ANIVERSÁRIO: VENDA COM DESCONTO ATÉ ÀS 24 HORAS DO DIA 17
Correio Mercantil de Brás Cubas em desconto de um dia: festejai o escriba… e salvai o armazém

Envio com autógrafo
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Ilustríssimas leitoras e digníssimos leitores, permitam-me um instante de solenidade — aquela solenidade bem antiga, com poeira de biblioteca e o leve aroma de pergaminho queimada ao sol.
Venho anunciar-vos que há razões para júbilo: o meu ilustre escriba, esse erudito que me concedeu o opróbio de existir novamente em papel, nesta vossa centúria, e me imprimiu com zelo de amanuense romano, acrescenta esta segunda-feira, dia 17, mais um ano ao seu já venerável calendário biológico.
E, como todo o sábio que envelhece ganha a súbita consciência da finitude — e, sobretudo, do escasso espaço no armazém onde repousam as gloriosas e abundantes remessas do Correio Mercantil de Brás Cubas —, decidiu celebrar o seu aniversário com um gesto magnânimo: durante um só dia, ou melhor, durante trintíssimas horas, cada exemplar poderá ser adquirido com um desconto especial, digno da benevolência (e forretice) de um imperador em final de reinado. Por isso, em vez de 17,50 euros, o opúsculo encadernado terá o preço de 15,00 euros, valor mais redondo, o que perfaz menos de 5 cêntimos por página.
Não se iludam, porém: esta generosidade não nasce apenas da filosofia epicurista nem da boa disposição aniversariante. Há, também, um discreto e muito prosaico desespero logístico. Por isso, caros leitores, apressai-vos — não todos ao mesmo tempo, que o escriba assusta-se com multidões.
Afinal, nada celebra melhor o aniversário do escriba do que aliviar-lhe o tormento logístico e permitir-lhe, quem sabe, avistar finalmente uma nesga de chão naquele armazém onde os livros se acumulam como camadas geológicas de papel.
Brás Cubas
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Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária
Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.
Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.
Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.
Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.
Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.
Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.
De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.
E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.
E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda
Brás Cubas