VALORES EM VEZ DE IDEOLOGIAS: ENSAIO (V)

A verdade como dever público

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Pedro Almeida Vieira|14/11/2025

1 – O colapso da epistemologia mediática

A crise do jornalismo contemporâneo, tão badalada quão real, não é apenas uma crise de modelos de negócio, nem sequer uma simples consequência da transição digital ou da fragmentação da atenção pública. Trata-se de um fenómeno mais profundo, estrutural e, em última instância, civilizacional: o colapso da epistemologia mediática. Em outras palavras, vivemos a erosão dos fundamentos que outrora sustentavam o compromisso dos órgãos de comunicação com a verdade, a verificação, o contraditório e a inteligibilidade do real.

Durante séculos, mesmo com todas as limitações e enviesamentos, o jornalismo foi socialmente reconhecido como uma instituição de mediação do mundo, dotada de uma missão cívica: relatar os acontecimentos com fidelidade, dar voz aos diversos actores, investigar o poder, e informar o cidadão com base em critérios de verdade empírica. No entanto, essa promessa moderna, já profundamente abalada sobretudo no final do século XX, sofreu uma mutação acelerada nestas décadas do século XXI. Não estamos apenas perante falhas pontuais, mas diante de uma metamorfose ontológica do próprio ofício.

Comecemos pelo essencial: a noção de verdade. Na tradição ocidental, a verdade não se apresenta apenas como uma adequação entre o discurso e os factos – a ‘aletheia’ aristotélica –, mas também um ideal regulador da vida pública. A verdade, como observou a alemã Hannah Arendt, é frequentemente impotente perante o poder, mas é também o último reduto da liberdade humana: só numa sociedade onde a verdade tem um lugar possível é que o juízo individual pode desenvolver-se com responsabilidade. Aliás, para Arendt, o perigo supremo das sociedades totalitárias não era a mentira simples, mas o colapso da distinção entre verdade e ficção, entre realidade e construção narrativa.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Esse colapso que hoje, precisamente, atravessa o jornalismo dominante, cuja epistemologia – ou seja, o modo como produz e legitima conhecimento – se encontra subordinada a três forças principais: a agenda institucional, a lógica da audiência e o conformismo editorial. A primeira destas forças traduz-se na dependência crescente de fontes oficiais e de comunicados governamentais; a segunda na submissão à gratificação instantânea dos algoritmos e das redes sociais (que, paradoxalmente, tanto abomina); a terceira na autocensura ditada pelo medo de desagradar aos pares, aos patrocinadores, aos parceiros ou às autoridades.

A verdade jornalística, outrora procurada através de reportagens, entrevistas e investigação, é hoje substituída por narrativas autorizadas, validadas por um circuito fechado de fontes, agências e entidades supostamente independentes. As redacções deixaram de pensar em termos de veracidade para pensar em termos de consistência comunicacional. A verdade tornou-se um problema de relações públicas, não de apuramento empírico. Aquilo que importa já não é tanto se algo é verdadeiro, mas se é aceitável, se se enquadra, se “não levanta ondas”.

Este processo teve o seu momento de viragem durante a pandemia de covid-19. Foi nesse contexto que se consumou, perante os olhos ainda incrédulos de alguns, a adesão dos media ao modelo de discurso único: censuraram-se vozes dissonantes, ridicularizaram-se especialistas independentes, e normalizou-se a equivalência entre dúvida e desinformação. As chamadas “agências de fact-checking”, em vez de instrumentos de clarificação, converteram-se em vigilantes do pensamento permitido. A própria ideia de “facto” foi politizada, não no sentido de ser debatida, mas no sentido de ser apropriada e decretada. Deixou de haver uma investigação jornalística sobre se algo é verdade para haver uma certificação centralizada sobre o que era verdade.

Mas a pandemia foi apenas o ponto mais visível de um processo em curso. A guerra na Ucrânia, os protestos contra o passaporte sanitário, os efeitos adversos das vacinas, a cobertura da crise climática ou a questão da Palestina revelaram, e têm revelado, esse mesmo padrão: a recusa activa da dúvida, a expulsão dos dissidentes do espaço público e a consagração de uma epistemologia doutrinária. O jornalista já não pergunta: é verdade?, mas antes: posso publicar isto sem represálias?.

O conceito de “pós-verdade” tornou-se popular para descrever este fenómeno, mas é enganador, porque sugere que vivemos numa era onde a verdade foi simplesmente abandonada, como se estivéssemos todos, alegremente, a relativizar tudo. Mas isso não corresponde à realidade. Algo de mais subtil e mais grave se passa: há uma nova forma de controlo epistemológico, onde apenas certas verdades são autorizadas a circular, e outras são silenciadas, não por refutação, mas por deslegitimação moral, técnica ou judicial.

Na prática, aquilo que os media dominantes abandonaram não foi a noção de verdade – continuam a invocá-la –, mas a sua ligação ao real, à verificação, à confrontação de fontes, à escuta plural. Abandonaram a epistemologia clássica do jornalismo e adoptaram uma epistemologia funcional: dizer aquilo que serve, publicar aquilo que convém, omitir aquilo que complica.

Este colapso tem tido consequências devastadoras. Em primeiro lugar, foi corroendo a confiança pública: quando a verdade se transforma numa função do poder, o cidadão recua para o cinismo, para o tribalismo ou para o silêncio. Em segundo lugar, foi destruindo a possibilidade de um espaço público racional, onde posições possam ser debatidas com base em factos comuns. E em terceiro lugar, foi impedindo a crítica: sem verdade verificável, toda a crítica é reduzida a suspeita, e todo a contestação é transformada em disfunção.

Num tal contexto, dever-se-ia reconstruir os alicerces de uma epistemologia mediática alternativa. Não se trata de restaurar uma idade de ouro – que talvez nunca tenha existido –, mas de resgatar valores fundamentais: a dúvida como motor do conhecimento, a pluralidade como condição da verdade, a coragem como ética do ofício. E, sobretudo, a verdade como bem público – não propriedade de quem manda, mas responsabilidade de quem escreve.

Essa reconstrução não virá das redacções institucionais, já capturadas pelos seus compromissos económicos e ideológicos. Virá, se vier, de projectos autónomos, de jornalistas livres, de leitores exigentes. De pessoas que, mesmo sabendo o preço de romper com a narrativa oficial, escolhem olhar, escutar, investigar, e sobretudo dizer e escrever.

