PRIMADO DO DIREITO
O cérebro punitivo revisitado: do instinto universal à construção cultural

Uma pequena nota introdutória, no sentido de informar que a presente crónica deve ser lida em conjunto com as anteriores “Punir (e ver punir) sabe bem!”, “Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo?”, e “´Sem corpo, sem crime?´ Os limites da prova e os perigos da condenação com base em prova indiciária”. Embora todas elas sejam parte de um ensaio contínuo que se pretende levar a efeito sobre algumas questões no âmbito da Justiça, há, contudo, uma mudança de enquadramento: da visão das emoções enquanto universais e moduladas biologicamente para a perspectiva construtivista e preditiva hoje dominante na neurociência.

1. Introdução – Quando punir parece natural ↓
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Em 2014, o juiz norte-americano Morris B. Hoffman publicou The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury (Cambridge University Press). O livro ganhou notoriedade imediata não apenas entre juristas, mas também entre psicólogos e neurocientistas, por propor uma explicação evolutiva e empiricamente sustentada para um dos comportamentos humanos mais paradoxais: o desejo de punir.
Segundo Hoffman, os seres humanos evoluíram com circuitos cerebrais dedicados à punição de transgressores – mecanismos biológicos que teriam assegurado a cooperação dentro dos grupos e, consequentemente, a sobrevivência da espécie. Nesta perspetiva, o “cérebro punitivo” seria um produto da seleção natural, um legado evolutivo análogo ao medo, à empatia ou ao desejo sexual. As instituições judiciais não criariam a punição; limitavam-se a canalizar um impulso biológico inevitável. “Os sistemas legais existem para organizar o inevitável: a punição que os cérebros humanos exigem”, segundo o entendimento do autor.
A proposta é sedutora. Oferece à justiça um fundamento “natural”, aparentemente neutro, e livra-a da acusação de arbitrariedade: punimos, diz Hoffman, porque somos feitos para punir.
Mas será mesmo assim? A neurociência contemporânea – da teoria das emoções construídas de Lisa Feldman Barrett, ao cérebro entrançado de Luiz Pessoa – tem colocado em causa este paradigma. Longe de serem entidades fixas e universais, as emoções e as intuições morais emergem de processos plásticos, contextuais e preditivos. O que Hoffman chama instinto pode ser, afinal, aprendizagem cultural sedimentada.
Revisitar o Punisher’s Brain à luz das teorias construtivistas não é apenas um exercício académico. É uma forma de repensar o próprio fundamento da punição jurídica, e de compreender porque continuamos, ainda hoje, a confundir justiça com retribuição – e retribuição com sobrevivência.

2. O paradigma universalista – o instinto que legitima o castigo
Hoffman insere-se numa tradição intelectual longa, que vai de Darwin a Ekman, de Pinker a Haidt. Todos partem da mesma suposição: o cérebro humano contém módulos emocionais universais e instintos morais herdados. As chamadas emoções básicas – medo, raiva, nojo, tristeza, alegria, surpresa – seriam expressões de programas cerebrais fixos, moldados pela evolução para lidar com desafios recorrentes da sobrevivência.
A partir daí, a moralidade seria uma extensão social desses mecanismos biológicos. Punir quem viola regras comuns seria um acto de defesa do grupo, uma expressão de indignação moral “natural”.
Hoffman faz o paralelismo directo: o juiz e o jurado são herdeiros civilizados do mesmo cérebro tribal que, há milhares de anos, castigava o transgressor à margem da aldeia.
A atratividade da tese é evidente:
Dá ao Direito uma base biológica e objectiva, afastando o relativismo moral.
Explica a universalidade do castigo – presente em todas as culturas conhecidas.
Justifica a persistência de sistemas penais duros, mesmo quando ineficazes.
Mas há um reverso. Se punir é natural, então perdoar é contra a natureza. Se a vingança é um instinto, a justiça restaurativa é uma anomalia. É neste ponto que a ciência contemporânea começa a divergir profundamente de Hoffman.

