CORREIO MERCANTIL: TEMPORADA 2

O insulto culto, ou a arte de dignificar o vernáculo contra os árbitros

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Brás Cubas|12/11/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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No decurso das décadas — ou, quem sabe, dos últimos minutos, se o tempo se medir pelo espírito —, venho reflectindo sobre a natureza da ofensa nas orelhas e da injúria nas ventas. Insultar de viva voz, minhas senhoras e meus senhores, é uma das mais sublimes manifestações humanas: tem fígado, tem bílis, tem língua, tem espuma e até perdigotos, mas requer cálculo, génio e, sobretudo, um sentido de estética.

Quem ofende mal, degrada-se; quem ofende bem, sendo eloquente e grandiloquente a cinzelar um impropério ou a tingir uma contumélia, entra na História. Os romanos chamavam-lhe vituperium, uma exposição dos vícios. Os teólogos medievais viram aí o eco do pecado original — a palavra fere mais do que o punho. Mas os portugueses, sempre modestos nos grandes dons, reduziram a ofensa ao palavrão, ao vernáculo soez, ao reles e baixo calão.

Ora, é contra essa degenerescência da ofensa que venho hoje derramar esta tinta metafísica. Escreveu o árbitro Gustavo Correia que, após um jogo do Benfica, irrompeu em campo o digno — ou indigno — senhor Mário Jorge Branco, director-geral da equipa, bradando: “Honra as insígnias que tens ao peito, és uma vergonha do caralho! Vou rebentar contigo e com o João Bento!” E, como não bastasse, perseguiu o homem do apito até ao túnel dos balneários, aos berros: “Podes ter a certeza que eu vou-te rebentar todo! Não vales merda nenhuma! Palhaços do caralho!”

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Confesso que, ao ler tais expressões, senti uma espécie de vexame estético, um pudor linguístico, um rubor da alma. Não pelas ameaças em si — que são banais, como o vinho em adega —, mas pela pobreza do estilo. O insulto, como defendo, para ter força, deve vir ungido de imaginação e cultura. Este, porém, soçobra na mesquinhez do calão, e até o próprio diabo, se por acaso tivesse ouvido, abanaria a cabeça: “Oh, filho, nem para blasfemar tens talento!”

Se o director benfiquista pretendia distinguir-se pela veemência, sabendo que levaria cartão vermelho directo, deveria ter-se elevado ao nível das grandes escolas do veneno verbal. Há quem toque delicadamente um piano Erard e há quem esmurre o balcão de uma taberna. O senhor Mário Branco preferiu o pinho ao marfim. Saiu-se mal. Por isso, aquilo que eu recomendo de imediato é a criação de um Conservatório Nacional do Vitupério, onde se ensine afrontas, desdouros e agravos com cadência, harmonia e erudição.

Porque, reabilitadas donzelas e cavalheiros desagravados, um vitupério digno deve ser entoado como uma ópera, recitado como um sermão e pronunciado como uma catilinária — porém, sempre arremessado com a elegância e a velocidade de um discóbolo de Míron. Dizer “vou rebentar contigo” é coisa de casa de pasto. Mas dizer, por exemplo, “o seu juízo é tão torpe que Apolo, ao ouvi-lo, taparia as orelhas com cera de Ulisses” — ah, isso já é música!

Portanto, se o Benfica, esse clube de tantas glórias e façanhas, quer ser Águia entre as aves; se deseja que, com os seus voos, se aligeire a todas elas, de sorte a deixá-las vizinhas da terra ao mesmo passo que se aproxima do Céu; se aspira sublimar os seus desempenhos — deixando muito rasteiros todos os empenhos dos outros —, então convoque sem demora mestres de instrução para introduzir os seus dirigentes, treinadores e jogadores na augusta arte de invectivar com elevação.