Este colapso da epistemologia mediática não é apenas uma decadência profissional – é um sintoma de algo mais vasto: o fim de uma cultura democrática que acreditava que a verdade era um horizonte comum. E reerguê-la agora exigirá mais do que boas intenções: exigirá coragem, lucidez e, acima de tudo, liberdade.

2 – A ciência capturada: da pluralidade experimental à ortodoxia financiada

Durante séculos, a ciência afirmou-se pela capacidade de questionar consensos, de desafiar ortodoxias, de inverter paradigmas. Foi essa pulsão (quase) herética que nos conduziu das trevas da astrologia à astronomia, da medicina medieval dos miasmas à microbiologia, da alquimia à química moderna.

Porém, nos tempos hodiernos, aquilo que se apresenta como “ciência” tende mais à função de oráculo do que de método. A autoridade científica passou a residir não no escrutínio rigoroso de hipóteses, mas na repetição performativa de verdades provisórias — sancionadas, sobretudo, por fontes de financiamento.

A captura da ciência não se deu de forma súbita nem por decreto. Operou-se, antes, por mecanismos subtis de condicionamento: pelos fluxos de dinheiro, pelos sistemas de avaliação, pelos critérios de publicação, pelos protocolos burocráticos de reconhecimento. A pluralidade de abordagens, que deveria ser o oxigénio da investigação, torna-se suspeita. A divergência é desautorizada como desinformação – muitas vezes pela imprensa ou por cientistas com acesso privilegiado aos media. A dissidência metodológica transforma-se em pecado epistemológico. E assim se constrói um simulacro de consenso, onde o que importa não é a robustez da prova, mas o alinhamento com a linha editorial da agência de financiamento.

Este fenómeno agrava-se à medida que os centros de decisão científica se tornam hiperburocratizados. A investigação académica está hoje sujeita a um sistema de incentivos perverso: publicar em determinadas revistas, citar os pares certos, adequar a linguagem à do financiador, garantir impacto político. A ciência do século XXI é, assim, uma ciência de projectos, não de ideias. A criatividade foi substituída por protocolos, e a ousadia pelo compliance institucional. Com isto, inova-se menos, repete-se mais. E quando se repete sob vigilância, a ciência transforma-se num ritual, não numa aventura intelectual.

Um dos sintomas mais gritantes deste declínio é a crise da replicabilidade: milhares de estudos, sobretudo nas ciências sociais, na psicologia e na medicina, não podem ser replicados com os mesmos resultados — um problema grave que mina a confiança pública, mas raramente abordado com frontalidade pelas instituições. E qual o motivo? Replicar não dá prestígio nem financiamento; contestar resultados consagrados chega a ser até perigoso para a carreira. Assim, o sistema académico prefere a estabilidade da aparência ao incómodo da revisão crítica.

Tomemos o exemplo das vacinas genéticas durante a pandemia da COVID-19. A ciência que durante décadas praticou o princípio da precaução, o escrutínio alargado dos efeitos secundários, os ensaios faseados e transparentes, foi colocada entre parêntesis. Emergiram novos dogmas: eficácia infalível, segurança inquestionável, ausência de alternativas. As publicações críticas foram recusadas ou desclassificadas. Os estudos preliminares tornavam-se decretos de um dia parta o outro. As dúvidas, mesmo quando legítimas e fundamentadas, eram tratadas como heresias. A medicina transformou-se num instrumento de obediência civil – e o médico, em muitos casos, num executor de protocolos externos.

Mas não foi apenas na saúde pública que se observou esta mutação. Mesmo no discurso climático houve similar mutação. As linhas de investigação que conseguiram um consenso relativo – e o consenso não é dogma em ciência – trataram de rotular como negacionismo as críticas aos modelos de previsão ou mesmo o questionamento da eficácia das políticas de mitigação ou do impacto das soluções ‘verdes’. E com o rótulo, como se sabe, vem a excomunhão académica. Os grandes painéis intergovernamentais tornaram-se agências de justificação, e não de análise: partem do pressuposto do colapso e procuram confirmá-lo. As lacunas metodológicas, os pressupostos discutíveis e as divergências entre modelos são silenciados em nome de uma alegada urgência moral e política, aproveitada por políticos para hipocritamente se desresponsabilizarem.

Importa recordar, com honestidade intelectual, que o campo das alterações climáticas — hoje consagrado como indiscutível — foi, durante décadas, uma área marginal, desacreditada por poderes económicos dominantes, designadamente a indústria petrolífera, que bloqueava o financiamento e dificultava a publicação de estudos que apontassem para riscos associados ao aumento das emissões. Foi só a partir dos anos 90 do século passado que se abriu, enfim, espaço para investigações mais livres e pluralistas, permitindo que hipóteses minoritárias ganhassem credibilidade científica. A comunidade académica beneficiou, então, de um raro momento de abertura. E foi precisamente essa liberdade — de publicar, de errar, de testar — que permitiu avanços importantes.

Não deixa, por isso, de ser ironicamente indecoroso que essa corrente, antes marginalizada e até silenciada, se tenha convertido, ao tornar-se maioritária, numa espécie de clero inquisitorial contra qualquer oposição ou contestação. A verdade de ontem — conquistada a pulso — transforma-se, assim, num dogma de hoje, usado pelo poder político e económico como instrumento de chantagem emocional e legitimação de agendas globais.

A política ambiental é, neste aspecto, o sector mais escandaloso. Em vez de se orientar por princípios de responsabilidade individual e eficiência local, foi diluída num discurso messiânico de salvação climática, que converte os cidadãos em súbditos culpados de um destino planetário, ao mesmo tempo que isenta os verdadeiros arquitectos do desperdício global — as diplomacias, as grandes potências e os conglomerados industriais — de qualquer prestação de contas efectiva. Cria-se, assim, um monotema climático, onde tudo gira em torno do carbono, enquanto as questões de gestão florestal, de poluição local, de esgotamento de recursos e de desequilíbrios agrícolas são relegadas para notas de rodapé. E tudo com a bênção de cientistas.