3. O cérebro preditivo e a falácia do instinto moral
As últimas duas décadas de investigação neurocientífica revolucionaram a compreensão do funcionamento cerebral. O modelo do “cérebro modular” – onde cada emoção corresponderia a um circuito fixo – foi substituído por um modelo preditivo, em que o cérebro é visto como máquina de previsão e correção de erro.
Segundo Lisa Feldman Barrett (How Emotions Are Made, 2017), as emoções não são universais, mas construídas. O cérebro não “sente raiva” porque existe um módulo da raiva, mas porque, perante determinado contexto, prediz um conjunto de sensações corporais e significados aprendidos que, culturalmente, designamos como “raiva”. A emoção é uma inferência, não um reflexo.
Esta perspetiva de não-modularidade cerebral que também é defendida em diferentes vertentes por Joseph LeDoux, Luiz Pessoa e Michael L. Anderson – dissolve a fronteira entre o biológico e o cultural. Não há um “circuito da punição”, mas sim redes distribuídas e plásticas que integram previsão, experiência e contexto. Punir, portanto, não é a execução de um instinto, mas a activação de um modelo preditivo socialmente aprendido: a expectativa de que o castigo restabelece a ordem.
Em termos simples: não punimos porque sentimos raiva; sentimos raiva porque aprendemos a punir.

4. Do instinto à predição – o erro como motor moral
O cérebro preditivo não reage ao mundo: antecipa-o. Faz previsões sobre o que deve acontecer e actualiza essas previsões com base no erro – a diferença entre o esperado e o observado. Este mecanismo aplica-se também ao domínio moral.
Quando alguém viola uma norma, o cérebro experimenta um erro de previsão social: o comportamento do outro quebra o padrão de previsibilidade. Esse erro gera desconforto interoceptivo (um desvio nas sensações corporais esperadas) que é interpretado, segundo a aprendizagem cultural, como indignação ou repulsa. Punir serve então para corrigir o erro social e restaurar o equilíbrio das previsões partilhadas.
Nesta óptica, a punição não é expressão de uma emoção biológica, mas acto cognitivo e cultural de correção de modelo. A moralidade emerge como um sistema dinâmico de regulação de previsões sociais. O juiz, o jurado e a vítima são, neste sentido, modeladores de erro colectivo.

5. As três faces do punidor – de Hoffman à teoria construtivista
Hoffman propõe três “faces” do punidor – e aqui a releitura à luz do construtivismo torna-se particularmente fértil.
5.1. O punidor na primeira pessoa – o agressor arrependido
Na primeira pessoa, a punição é internalizada como culpa, vergonha, remorso. Para Hoffman, trata-se de um instinto moral adaptativo que desincentiva o desvio. No modelo preditivo, porém, estas emoções são resultado de autoavaliação preditiva: o cérebro compara a ação cometida com o modelo de self moral aprendido e ajusta-o por meio do sofrimento emocional. A culpa não é instinto, é feedback.
A internalização da punição permite reduzir o castigo externo. As sociedades que incentivam a reparação simbólica e o reconhecimento do erro tendem a privilegiar mecanismos restaurativos. As que dependem do castigo externo perpetuam o ciclo da dor como correção.
5.2. O punidor na segunda pessoa – a vítima
Na segunda pessoa, o foco é a relação directa entre agressor e vítima. Hoffman nota que as vítimas se concentram mais no resultado do que na intenção: a tentativa falhada é menos punida do que o crime consumado, mesmo quando a intenção é idêntica. Para ele, isso é evidência de um instinto moral proporcional.
O cérebro preditivo oferece outra leitura: o sofrimento da vítima viola previsões interoceptivas profundas sobre segurança e justiça, e o castigo serve para restaurar o sentido de controlo. É uma forma de reduzir incerteza emocional. A severidade da punição aumenta com a imprevisibilidade do dano.
É neste ponto que emerge o risco de Schadenfreude – o prazer pela punição do outro. A vítima sente alívio e prazer não apenas pela justiça, mas pela reversão simbólica do erro: o agressor sofre, logo o mundo volta a fazer sentido. O prazer de punir é, antes de tudo, prazer de corrigir o modelo violado.
5.3. O punidor na terceira pessoa – o juiz, o jurado, o público
A terceira face é a da punição delegada: a que exercemos através de instituições. Juízes e jurados assumem o papel de punidores por procuração. Aqui, o construtivismo ajuda a compreender porque a distância emocional é essencial. O juiz deve funcionar como modelo preditivo de segunda ordem, capaz de regular as previsões sociais sem se confundir com as emoções imediatas da vítima.
No entanto, quando o magistrado passa demasiado tempo imerso num processo, em contacto contínuo com vítimas ou sofrimento, corre o risco de uma migração emocional: a punição de terceira pessoa desliza para uma punição de segunda. A empatia transforma-se em raiva substitutiva. É o fenómeno da identificação punitiva, que distorce a função judicial e alimenta o populismo penal.