Que Rui Costa, presidente reeleito e guardião dos pergaminhos, convoque as Musas do Estádio da Luz e recrute eruditos mestres de Literatura Portuguesa, para que as futuras ofensas se esculpam com a perfeita mão de Fídias e se delineiem com o traço certeiro de Apeles — umas cintilando como verso, outras inflamadas como sermão, e outras, enfim, destilando o aroma cortês da retórica e o perfume grave da oratória.

Se há-de haver insolências, então que haja variedade: umas barrocas, outras românticas, algumas simbolistas e, para as ocasiões mais dramáticas, um ou outro modernista devidamente inflamado.

Dessa sorte, se um língua-de-fel preferir um estilo à Gil Vicente, esse cronista das almas do povo, então erguerá o árbitro a personagem de moralidade e vociferará com teatral sarcasmo:

“Ó juiz de apito torto, filho bastardo da cegueira! Que inferno de alma é a tua, que nem o diabo te quer! Julgas justiça e semeias um escárnio mais torpe que a balança de Judas! Oh, criatura de chumbo, nem o diabo te emprestava as tenazes!”

Na eventualidade de o caluniador-de-pitons aspirar a herói das letras, elegendo Camões por patrono, o vitupério subirá ao tom da epopeia e daí descerá em trovões de decassílabos:

“Ó árbitro sem luz, de peito insano,
Que ao justo fazes dano por costume,
Trocas o apito em fado desumano,
E a lei de Deus traís sem queixume.
Se o Céu, que te vê, ouvir engano,
Cair-te-á na testa o próprio lume;
E em vez de glória, servo à cegueira,
Terás no inferno a vara extrema.”

Se ao desbocado-de-feira lhe agradar mais a verve do Padre António Vieira, será então mister erguer um púlpito sobre a relva, castigando o árbitro com a força da teologia e da oratória:

“Ó avantesma viva do juízo corrompido! Se Deus te fez homem, tu fizeste-te instrumento da iniquidade! O teu apito é trombeta de mentira; e quando o sopras, os anjos tapam os ouvidos com as asas! Maldito seja o som com que confundes o faltoso e o justo!”

Caso a escolha do vituperador-da-canelada recair em ardósia mais moralista — inspirada no tom sereno do Padre Manuel Bernardes — então poderá golpear o erro com mansidão edificante, embora a afronta venha a soar mais como homilia do que como ofensa:

“Senhor, a vossa consciência deve ser mais leve que o vosso sopro, e os erros que cometestes pesam mais do que o próprio jogo. Se apitais sem fé, é porque a perdestes; e quem perde a fé perde também o ouvido da razão. Digo-vos: sois pior que Pilatos, pois no apito final lavais as mãos em suor alheio.”

Se o escarnecedor de bancada se inclinar para o magistério de Bocage, o incendiário boémio do Sado, então brandirá as palavras como espadas, gargalhando entre rimas:

“Ó árbitro de choldra, vil soprista,
Que vendes justiça a preço de vista,
Se um dia assoprares pró Céu,
Deus te mandará directo ao breu.
E, lá chegado, hás-de escutar,
Mil demónios a t’apitar!”

Caso a doutrina estimada pelo trovador de maledicências seja a de Júlio Dinis, o romântico da candura, sempre haverá murmuração, mesmo se com ternura amarga:

“Senhor árbitro, perdoe-me o romantismo, mas o seu erro é tão constante que até nas aldeias os amores morrem ao ouvir o seu apito. Consigo, a justiça foge do campo como rapariga ofendida.”

Se a inspiração do tratante de bílis azeda vier de Camilo Castelo Branco, o cínico e febril de São Miguel de Seide, então apontará a pena como punhal, e a ofensa mostrar-se-á ao gosto de tragédia doméstica:

“Sois um génio, mas daqueles que apitam sem dor e castigam sem decoro. Fosse eu o juiz supremo, e vós seríeis réu — não pelas falhas cometidas, mas por fazerdes da burrice uma profissão liberal.”