Aliás, a promiscuidade entre ciência e política pública é hoje perniciosamente estrutural. Antigamente, desejava-se que os governos recorressem mais à ciência como ferramenta de apoio à decisão, mas hoje vê-se o poder encomendar consensos impostos na academia que validem opções políticas pré-definidas. E o cientista, em vez de ser um árbitro metodológico, é convocado como actor legitimador. Quando isso sucede, a fronteira entre ciência e propaganda dissolve-se. Os modelos matemáticos substituem a observação empírica. As comissões técnicas tornam-se oráculos. E o espaço para o contraditório desaparece sob a pressão da “urgência” e da “responsabilidade social”.

Note-se: não se trata de negar evidências, mas de rejeitar o automatismo com que uma narrativa se impõe como dogma. Uma verdadeira ciência do clima teria espaço para pluralidade de modelos, de projecções, de interpretações. Mas hoje estamos perante uma teologia carbonificada. Uma doutrina com sacerdotes e liturgias, indulgências verdes e sacramentos de conferência. E como toda a teologia, também esta exige fé — não método científico.

A ciência, quando autêntica, é um acto de coragem. Implica aceitar o erro, suportar a dúvida, expor-se ao contraditório. Mas a ciência capturada, a ciência tornada administração, renuncia a esse risco. Prefere ser útil a ser verdadeira. E é aí que deixa de ser ciência — para se tornar instrumento de governo.

3 – A verdade condicionada: quando a transparência é filtro, não virtude

Numa época em que se proclama a transparência como valor absoluto, não deixa de ser irónico que os sistemas democráticos mais avançados sejam precisamente aqueles que mais sofisticadamente a filtram. A transparência, outrora virtude rara e desejável, converteu-se em mantra político-administrativo. Mas como todos os mantras, quanto mais repetido, mais oco se torna. Já não se trata de iluminar aquilo que está oculto, mas de controlar tudo o que pode ser visto — e, sobretudo, por quem e com que intenção.

O problema central da verdade no espaço público não é já o da ocultação, mas o da selecção. Não se nega a existência de factos – simplesmente estabelece-se uma hierarquia entre eles. Uns são elevados à condição de “revelações” mediáticas, outros empurrados para rodapés informativos ou, mais frequentemente, banidos sob a capa da irrelevância. Esta gestão selectiva da informação — travestida de transparência — mina a possibilidade de um verdadeiro debate democrático. O cidadão já não é um agente livre que acede à pluralidade informativa: é um consumidor filtrado de narrativas autorizadas.

O mesmo Estado que decide criar diplomas para a publicação de contratos públicos e impõe portais da transparência é o que, depois, recorre a cláusulas de confidencialidade em negócios estratégicos, oculta anexos contratuais sob sigilo comercial ou desvia pedidos de acesso a informação para corredores administrativos labirínticos. E pior: não concede sequer meios de fiscalização sobre a publicação dos tais contratos públicos e a sua adequação ao código em vigor. E o mesmo sistema político que exige “verdade” nos media financia com dinheiros públicos estruturas mediáticas incapazes de escrutinar o poder de que dependem. E a verdade, nesse jogo, é cada vez menos um dever público e mais um privilégio oficioso.

Há, porém, uma forma ainda mais insidiosa de opacidade: aquela que se mascara de síntese objectiva. Em vez de permitir o acesso aos dados brutos — aqueles que sustentam ou desmentem as conclusões —, apresenta-se apenas o sumário executivo, o comunicado político, a nota de imprensa. O relatório técnico permanece oculto, ou enterrado em anexos de difícil leitura. E quando se abdica da verificação empírica, o cidadão não é informado: é conduzido.

Tal artifício só se torna eficaz porque encontra no jornalismo de hoje um cúmplice passivo, por vezes ingénuo, por vezes voluntarioso. Redacções reduzidas, ausência de formação técnica e dependência institucional transformaram muitos órgãos de comunicação social em caixas de ressonância de discursos oficiais. Não se faz jornalismo: compila-se narrativa. Não se interroga a fonte: transcreve-se o enunciado. A complexidade dos dados torna-se pretexto para a simplificação doutrinária.

Mas há subtilezas mais perigosas do que a opacidade declarada. Quando se substitui o direito à informação pelo dever de acreditar, quando se trocam provas por consensos ou relatórios oficiais por “fact-checks” duvidosos, é a própria epistemologia democrática que colapsa. A verdade, nesse contexto, deixa de ser descoberta para ser decretada. E quem a contesta não está apenas em desacordo: é visto como suspeito, radical ou até inimigo do sistema.

A opacidade não se mede, pois, pela quantidade de documentos publicados, mas pela liberdade de os interrogar. Um exemplo particularmente revelador é o da gestão documental durante a pandemia da covid-19. Milhares de páginas foram tornadas públicas por governos, instituições de saúde e organismos internacionais. Mas quantas dessas páginas expunham dúvidas internas, dissensões científicas, alternativas ponderadas? Aquilo que se ofereceu foi transparência formal, não substantiva. A disponibilização maciça de dados -que serviram, em muitos casos, para alimentar o pânico – foi sobretudo um biombo para esconder o que realmente interessava: os critérios de decisão, os jogos de influência, os silêncios estratégicos. Em suma, os bastidores do poder.

A institucionalização da verdade condicionada não pode ser vista como um acidente: é uma estratégia. O sistema político contemporâneo — sobretudo nos regimes ditos liberais — aprendeu a conviver com a crítica, mas desde que não se alterem os fundamentos do jogo. A verdade aceitável é aquela que circula dentro do perímetro autorizado. Daí que, paradoxalmente, os documentos mais divulgados sejam frequentemente os menos incómodos. Publica-se o acessório, omite-se o essencial. E quando o essencial emerge, é já tarde demais ou é desvalorizado como “teoria da conspiração”.

A transparência, neste novo paradigma, é como um vidro fosco: deixa passar a luz, mas distorce as formas. Os observadores julgam ver, mas vêem apenas o que foi previamente enquadrado. Não se trata de manipular com mentiras, mas de gerir percepções com verdades incompletas. E a verdade incompleta, como sabia George Orwell, é a mais eficaz forma de mentira.

Esta forma de censura pela omissão é tanto mais perigosa quanto mais se esconde atrás de protocolos democráticos. Os gabinetes de comunicação institucional tornaram-se máquinas de controlo narrativo. Os pedidos de informação são respondidos com formalismos. Já não se consegue falar sequer com um director-geral ao telefone em ‘on’ se o assunto for incómodo. Os portais públicos estão repletos de dados, mas pobres em significado. A linguagem do poder já não é a do segredo, mas a da saturação informativa. O excesso de dados serve para afogar o sentido, e a avalanche de números substitui a clareza da explicação.

