CORREIO MERCANTIL: TEMPORADA 2
Pedro Chagas Freitas, o mercador de platitudes na feira das comoções

PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS
(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)
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Há épocas em que a inteligência tem a obrigação de recolha — não por cobardia, mas por cansaço, ou talvez por pudor. Cansaço de pregar no deserto das emoções baratas, onde cada palavra é trocada por um aplauso e cada ideia por um reflexo. Cansaço de ver a linguagem — outrora templo do espírito — degradada em ornamento, eco de si mesma, perfume que perdeu o frasco.
E o pudor, sobretudo. O pudor de quem sabe que, neste vosso zoológico civilizado que se autoproclama sociedade, o pensamento, a reflexão e o juízo são actos indecorosos. Em certos salões — onde o verniz substitui a substância e o aplauso pesa mais do que a ideia —, onde pululam e pulam demasiadas consciências enfeitadas, chega agora a ser obsceno expor um raciocínio digno dessa grandeza, porque se celebra hoje o instinto e se adultera a ignorância com citações de almanaque.

O pudor é, em abono da inteligência, a derradeira forma de lucidez: a recusa em participar na feira dourada das vaidades, o recolhimento de quem entende que o silêncio é, por vezes, o último gesto de resistência do espírito. Porque, quando a palavra se prostitui nos salões, o silêncio passa a ser o seu luxo mais raro — e, por desgraça, o único que, nessas trágicas circunstâncias, com algum prestígio. ↓
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A vossa é uma dessas épocas, porque nunca se citou tanto e nunca se pensou tão pouco. As ideias agora giram de carrossel em carrossel digital — despidas de densidade, desnutridas de lógica, minguadas de intelecto — até se reduzirem a bijutarias da consciência, a lantejoulas do ego, a pechisbeques da idiotice. Vive-se nos tempos hodiernos — e, para remissão dos pecados, nós, defuntos, assistimos — num tempo em que o sentimentalismo se tornou a nova metafísica e a lágrima substituiu o argumento.
Esta era das futilidades em forma de prosa, e por vezes verso, não começou ontem — tem raízes antigas, persistentes, e floresce sempre que o pensamento abdica da sua inquietação natural e se entrega à vacuidade. Porém, os vossos dias — saturados de estímulos, de urgências e de teatralidades emotivas — deram-lhe um brilho messiânico. Hoje, a ignorância já não se esconde: exibe-se, vende-se, multiplica-se. A mediocridade ganhou consciência de si e, qual Narciso pós-moderno, enamorou-se do seu reflexo em citações de almanaque coladas entre fotografias de pôr-do-sol e frases sobre “amar o que somos”.

E, como toda a época decadente precisa do seu oráculo, também a vossa o encontrou — não num filósofo, mas num sentimental de feira: Pedro Chagas Freitas. Neste teatro de fervores e pieguices, onde cada platitude se vende e ajoelha à espera de likes, tenho sido — sem desejar, sem procurar, sem sequer provocar — inevitavelmente confrontado com este messias entusiástico sobre o qual me tenho longamente esquivado a escrever. Mas há males que, pela insistência, merecem diagnóstico.
Pedro Chagas Freitas é a epifania de relíquias do senso comum em corpo e em verbo, sobretudo verbo. E adjectivos. E banalidades. A sua missão — ainda mais grave por ser consciente — parece ser a de reconciliar o sublime com o ridículo, os coiratos com a metafísica, a lágrima digital com a sabedoria enciclopédica. E o milagre, para vos parecer completo, é fazer crer que se pode filosofar enquanto se abana o quadril num forró sentimental, que se pode meditar enquanto se assobia à vizinha, que se pode contemplar o sentido da vida enquanto se arrota uma posta de pescada — tudo isto com o ar beatífico de quem acredita ter descoberto o segredo da eternidade num guardanapo de uma casa de pasto.
Dir-me-ás, insigne leitora ou eminente leitor, que o homem nasceu sob o signo da contradição e foi educado no mosteiro do lugar-comum. Mas há limites. E esses foram ultrapassados, dizimados ou até siderados, quando proclamou: “Eu leio Dostoiévski, e Pasternak, e Houellebecq, e Nabokov, e Yourcenar, e Sartre, e Camus. Eu leio a Maria, e a Nova Gente, e a TV 7 Dias. Eu vejo futebol. Eu ouço música clássica. Eu como pão com chouriço. Eu vejo o Big Brother. Eu amo Herberto Helder.”