6. Schadenfreude e o prazer de punir
O prazer de ver o outro sofrer – Schadenfreude – é um tema transversal entre neurociência e filosofia moral. Hoffman interpreta-o como subproduto adaptativo: punir e observar o castigo activariam circuitos dopaminérgicos, reforçando o comportamento cooperativo.
Mas se a emoção é construída, o prazer também o é. O Schadenfreude não é a expressão de um instinto, mas a aprendizagem cultural de recompensa associada à retribuição. A dopamina não distingue entre prazer altruísta e prazer punitivo; o que muda é o contexto que o cérebro aprendeu a associar à “justiça feita”. Sociedades que glorificam a vingança produzem cidadãos neurobiologicamente treinados para sentir prazer em punir.
É por isso que o castigo público – das execuções medievais às humilhações digitais – continua a ser tão eficaz em gerar adesão emocional coletiva. A emoção é construída, mas o espetáculo do sofrimento é um dos seus materiais mais antigos.

7. Religião, secularismo e moralidade construída
A divisão entre universalistas e construtivistas tem também ressonância religiosa. O universalismo encaixa naturalmente na ideia de uma lei moral inscrita – quer por Deus, quer pela natureza. Já o construtivismo dissolve essa base transcendental: a moral é produto da cultura, não da criação.
Esta diferença explica muito das variações contemporâneas no punitivismo social:
Estados Unidos e Brasil – altas taxas de religiosidade e encarceramento. O castigo é visto como moralmente redentor.
Países nórdicos e Holanda – sociedades seculares, baixos níveis de punição, prevalência da reintegração.
Portugal e Itália – países culturalmente católicos, hoje pacíficos, mas com reflexos inquisitoriais ainda visíveis no processo penal e no recurso excessivo à prisão preventiva e a penas de prisão efectiva (sobretudo no caso de Portugal).
Curiosamente, estudos sobre altruísmo, sobretudo de Ara Norenzayan, Azim F. Shariff e Will M. Gervais, mostram que ateus tendem a comportar-se altruisticamente de modo mais universal, enquanto crentes tendem ao altruísmo intra-grupal. O castigo, no mesmo registo, também segue esta lógica: os religiosos punem para proteger o grupo; os seculares punem para proteger a norma (como nota também Sapolsky, Robert, Determinado, 2024).
Assim, o universalismo moral religioso reforça a ideia de um “instinto” partilhado – mas apenas dentro dos limites da tribo. O construtivismo propõe algo mais exigente: uma moralidade aprendida, consciente e expandida.

8. Democracias pacíficas e punitivas – o legado da previsibilidade autoritária
Se a punição fosse de facto um instinto universal, esperar-se-ia correlação directa entre violência e castigo. Mas a realidade contradiz essa expectativa. Países como Portugal, Espanha ou Polónia exibem elevada paz social e altas taxas de encarceramento. Hoffman vê nisso confirmação da universalidade do impulso punitivo: mesmo sem ameaça, o cérebro exige castigo.
A leitura construtivista é mais convincente: estas sociedades herdaram modelos preditivos autoritários, onde a segurança e a moralidade foram historicamente associadas à punição exemplar. O “erro” social continua a ser corrigido com sofrimento, não com reparação.
Em Portugal (e no Brasil), o eco inquisitorial ainda se sente na estrutura do processo penal. O princípio da verdade material – que permite ao juiz investigar para além das partes – reencena o papel do inquisidor moral. O castigo é uma forma de prever o mal e neutralizá-lo antes de acontecer. A punição torna-se assim um mecanismo preventivo de controlo, não uma resposta racional à culpa.