A responsabilidade pela verdade não é apenas de quem a detém, mas também de quem a procura. E aqui, a cidadania moderna revela-se débil. Acostumados à delegação de responsabilidades, muitos cidadãos perderam o hábito de interrogar, de desconfiar, de cotejar fontes, de exigir provas. A educação para a transparência tem sido substituída por programas de literacia digital cuja função principal é treinar a aceitação da verdade autorizada. É a domesticação da dúvida.

Talvez por isso os espaços verdadeiramente críticos não sejam hoje os grandes media, mas os projectos autónomos, muitas vezes de nicho, que operam à margem das estruturas de financiamento institucional. São raros e precários, mas vitais. Representam aquilo que resta da imprensa enquanto contrapoder. E não é por acaso que são alvo preferencial das novas formas de censura: não a censura tosca do lápis azul, mas a censura subtil do ostracismo, do descrédito e da invisibilidade algorítmica.

Aquilo que está em causa, afinal, é a natureza da própria democracia. Uma democracia que filtra a verdade em nome da estabilidade não é mais do que uma oligarquia ilustrada. Uma democracia que subordina a liberdade de expressão aos critérios de “segurança informativa” ou “coerência narrativa” prepara-se para deixar de o ser. E uma cidadania que aceita essa lógica resigna-se a ser tutelada.

4 – O elogio da dúvida: pensar contra a maré

A verdade deve ser incómoda, deve ser dissonante, deve ser plural. Quando deixa de o ser, não é a verdade que triunfa, é o conformismo. E a transparência, nesse contexto, não é virtude: é uma encenação.

Por isso, a dúvida é hoje uma forma de resistência. Numa era em que a abundância de informação coexiste com a escassez de pensamento, e onde a repetição ocupa o lugar da reflexão, duvidar tornou-se um acto quase revolucionário. Num mundo onde as opiniões são formatadas e distribuídas com a velocidade de um clique, onde os algoritmos moldam consensos artificiais, e onde o medo social da exclusão empurra os indivíduos para o conforto da uniformidade, aquele que ousa interrogar, hesitar ou contrariar é rapidamente fustigado como traidor do progresso ou cúmplice do obscurantismo.

O século XXI iniciou-se sob a promessa luminosa de que o livre acesso à informação — potencializado pela digitalização e pela gestão dos big data — nos libertaria, enfim, das antigas servidões da ignorância. Mas a realidade que se impôs foi outra: a vigilância do discurso e a homogeneização das opiniões. A dúvida — matriz da ciência, motor da filosofia, condição da liberdade — passou a ser tratada como vício. Sob o pretexto de combater as “fake news”, instituiu-se a “verdade certificada”. Surgiram os fact-checkers não como agentes de verificação honesta, mas como guardiães de uma ortodoxia conveniente — que, por não ser discutida, presume-se infalível.

Foi sempre assim que os dogmas se instalaram: não pela força dos argumentos, mas pela deslegitimação dos que ousavam contra-argumentar. Os inquisidores mudaram de vestes e de linguagem, mas não de espírito. Onde antes se queimavam livros, agora silenciam-se perfis. Onde antes se exilavam pensadores, agora bloqueiam-se os seus rendimentos publicitários. A censura deixou de ser uma proibição explícita: tornou-se um algoritmo.

E, no entanto, tudo quanto a Humanidade conquistou em termos de conhecimento e de liberdade resultou da dúvida. Copérnico, Galileo, Darwin, Pasteur, Bohr, Freud, Popper — todos ousaram pensar contra o senso comum da sua época. Não foram mártires do irracionalismo, mas profetas da crítica. O progresso não nasce do aplauso fácil às certezas, mas da suspeita metódica que obriga à revisão do estabelecido. Duvidar é, em grande parte das vezes, mais ousado e difícil do que acreditar: exige tempo, exige esforço, exige coragem. Mas é a única via para pensar livremente.

A dúvida não é, portanto, inimiga da ciência, mas a sua essência. Uma ciência que se recusa a ser escrutinada, que se refugia em consensos e em estatutos de autoridade, transforma-se numa teologia disfarçada de laboratório. É o que se observa hoje em múltiplos domínios: das alterações climáticas à saúde pública, da inteligência artificial à economia verde. Modelos computacionais ganham estatuto de oráculos. Revisões por pares tornam-se seitas por pares. O contraditório é ridicularizado, a incerteza varrida para debaixo do tapete político, a complexidade simplificada em slogans. E, pior, o cepticismo — esse bem precioso da razão — passa a ser denunciado como crime de opinião.

Durante a pandemia de covid-19, vimos a dúvida transformada em traição. Questionar os confinamentos, o uso prolongado de máscaras, a eficácia das vacinas de terapia genética ou os interesses das farmacêuticas foi suficiente para se ser lançado ao ostracismo. Políticos e jornalistas repetiam mantras como se fossem dados, ocultando conflitos de interesse, varrendo para os bastidores os dissidentes, desqualificando médicos e cientistas com décadas de carreira. A ilusão do saber passou a valer mais do que a dúvida da experiência. E uma sociedade inteira ajoelhou-se perante o medo.

A dúvida exige coragem, mas o medo pede obediência. E, por isso, ensinar a duvidar devia ser a missão central da educação. Não formar repetidores de manuais, mas indagadores do real. Pensadores que saibam dizer “não sei”, “talvez não”, “quero ver os dados”. Uma sociedade livre é aquela onde a dúvida é celebrada, não condenada. Onde o dissidente tem lugar à mesa, e não é expulso do salão. Onde a verdade se constrói no atrito, e não na confirmação automática.

Então no jornalismo, a dúvida devia ser critério profissional. Um jornalista que não duvida ou que não desconfia, jamais investigará. Limita-se a reproduzir. Conforma-se à versão oficial, e chama-lhe “facto”. Quando o jornalismo abdica da dúvida, torna-se relações-públicas do poder. E isso não é jornalismo: é propaganda. O jornalismo só é digno do nome quando afronta a versão dominante, quando incomoda, quando pergunta sem rede. Ser jornalista é aceitar viver no desconforto da dúvida — não servir como curador de narrativas aprovadas.