Na hipótese de o chicote do maldizente estar afeito ao requinte de Eça de Queirós, com o monóculo da ironia e a frieza do bisturi, o agravo soará então como diagnóstico moral:

“Vossa Senhoria é uma notável alegoria lusitana: representa o zelo sem inteligência, a vaidade sem talento, o poder sem decoro. O vosso apito é a metáfora sonora da mediocridade terrena — uma espécie de burocracia em decibéis.”

Admitindo-se que o mestre escolhido pelo cuspidor de veneno seja Fernando Pessoa, haverá aí um campo infindável de vozes a vituperar, e cada heterónimo fará o seu dardo.

No caso de Álvaro de Campos, rugirá, eléctrico e desvairado:“Ah, homem! Tu és o ruído da injustiça, o vento podre do engano, o motor fumegante da vergonha humana!” Se estiver nos dias de Ricardo Reis, frio como mármore, ditará: “O erro é o destino dos homens; e o destino, cego, sopra o teu apito.” E se a hora for a de Bernardo Soares, arrastando melancolia, exclamará:“És um funcionário do erro, um arquivista da infâmia.”

Havendo ainda a hipótese de, na escola de predilecção do boca-de-víbora, estar Almada Negreiros, entre traços e raiva, o insulto virá certamente em linhas e ângulos cruzados:

“Ó Juiz do Apito! És o cubismo da injustiça! Um rectângulo de cegueira e uma esfera de tolice! Só não te rebento porque, oco, fugirias da geometria! Pim!”

Caso o caluniador do relvado resolva seguir a mão espiralada de José Saramago, com paciência para parábolas que se arrastam como sermões de penitência, assentes em vírgulas que dão volta e meia ao estádio antes do ponto final, as palavras deixarão de ofender para começar a revelar: não será já um grito ao apito, mas uma autópsia moral da sociedade. Assim, à maneira do Nobel, a invectiva tomar-lhe-á este tom:

“Ó árbitro que não vês e, no entanto, julgas, és o retrato exacto de um país inteiro, que fecha os olhos enquanto diz querer ver melhor, e assim apenas escreve a história das derrotas — não as do Benfica somente, mas daqueles todos, e tolos, que confundem o sopro com inteligência.”

E, finalmente, se a feição do cavaleiro da injúria for a de António Lobo Antunes, cansado da carne e da alma, a infâmia terá um tom clínico, triste de introspecção:

“Ó homem, se te desejasse rebentar agora, seria apenas para perceber se dentro de ti há alguma coisa que ainda apite — e que não seja o vazio. Tu nem és a solidão do erro; és o eco de um Deus bêbedo perdido em África.”

Eis, pois, a minha sugestão pedagógica: uma escola de literatura aplicada ao insulto do inculto, onde o Benfica cultivará dirigentes barrocos, treinadores realistas e jogadores lírico-decadentes — todos aptos a conceder opróbrios aos árbitros com estilo, cadência e alma.

A criação de tal academia não seria, convenhamos, perda para o futebol lusitano. Antes pelo contrário: seria a sua mais alta elevação estética desde a invenção do pontapé de trivela. Imagine-se o Estádio da Luz convertido em templo de humanidades, com os jogadores a recitarem injúrias em verso branco e os dirigentes a improvisarem epigramas ao quarto árbitro, enquanto o VAR, em vez de assistentes de vídeo, empregaria leitores do Instituto Camões.

E quem sabe se, nesse dia, as claques não trocariam o cântico tribal pelo coro alexandrino, e cada cartão amarelo seria sucedido de uma citação de Aristóteles sobre a moderação das paixões…

Não garanto, contudo, que a erudição evite mais cartões vermelhos, embora seja plausível que muitos árbitros, ignorantes das letras, nem percebam que estão a ser achincalhados — ou, vaidosos, julguem até estar a receber elogios. Mas, mesmo havendo expulsão, será ao menos uma vitória da língua — uma exclusão por excesso de literatura.

Adeus — e um piparote.

Brás Cubas

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