa de dois Estados tornou-se retórica diplomática, enquanto no terreno a realidade colonial aprofundava-se. A Intifada tinha nascido de desespero e dignidade. Oslo transformou-a numa vitrina para a diplomacia, mas sem tocar na raiz do problema: a terra, os refugiados e a brutal ocupação.

A década de 1990 terminava com as promessas de Oslo, que depressa se revelaram um engodo. Os colonatos multiplicavam-se, os checkpoints asfixiavam a mobilidade, a terra palestiniana era retalhada em enclaves desconexos. A chamada “Autoridade Palestiniana” funcionava mais como polícia auxiliar da ocupação do que como embrião de soberania. Era inevitável que a frustração acumulada explodisse.

A centelha surgiu em Setembro de 2000, quando Ariel Sharon, então líder da oposição, entrou ostentosamente na Esplanada das Mesquitas em Jerusalém Oriental, rodeado de centenas de polícias. Foi visto como uma provocação deliberada, e no dia seguinte eclodiram confrontos em toda a Cisjordânia e em Gaza. Assim começou a Segunda Intifada.

Ao contrário da primeira, esta revolta depressa escalou em violência: atentados suicidas palestinianos atingiram cidades israelitas, enquanto a resposta militar de Israel foi devastadora – bombardeamentos aéreos, incursões de tanques em zonas densamente povoadas, execuções selectivas.

A narrativa oficial apresentava Israel como uma vítima de “terrorismo irracional”. Mas a realidade é que o terrorismo é também produto da ocupação, da humilhação diária, da ausência de horizonte político. Quem semeia a violência estrutural da colonização não pode fingir surpresa quando a violência regressa sob formas mais cruas.

Em 2002, Israel lançou a Operação Escudo Defensivo, voltando a invadir cidades da Cisjordânia sob o pretexto de “erradicar o terrorismo”. Os tanques entraram em Jenin, Nablus, Ramallah; cercos e destruições maciças devastaram campos de refugiados.

Foi também nesse ano que começou a construção do muro de separação: uma barreira de betão e arame, erguida não na linha de 1967, mas profundamente dentro da Cisjordânia, anexando, de facto, vastas áreas e colonatos. Chamavam-lhe o “muro da segurança”; na prática, era engenharia territorial, criando realidades irreversíveis e transformando aldeias palestinianas em ilhas cercadas.

O auge desta fase veio em 2005, quando Ariel Sharon – já primeiro-ministro – decidiu retirar unilateralmente os colonos de Gaza. Apresentou-o como um gesto de paz, mas era sobretudo um cálculo estratégico: Gaza tornava-se uma prisão a céu aberto, isolada por terra, mar e ar, enquanto a colonização na Cisjordânia era acelerada. A desconexão de Gaza permitiu a Israel alegar que já não ocupava o território, mas continuou a controlá-lo de fora, em todos os aspectos essenciais.

O período de 2000 a 2005 expôs de forma ainda mais clara a essência do problema: Oslo tinha sido uma ilusão diplomática; a realidade era a de um Estado que expandia colonatos, erguia muros, consolidava a ocupação e relegava milhões de pessoas para guetos sob vigilância. A Segunda Intifada terminou oficialmente em 2005, mas o que mostrou – a violência como resposta inevitável à ocupação – ficou gravado na memória de uma geração inteira.

Em conclusão, foi o colapso das ilusões de Oslo. De um lado, um povo sufocado por colonatos, muros e checkpoints, que respondeu com a revolta desesperada de quem não tinha futuro. Do outro, um Estado que usou tanques, bombardeamentos e um muro de betão para consolidar a ocupação e redesenhar as fronteiras pela força.

A retirada unilateral de Gaza em 2005 foi apresentada como gesto de paz, mas funcionou como uma manobra de cálculo: uma prisão cercada por mar, ar e terra, enquanto a Cisjordânia continuava a ser retalhada e colonizada. No fim deste ciclo, o mapa estava mais fragmentado, a violência mais enraizada e a promessa de dois Estados mais distante do que nunca.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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