Mas duvidar tem um custo – mais cómodo é seguir a corrente do que remar contra. O cepticismo exige solidão, exige resistência, exige capacidade de suportar o insulto, o isolamento, o escárnio. Só uma cultura profundamente ética pode valorizar quem duvida. Só uma sociedade verdadeiramente livre tolera os que não aceitam os consensos como dogmas.

Porém, não se trata de cultivar a dúvida como fim em si – ou por embirração. Nem de cair num relativismo paralisante. Trata-se de reconhecer que a dúvida é o princípio de qualquer acto de consciência, porque um cidadão crítico é aquele que não abdica de pensar. O verdadeiro progresso — social, científico, cultural — sempre nasceu da fricção, não da reverência.

Por isso, neste tempo de verdades embaladas e discursos esterilizados, duvidar é um dever moral – é recusar a servidão voluntária; é preservar o espaço da consciência contra o adormecimento colectivo; é, em última instância, afirmar que o pensamento ainda é possível. E sobretudo defender que a liberdade, essa flor frágil, só floresce no terreno árido da dúvida perseverante.

5 – O jornalismo como responsabilidade epistemológica

O jornalismo, em tempos não muito distantes, foi uma profissão de risco — pelo menos moral. O jornalista não era apenas um cronista da realidade, mas um intérprete crítico, um observador inclemente, um incómodo que revelava aquilo que os poderosos queriam esconder e dando voz ao que o silêncio institucional abafava. A liberdade de imprensa, muitas vezes conquistada com sangue e exílio, implicava uma missão: ser o mediador imperfeito, mas necessário, entre o real e o público. Media como e o que se podia saber. O jornalista, nesse sentido, não era um simples transmissor de mensagens — era um agente do conhecimento partilhado.

Hoje, essa vocação parece diluir-se. A maioria dos jornalistas actua como funcionário da versão oficial: seja governamental, corporativa ou sanitária. Tornou-se comum ver as redacções converterem-se em repartições de retransmissão institucional, onde a nota de imprensa elimina a investigação, a conferência de imprensa sem perguntas prescinde da dúvida, o comunicado de uma agência substitui a observação directa. Em vez de se indagar, repete-se. Em vez de cruzar fontes, copia-se. Em vez de desconfiar, acredita-se. O jornalista que antes percorria arquivos, questionava relatórios e irritava ministros é agora muitas vezes um gestor de conteúdos e um técnico de relações públicas.

Este desvio não é apenas profissional: é epistemológico. A sua pureza, o jornalismo não é apenas um canal — é um filtro. A forma como uma redacção decide o que é notícia, como a estrutura, a quem dá voz e com que linguagem a apresenta, tudo isso molda a percepção do real. O jornalismo não espelha o mundo — constrói um mundo possível. Cada omissão, cada destaque, cada adjectivo não é apenas um estilo: é uma escolha ontológica. E, por isso mesmo, há um dever ético e epistemológico que se impõe ao jornalista: o de saber que está a interferir com aquilo que os outros sabem do mundo.

Neste contexto, a abdicação crítica do jornalismo mostra-se especialmente grave. Se o jornalista não assume a sua responsabilidade epistemológica, entrega-a a outros: ao Estado, à publicidade, ao algoritmo. A imprensa torna-se então um canal de reprodução de poder, e não de escrutínio. As redacções tornam-se instrumentos de engenharia da percepção, a linguagem perde a tensão da verdade e ganha a suavidade da aceitação. O jornalismo, neste cenário, deixa de informar — passa a orientar. Já não pergunta: sugere. E já não revela: valida.

O exemplo da pandemia foi paradigmático. Em nome da emergência, o jornalismo suspendeu a dúvida. Os jornais tornaram-se extensões dos gabinetes ministeriais. As televisões transformaram-se em púlpitos de higienismo emocional. E os médicos e investigadores, mesmo com credenciais, que divergiam da linha oficial eram ignorados ou descredibilizados pela própria imprensa. Os dados inconvenientes eram omitidos. E quando se colocavam perguntas desconfortáveis, a resposta era o silêncio, o riso ou a acusação de irresponsabilidade. O jornalista que ousasse questionar as decisões políticas ou a narrativa científica dominante era empurrado para a margem do sistema.

Esta crise revelou aquilo que já se insinuava: a maioria dos jornalistas perdeu o vínculo com a ideia de verdade como confronto. O conceito de “verdade” passou a ser funcional: aquilo que serve a estabilidade social, a confiança nas instituições, a tranquilidade da ordem. Mas o jornalismo nunca foi feito para tranquilizar. O bom jornalista é o que desestabiliza — não por gosto do caos, mas por fidelidade à complexidade do real. Não se trata de conspirar, mas de não pactuar com a ingenuidade, de recusar que a versão oficial seja automaticamente a versão correcta.

Na história do jornalismo moderno, há uma linhagem de resistência que se mede não por prémios, mas por coragem. Émile Zola inaugurou-a com o seu “J’accuse”, quando ousou desafiar o Estado francês e o antissemitismo do caso Dreyfus. Seguiram-se-lhe vozes como a de Ida Tarbell, que expôs o império monopolista de Rockefeller, e ainda de Upton Sinclair, cuja denúncia das fábricas de carne em The Jungle levou à criação da autoridade sanitária norte-americana. Décadas mais tarde, David Leigh e Harold Evans enfrentaram tribunais e governos para revelar o drama da talidomida, que mutilara milhares de recém-nascidos sob o silêncio cúmplice da indústria farmacêutica. Nos anos 70, Bob Woodward e Carl Bernstein desmontaram o poder presidencial com o Watergate, e Seymour Hersh denunciou ao mundo o massacre de My Lai e, anos depois, as torturas em Abu Ghraib.

A tradição prosseguiu com Anna Politkovskaya, que pagou com a vida o atrevimento de escrever contra a tirania russa, e com Daphne Caruana Galizia, silenciada em Malta por investigar a corrupção política. E ainda com Glenn Greenwald e Laura Poitras, que, com as revelações de Edward Snowden, provaram que a liberdade se defende desobedecendo. Essa é a genealogia dos que fizeram do jornalismo um acto moral: resistir ao poder em nome da verdade — uma linhagem hoje reconhecida nos próprios Prémios Nobel da Paz, como o filipino Rappler Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov, que simbolizaram em 2021 a persistência do jornalismo livre face ao autoritarismo do nosso tempo.