E continuou, em êxtase apostólico: “Não somos todos uma coisa só. Somos imensos em nós mesmos. É esse o nosso super-poder: somos descaradamente incoerentes. Fazer isto, ler aquilo, ouvir aqueloutro, não me define. A mistura é vida: é possível pensar e rir, chorar e dançar, ler Dostoiévski e ver o Preço Certo. A verdade habita na contradição.”
Vejamos, pois, esta nova teologia da contradição: uma síntese lusitana entre a broa da feira e a metafísica de província, uma comunhão entre o torresmo e o transcendental. Sim, porque ainda diz ele ser “da terrinha”, do sítio de Monte, na paróquia de Azurém, no antigo couto de Guimarães — proclamação de um apóstolo que se anuncia entre palhinhas e epifanias. Oh, terrinha sagrada! Oh, berço da metafísica rural! Oh, rincão da cosmologia pastoral! Então, “a lucidez cheira a terra molhada”, ó Pedro?
E dizes-me isso logo a mim, que, sem carnes, tenho os ossos amiúde lavados pelas enxurradas? Quase invejo tamanha sensibilidade nasal. Só um génio moderno poderia unir a lama e a literatura, o estádio e o pensamento, o Big Brother e a verdade da alma humana — tudo embrulhado num discurso de autenticidade tão estudado que parece redigido sob a bênção do marketing.

A tua filosofia, eu conheço-a, Pedro Chagas Freitas: é a de um Santo Agostinho de pastelaria. “Somos contraditórios, e isso é lindo”, proclamas, com a leveza de quem confunde a contradição com a preguiça. O problema nem é seres contraditório — é seres oco. Misturar o trivial com o profundo não é humanismo: é indigestão.
Julgarás que pensar e ver o Preço Certo te torna complexo. Engano piedoso: isso não é complexidade, é indecisão; não é síntese, é confusão. É como misturar vinho do Porto com refrigerante e chamar-lhe alquimia. Pedro, nem sequer és o profeta da mistura: és o alquimista da superficialidade — transformas o ouro da literatura em lata de conserva emocional.
O teu texto tem laivos de feira devocional: pões Dostoiévski ao lado da Maria, colocas o absurdo existencial a jogar à bisca lambida com o padeiro, e metes a Yourcenar a dançar o vira com o Zé dos Anzóis de palito no canto da boca e lápis na orelha. Eis o renascimento da tasca como escola filosófica, onde a frase feita é dogma e o sentimentalismo, sacramento. E tu, Pedro, caminhas entre bancas, distribuindo aforismos como rosários de plástico: “Não somos todos uma coisa só.” Pois não, meu caro — uns são pensadores; outros, vendedores de nugas com cheiro a noz moscada.

E ainda ousas mais: “O povo sabe mais da alma humana do que todos os críticos juntos”, escrevinhas tu, com um fervor que dispensa o Espírito Santo. Concedo: isto que dizes é uma heresia piedosa — mas heresia. O povo sabe da vida, e isso basta-lhe. Quem sabe da alma é o artista, e o artista precisa de mais que coração: precisa de abismo. Mas, Pedro, tu não chegas a tanto: preferes ser o sacerdote do conforto; não ofereces abismo — ofereces almofadas.
Reconheço-te, contudo, uma forma de talento: o talento de dizer o óbvio com tom de revelação. És um arquitecto do vazio, um engenheiro da redundância. E o teu “eu sou da terrinha” é o grito de guerra de uma geração que confunde autenticidade com ignorância. Queres ser tudo — filósofo e influencer, santo e pecador, Camus da razão e Tony Carreira do sentimento — e, neste bailado da vacuidade, acabas por ser nada.
Ah, mas “somos sagrados e banais”, argumentas. Sim, ó mestre das trivialidades frívolas, nisso tiro-te o chapéu: és dos poucos que transformas o sagrado em banalidade e a vulgaridade em profissão.

No fundo, a tua missão é até piedosa: reconcilias o povo com a inteligência — mas, como ele vive em carestia de neurónios funcionais, rebaixas o intelecto ao nível da emoção e fazes a caridade da mediocridade, tornando todos iguais para que ninguém se sinta pequeno. “A vida é mistura”, dizes. E é verdade — também o lixo o é.
Enfim, se Camões viveu atormentado pelo génio e Pessoa pela multiplicidade, tu, Pedro Chagas Freitas, vives fascinado por ti próprio — como um Narciso de província que se contempla no reflexo digital das frases. O drama é que o mito grego morreu afogado; e tu prosperas afagado.
Adeus — e um piparote.
Brás Cubas