DA VARANDA DA LUZ
Casa Pia 2.2

Com o Benfica não se faz farinha — porque a farinha, ao menos, quando se amassa, dá pão. O Benfica, por estes dias, dá apenas azia.
Mas comecemos pela parte mais divertida da epopeia encarnada: o Guinness Book of Records, essa Bíblia dos exageros humanos, recusou sancionar o recorde da primeira volta das eleições para a presidência do Benfica. Razão? Havia 86.297 sócios votantes, o que superaria um sufrágio do Barcelona, mas — pasme-se — não houve eleito.

Porém, como o povo benfiquista é resiliente, e talvez também algo supersticioso, as águias juntaram-se em bando ainda mais cerrado e, na segunda volta, este sábado, lá bateram o recorde — sem penugem nem hesitação — e tiraram as peneiras aos blaugranas:93.891 sócios a exercer o seu voto. Um mar humano. Ou melhor: um bando de águias em romaria cívica. ↓
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Poderia ter sido 93.892, se este vosso cronista tivesse ido cumprir o seu “dever” cívico. Contudo, abstive-me — não por desinteresse, que o Benfica é coisa séria, mas por prudência moral. Já bastam as bocas ocasionais de que, por escrever nesta modesta varanda, não abordo os muitos temas sensíveis da bola. E agora, se aparecesse de boletim em punho, diriam logo que tentei influenciar as eleições em favor de um candidato — especialmente depois de ter escrito, na última semana, que a holding familiar de Rui Costa é um inferno.
Assim sendo, preferi não dar azo a rumores. E, convenhamos, a abstenção no desporto também tem a sua poesia: é o direito de quem ama, mas não quer ser cúmplice.

De qualquer modo, a democracia benfiquista continua a ser um hino à complexidade: eu, com 25 anos de sócio, teria direito a 50 votos — e isto, sim, é uma verdadeira democracia, daquelas em que uns valem por cinquenta e outros por um. No fundo, é o Benfica a antecipar o futuro da política portuguesa. Mas pronto, também não se perdeu muito: Rui Costa venceu Noronha Lopes com larga vantagem, e o único voto que o Guinness perdeu foi o meu.
Depois deste feito monumental, esperava-se que o Benfica serenasse os nervos e, liberto das tensões eleitorais, mostrasse em campo a mesma força que mostrou nas urnas.
Afinal, quem é capaz de mobilizar quase cem mil pessoas devia ter potência para mobilizar onze jogadores. Mas não: a equipa, qual símbolo da nação, continua a jogar como quem espera que alguém faça por si o trabalho. Contra o Casa Pia — sim, o Casa Pia, e não o Real Madrid — esperava-se uma exibição tranquila, um banho de bola, um resultado folgado. No ano passado foi 3-0.

Afinal, o que se viu neste domingo foi mais uma sinfonia de passes inúteis: trocam bolas, recuam, lateralizam, atrasam, contemporizam… Fintar, cruzar com precisão ou rematar à baliza já é pedir um esforço quase revolucionário.
O primeiro golo até apareceu cedo, por Sudakov, num remate de belo efeito aos 17 minutos — daqueles que enganam o público e fazem sonhar os adeptos com um milagre.
Foi sol de pouca dura. O Benfica, fiel à sua nova doutrina táctica do tédio, retomou o carrossel de passes para o lado, como se o futebol fosse um concurso de quem adormece o adversário primeiro. Ao intervalo, a plateia já bocejava. Ou, pelo menos, eu. Salvou-se a sandes — que tinha alguma carne de verdade — e a pêra do farnel, que estava rijinha, como deve ser.

No regresso ao relvado, o destino fez o favor de nos recordar que o Benfica moderno tem um pacto secreto com o infortúnio. O inevitável penálti a favor ainda surgiu — é quase uma cláusula contratual de cada jogo — e Pavlidis não falhou.
Mas quando se esperava alguma serenidade, eis que António Silva, que parece ter sido abençoado com o dom de complicar o simples, decide oferecer um momento de suspense. Fez das dele, com um penálti discutível — é certo —, mas penálti. Trubin, que anda a jogar o papel de santo padroeiro dos desgraçados, ainda defendeu o castigo. Só que, no Benfica, até as defesas se tornam tragédias: Tomás Araújo, num gesto de solidariedade suicida, resolveu limpar a área, evitando uma recarga, com um pontapé que acabou, certeiro, dentro da própria baliza.
Foi um autogolo tão sincero que até pareceu ensaiado. O público não sabia se devia rir, chorar ou pedir uma auditoria às leis da física.

A partir daí, o destino fez o resto: houve um golo (bem) anulado a Leandro Barreiro, para dar um toque de injustiça, e, como manda a tradição desta época, houve golo do adversário nos descontos — porque, no Benfica, o relógio é sempre inimigo.
Mais um empate caseiro — o terceiro concedido esta época na Luz, depois de Santa Clara e Rio Ave —, mais uma exibição de sonolência, mais uma prova de que esta equipa é previsível até na mediocridade.
O Benfica transformou-se numa espécie de dramaturgia grega: conhecemos o início, o meio e o fim — e o coro já canta o lamento antes da tragédia acontecer.
Rui Costa, reeleito com pompa e circunstância, bem podia aproveitar o embalo das urnas e tentar governar também o relvado, porque José Mourinho parece mais preocupado em garantir posse de bola do que golos — e, convenhamos, os adeptos não pagam bilhete para ver passes horizontais.

Há, todavia, uma beleza estranha nesta desgraça. O Benfica mostra-se o espelho perfeito de Portugal: tem talento, tem história, tem paixão e até recorde no Guinness — mas tropeça sempre nos próprios pés.
De qualquer forma, eis-me aqui a revelar aquilo que sou: a Da Varanda da Luz mantém-se fiel à sua tradição — crítica, sim, mas com amor. Até ao próximo desaire.