Esta responsabilidade dos jornalistas obriga a duas virtudes fundamentais: coragem e rigor — coragem para enfrentar poderes, romper consensos, suportar pressões; e rigor para não confundir crítica com rumor, dissidência com histeria, suspeita com leviandade. O jornalismo que serve à liberdade é aquele que conjuga ambos: sem coragem, torna-se cúmplice; sem rigor, torna-se charlatão.

A tentação contemporânea de tratar o jornalismo como um produto comercial — mais preocupado com engagement, likes e métricas do que com a substância das suas matérias — agravou esta crise. Quando a verdade já se torna irrelevante face ao alcance, e quando a verificação factual cede ao entretenimento político, o jornalismo degrada-se em espectáculo, a crítica dá lugar à indignação estéril, a reportagem investigativa é substituída por opinião plastificada e a opinião, quando generalizada e sem critério, perde o seu valor como acto de discernimento.

Em tempos de manipulação emocional, de censura subtil e de hegemonias narrativas, o jornalismo tem a obrigação de ser o último reduto da desconfiança metódica. E não porque o jornalista seja melhor do que os outros cidadãos, mas por lhe ter sido dado o privilégio — e o encargo — de procurar o que está oculto, de ligar os factos que não querem ser ligados, de incomodar o que se quer pacificado. Essa é a sua ética, e a sua razão de ser.

Quando o jornalista abdica da sua função epistemológica, não se limita a trair a sua profissão: contribui activamente para a erosão do espaço público. A sociedade passa a viver numa ilusão partilhada, onde todos sabem que há perguntas por fazer — mas ninguém as faz. Onde todos sentem que algo não bate certo — mas preferem a comodidade da versão oficial. Onde a liberdade é invocada, mas nunca exercida.

Por isso, a tarefa do jornalismo não é confortar, nem doutrinar, nem entreter. A sua função é expor, é interrogar, é perturbar. E, sobretudo, é manter acesa a possibilidade de que a verdade — ainda que parcial, ainda que efémera — possa emergir do caos das versões. E note-se: não há maior responsabilidade do que esta, porque quem controla aquilo que se pode saber, controla também o que se pode pensar. E quem domestica a dúvida, acaba por domesticar a liberdade.

Assim, o jornalismo verdadeiro jamais deve ser visto como um ramo do Poder — nem como o Quarto Poder defendido pelo inglês Edmund Burke no século XVIII —, mas um espinho cravado no seu flanco. A sua nobreza está no incómodo. E a sua função, se não for substituída por máquinas obedientes ou algoritmos anestesiantes, será sempre a de dizer o que alguém — alguém com poder, com influência, com medo — não quer que se diga. Tudo o resto, como George Orwell sabia, é apenas relações-públicas.

6 – Veracidade ou conveniência? A falácia da verdade estratégica

A mentira política não é uma invenção da modernidade. Desde tempos ancestrais, reis, imperadores e até pontífices sempre recorreram a omissões, manipulações e eufemismos para perpetuar o poder ou evitar tumultos. Mas na era da comunicação de massas e da engenharia social, a mentira deixou de ser apenas instrumento pontual e tornou-se um método de governo.

Em vez de mero desvio da verdade, a mentira — ou, com maior precisão, a meia-verdade — passou a ser elevada à condição de verdade estratégica: uma construção de narrativa que visa orientar comportamentos e percepções, mesmo à custa da realidade. Esta mutação marca um ponto de inflexão. Já não se trata de mentir por interesse imediato, mas de mentir “para o bem comum”, “para evitar o pânico”, “para preservar a coesão social”. Em suma, temos agora uma mentira racionalizada, politicamente calibrada, moralmente justificada — mas, hélas, sempre mentira.

Noutro contexto, Hannah Arendt intuiu com clareza esta perversão. A mentira política moderna, advertia, não é apenas um acto de ocultação, mas um processo de substituição da realidade por uma ficção funcional. E quando a razão falha em desmontá-la, resta apenas o sofrimento como prova do engano. A dor torna-se a verificação empírica da falsidade institucionalizada. Nesse hiato — entre a narrativa oficial e a experiência vivida — consuma-se uma falácia da verdade estratégica.

Num mundo já distópico, a distinção entre verdade factual e verdade conveniente mostra-se, pois, fundamental. A verdade factual é incómoda, parcial, muitas vezes difícil de comunicar — encontrá-la requer trabalho, verificação, humildade. A verdade conveniente, pelo contrário, é moldada à medida da finalidade: serve objectivos, acalma ansiedades, reforça agendas. Torna-se, por isso, estratégia. E como toda a estratégia, requer controlo da linguagem, do tempo e do acesso à informação.

Nas crises contemporâneas — sanitárias, climáticas, económicas —, esta verdade estratégica manifesta-se de forma particularmente aguda. Os governos não dizem o que sabem: dizem o que convém que se saiba. As estatísticas não ilustram a realidade: seleccionam-se para induzir comportamentos. Os dados não são partilhados em bruto: são moldados, contextualizados, tornados inteligíveis apenas à luz da narrativa que os justifica. A opacidade não é acidente — é um recurso. O eufemismo não é distração — é um método. E quando a crítica se insinua, a acusação de irresponsabilidade, negacionismo ou desinformação serve como vacina contra a dúvida.

Durante a pandemia da COVID-19, este padrão de manipulação institucional atingiu o seu paroxismo. O Estado, as autoridades sanitárias e grande parte dos media agiram em perfeita simbiose para impor uma narrativa única, construída sobre omissões, simplificações e distorções. Foram ocultados dados fundamentais sobre as taxas de incidência e de letalidade por grupo etário, impedindo a compreensão pública de que o risco de morte era profundamente desigual entre faixas populacionais. Misturaram-se as mortes “com” e “por” COVID-19, bastando um teste positivo para inflacionar estatísticas, diluindo a fronteira entre rigor epidemiológico e dramatização política. As reacções adversas às vacinas foram sistematicamente minimizadas, a sua eficácia real escondida atrás de percentagens abstractas e slogans de fé sanitária, e os efeitos colaterais das políticas de confinamento — o isolamento, a falência de pequenas empresas, o atraso em diagnósticos de cancro, o aumento da depressão e de doenças psiquiátricas e neurológicas — foram tratados como danos colaterais aceitáveis em nome de uma suposta salvação colectiva.