9. Consequências jurídicas e éticas da viragem construtivista
Adoptar a perspectiva construtivista implica reconhecer que a justiça não é um reflexo da natureza humana, mas um produto histórico da sua plasticidade.
Isso tem várias implicações práticas:
Política criminal e reintegração
Se o castigo é cultural, pode ser reformado. A justiça restaurativa, a descriminalização e os modelos de reintegração (como Halden Prison na Noruega) são demonstrações de que a punição pode ser ressignificada.
Formação judicial e emocional
O juiz deve ser treinado não apenas em Direito, mas em alfabetização emocional e neuropsicológica. Compreender como o cérebro constrói a indignação é essencial para não confundir empatia com raiva delegada.
Redefinição da culpa
A culpa deixa de ser um sinal de corrupção moral e passa a ser um erro de previsão que pode ser corrigido. A pena torna-se processo de aprendizagem, não de expiação.
Prevenção da Schadenfreude institucional
O sistema deve proteger-se contra a dopamina da punição – contra o prazer de condenar. A justiça que se alimenta do sofrimento alheio é psicologicamente viciante e moralmente regressiva.
Direito e neurociência em diálogo
A integração das ciências do cérebro na prática jurídica não pode repetir os erros do determinismo biológico. O que a neurociência oferece não é uma desculpa, mas um espelho: a punição é escolha cultural informada por emoção construída.

10. Conclusão – Não somos condenados a punir
The Punisher’s Brain foi um contributo pioneiro. Trouxe a biologia para o tribunal. Mas fê-lo apoiando-se num paradigma que o próprio cérebro já superou. O que Hoffman chamou “instinto de punição” é, afinal, uma previsão emocional aprendida, moldada por séculos de cultura, religião e medo.
Punir não é destino biológico – é acto cultural reiterado até parecer instintivo. E se é construído, pode ser reconstruído.
A justiça futura será tanto mais humana quanto mais compreender o seu próprio cérebro: um órgão que não reflete a natureza, mas a reinventa a cada previsão.
Não o que reage ao erro, mas o que o compreende.
Não o que castiga o corpo, mas o que corrige o modelo.
Porque a biologia explica as predisposições – mas é a cultura que decide o cárcere.
O desafio está lançado: substituir o cérebro punitivo pelo cérebro reflexivo.
Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.
Autor da série Primado do Direito, publicada no jornal Página Um, e do projeto Reasonable Doubt, onde também explora as relações entre cognição, emoção e justiça penal.
Referências:
Anderson, Michael L., “Embodied Cognition: A field guide” (2003, Artificial Intelligence, ScienceDirect, Elsevier).
Anderson, Michael L., “Neural reuse: A fundamental organizational principle of the brain” (2010, Behavioral and Brain Sciences, Cambridge University Press).
Anderson, Michael L., “Précis of After Phrenology: Neural Reuse and the Interactive Brain” (2016, Behavioral and Brain Sciences, Cambridge University Press).
Barrett, Lisa Feldman, “7 lições e meia sobre o cérebro” (2022, Temas e Debates).
Barrett, Lisa Feldman, “How Emotions are Made, The secret life of the brain” (2017, HarperCollins Publishers).
Hoffman, Morris B., “The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury” (2014, Cambridge University Press).
Kelly, John Michael; Kramer, Stephanie R.; and Shariff, Azim F., “Religiosity Predicts Prosociality, Especially When Measured by Self-Report:A Meta-Analysis of Almost 60 Years of Research” (2024, Psychological Bulletin, American Psychological Association).
LeDoux, Joseph, “O Cérebro Consciente, Uma Longa História da Vida” (2020, Temas e Debates).
Norenzayan, Ara; and Shariff, Azim F., “The Origin and Evolution of Religious Prosociality” (2008, Science).
Norenzayan, Ara, “Big Gods, How Relition Transformed Cooperation and Conflict” (2013, Princenton University Press).
Norenzayan, Ara; Shariff, Azim F.; Gervais, Will M.; Willard, Aiyana K.; McNamara, Rita A.; Slingerland, Edward; and Henrich, Joseph, “The cultural evolution of prosocial religions” (2016, Behavioral and Brain Sciences, Cambridge University Press).
Pessoa, Luiz, “The Entangled Brain – How Perception, Cognition, and Emotion Are Woven Together” (2022, The MIT Press).
Sapolsky, Robert M., “Determinado, Uma Ciência da Vida sem Livre-Arbítrio” (2024, Temas e Debates).