A chamada “verdade estratégica” impôs-se sobre a verdade factual. As máscaras tornaram-se símbolo moral de virtude cívica, mesmo quando usadas sozinhas ao ar livre. Os hospitais foram descritos como em colapso permanente, ainda que muitas enfermarias estivessem esvaziadas pela suspensão dos serviços de consulta, diagnóstico e cirurgia. A vacinação foi proclamada como panaceia universal, e a obediência transformada em dever patriótico. Questionar era perigoso, duvidar era herético. As interpretações foram banidas, a dúvida científica foi criminalizada, e o medo converteu-se em instrumento de governo.

Não se tratou, na maioria dos casos, de malícia pessoal. Tratou-se de uma lógica institucional profundamente enraizada no Estado contemporâneo: a lógica da gestão da percepção. Em nome da “estabilidade social” sacrificou-se a transparência; em nome da “segurança colectiva” eliminou-se a individualidade da consciência; em nome da “salvação” aboliu-se a Constituição. A ciência deixou de ser método de investigação e tornou-se argumento de autoridade. E o jornalismo, que deveria ser o último reduto do questionamento, capitulou com entusiasmo — não interpelou o poder, amplificou-o; não investigou, catequizou a sociedade.

O resultado foi uma regressão intelectual disfarçada de progresso científico. A sociedade passou a repetir dogmas em vez de compreender factos; o debate público substituiu a dúvida pela crença, e a divergência pela censura. O medo transformou-se em instrumento de coesão social, o conformismo em virtude, e a mentira em acto piedoso. No fim, quando a poeira assentou, restou a constatação mais dura: o vírus matou em valores aquém da taxa de mortalidade de há uma décadas, mas a manipulação institucional matou uma confiança alicerçada por séculos de luta— e é essa que mais dificilmente se cura.

Esta mesma lógica é visível noutras áreas: na política ambiental, na guerra, na gestão orçamental. E agravou-se no pós-pandemia. As metas do défice são apresentadas como vitórias, mesmo quando decorrem de cortes draconianos em sectores essenciais. As políticas verdes são anunciadas com entusiasmo, mesmo que impliquem escassez energética ou transferência de rendas para grupos privilegiados. Os acordos internacionais são celebrados, mesmo que não passem de intenções vagas ou de engenharia semântica. O importante é o efeito político da verdade conveniente, não a sua aderência factual.

Neste processo instala-se uma erosão da confiança social, porque uma sociedade que pressente o fosso entre o que vive e o que lhe dizem deixa de confiar, mesmo quando os mensageiros dizem a verdade. A credibilidade não se perde com uma mentira: perde-se com o hábito de mentir. Quando a linguagem se torna instrumento de gestão, e não de revelação, a comunicação degrada-se em propaganda — e a propaganda, mesmo bem-intencionada, corrói sempre a liberdade.

A chamada “comunicação de risco” institucionalizada nos últimos anos é um bom exemplo desta deriva. A sua função deixou de ser informar para se tornar modeladora: o cidadão é visto como massa emocional, incapaz de interpretar dados ou aceitar incertezas. Por isso, não se diz toda a verdade — diz-se apenas a parte que serve para induzir a “resposta desejada”. A linguagem torna-se paternalista, securitária e tecnocrática. O Estado torna-se um pai severo, enquanto o cidadão se transforma em criança emocional. Esta infantilização da opinião pública, sob pretexto da “protecção”, conduz inevitavelmente à passividade e à alienação. E quando esta estratégia falha — como sempre falha —, o ressentimento cresce, porque ninguém gosta de ser manipulado, mesmo por boas intenções.

O risco maior da verdade estratégica não é a mentira em si, mas a substituição da ideia de verdade por uma ideia de utilidade. Já não se busca a verdade por ser valiosa, em si mesma, mas apenas se for útil, se contribuir para a estabilidade, para a moral pública, para os desígnios do poder. Esta inversão apresenta-se profundamente perigosa, pois subverte a ordem moral do conhecimento. E assim se prepara o terreno para formas sofisticadas de totalitarismo, em que não há censura explícita, mas há um controlo sistemático da possibilidade de saber.

A cultura do eufemismo contribui activamente para este processo. Já não se fala em censura, mas em “moderação de conteúdos”. Já não há manipulação de dados, mas “ajustamentos técnicos”. Já não se mente: faz-se “gestão da narrativa”. A linguagem torna-se um biombo — e quando sucede, a realidade torna-se incomunicável. A verdade, assim, deixa de ser uma referência partilhada — torna-se uma ficção privativa, reservada a elites, a peritos, a entidades autorizadas. Os demais são meros receptores de versões aprovadas.

Recuperar a veracidade exige, por isso, uma ruptura profunda com esta cultura estratégica da comunicação. E, para isso, torna-se necessário voltar a considerar a verdade como valor — não como instrumento, aceitando a incerteza, a falha, o erro. Esse processo implica dar espaço à crítica, ao contraditório, à pluralidade de perspectivas. Implica, por outro lado, reconhecer que uma sociedade livre é aquela onde os cidadãos são tratados como adultos racionais, e não como massas moldáveis por estímulos e mensagens calibradas.

A função pública da verdade não é, repita-se, ser agradável, nem eficaz: é ser honesta. E a honestidade, mesmo quando custa votos, apoios ou tranquilidade, é o único cimento sólido da confiança democrática. Uma sociedade que aceita ser governada por meias-verdades, mesmo que com bons resultados a curto prazo, está a corroer os alicerces do seu próprio pacto civilizacional.

Hannah Arendt estava cheia de razão: o sofrimento, e não a razão abstracta, acaba por desmentir as mentiras políticas. Mas não precisávamos de chegar tão longe: bastaria recordar que a verdade não é um luxo, é um dever público. E como todo o dever, exige coragem.

7 – A verdade como bem comum e limite do poder

A verdade, entendida não como dogma absoluto, mas como esforço permanente de apreensão do real, é o bem comum mais precioso de uma sociedade que se pretende livre e justa. E diga-se: jamais pode ser monopólio de especialistas, de governos ou de entidades reguladoras. Também não é um produto do mercado das ideias, sujeito à lógica da oferta e da procura, nem tampouco uma convenção arbitrária entre forças em disputa. A verdade, mesmo contingente e provisória, é aquilo que ancora a possibilidade de entendimento partilhado. Sem a verdade, a prazo todas as instituições ruem em descrédito, e todo o discurso público degenera em disputa tribal.

Num tempo em que a mentira se tornou ferramenta legítima da acção política, em que a dúvida é suspeita e o cepticismo uma forma de deslealdade civil, importa recordar que não há liberdade sem verdade. Só a verdade permite que o poder seja confrontado, limitado, responsabilizado. Numa sociedade onde tudo é narrativa, então tudo é passível de manipulação. E onde tudo é manipulável, então nada é confiável.

A ideia de verdade como bem comum é incompatível com a instrumentalização da linguagem e da informação. Quando o discurso se submete à conveniência política, à lógica partidária ou à guerra cultural, deixa de ser meio de conhecimento para se tornar arma. A mentira — ou a meia-verdade — não precisa de ser total para ser devastadora: basta que crie ruído suficiente para tornar indistinguível o falso do verdadeiro, o rigor da manipulação, a investigação da propaganda. O relativismo pós-moderno, uma vez que dissolve a ideia de verdade em “perspectivas” equivalentes, abre o caminho para o cinismo político e para a erosão da confiança pública. Se todas as versões valem o mesmo, então nenhuma merece ser levada a sério. A mentira deixa de ser escândalo para se tornar paisagem.

O filósofo italiano Antonio Gramsci, ao afirmar que a verdade é revolucionária, tocou no nervo do poder, porque, quando dita sem temor, tem a força de desmontar construções ideológicas, expor contradições e abalar consensos artificiais. Por isso, os regimes autoritários temem tanto a verdade — mesmo quando essa verdade não mobiliza multidões. Na verdade, passe o pleonasmo, aquilo que ameaça o poder não é a violência: é o desmascaramento. E desmascarar exige uma cultura de exigência, de vigilância e de responsabilidade.

Esta concepção de verdade como limite do poder é inseparável da ideia de cidadania. Um cidadão que abdica da busca da verdade, que aceita a versão oficial sem questionamento, que consome informação sem espírito crítico, torna-se cúmplice involuntário da mentira institucionalizada. A democracia não se esgota no direito ao voto; vive da capacidade de escrutínio permanente do poder. E esse escrutínio só é possível quando a verdade não é censurada, deturpada ou subordinada ao interesse momentâneo das elites governantes.

A verdade é também um limite epistemológico ao poder técnico. Nos nossos dias, em que peritos e tecnocratas reclamam autoridade em nome da “ciência” ou da “evidência”, o risco é o da transformação da competência em infalibilidade. Mas nem os dados são neutros, nem as interpretações são puras. A verdade factual, mesmo sustentada em números, pode ser manipulada por selecção, omissão ou recontextualização. Por isso, o poder técnico, para ser legítimo, deve aceitar ser escrutinado, contestado e — quando necessário — desmentido. A ciência sem contraditório é dogma. E o dogma, por mais sofisticado, não deve guiar políticas públicas num regime livre.

A verdade impõe ainda um limite moral à acção do Estado. Governar não é apenas decidir com base em resultados: é decidir com base em princípios. E entre esses princípios, a veracidade é condição de legitimidade. Um Estado que mente — mesmo por boas causas — está a trair o pacto fiduciário com os seus cidadãos.

Não há paternalismo moralmente aceitável quando se trata da verdade. A ocultação deliberada, a manipulação do discurso ou a invenção de consensos fictícios corroem a dignidade cívica da governação. E o governante que esconde ou distorce, mesmo quando tem razão, perde a razão de governar.

A comunicação política moderna, porém, tem vindo a habituar-se a relativizar a verdade em nome da eficácia. Os “spin doctors”, os “consultores de imagem” e os “gestores de crise” tornaram-se parte do aparelho dos governos. A verdade passou a ser matéria de cálculo, não de convicção — diz-se o que convém, não o que é. E quando se é apanhado na mentira, inventa-se uma nova narrativa. A mentira deixou de ter consequências. Ou melhor: passou a ter recompensa. O escândalo dura um ciclo noticioso; a manipulação, uma sondagem — mas o custo real acumula-se na desconfiança, no cinismo e na apatia.

A verdade deve ser reconhecida como património comum e não como mercadoria ou instrumento. Por isso, o jornalismo, a academia, a justiça e a escola, todos têm o dever de servir a verdade — mesmo quando essa verdade é incómoda, minoritária ou difícil de aceitar. Não se trata de perseguir certezas absolutas, mas de manter vivo o esforço de aproximação ao real. A verdade, como horizonte partilhado, impede que a sociedade se torne uma colcha de ficções concorrentes. Por isso, quando desaparece, restam apenas os jogos de força, a manipulação emotiva e o autoritarismo consensual.

A defesa da verdade exige coragem institucional e responsabilidade individual. Coragem para dizer aquilo que não se quer ouvir; responsabilidade para resistir à tentação do conforto retórico. Neste jogo, não há neutralidade possível entre a verdade e a sua perversão. A imparcialidade não é a equidistância entre a mentira e o facto — é compromisso com o rigor, com a integridade, com a transparência.

A verdade, por fim, é também uma medida da justiça. Um julgamento justo não é aquele que agrada à maioria, mas aquele que se baseia na verdade dos factos. A justiça sem verdade é apenas teatro. E o direito, sem compromisso com a verdade, é tirania com toga. Nesta perspectiva, proteger a verdade equivale a proteger os mais fracos, os mais esquecidos e os mais silenciados. Em suma, a verdade é o que dá voz à vítima e limite ao poder.

Em tempos de manipulação institucionalizada, de relativismo calculado e de cinismo triunfante, afirmar a verdade é, de facto, um gesto revolucionário. Não para derrubar governos, mas para restaurar a confiança. Não para alimentar utopias, mas para preservar o que ainda resta de comum, porque sem verdade, não há memória; sem memória, não há identidade; e sem identidade, não há comunidade.

A verdade, reafirme-se, não pode ser considerada um luxo, nem um favor, nem uma conveniência — é um direito e uma necessidade. E é, sobretudo, um dever: o dever de não trair aquilo que nos torna humanos num mundo que insiste em nos tratar como consumidores de ficções. Que não se diga, pois, que fomos enganados. Que se diga, com firmeza, que escolhemos não abdicar da verdade — porque só ela nos pode ainda salvar da servidão.

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