EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
O rei vai nu, ou o estado psicótico da Justiça

Há momentos na vida de um país em que não basta revelar factos: mostra-se necessário afirmar, com todas as letras, que o rei vai nu. O concurso para ingresso no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), retratado em exclusivo pelo PÁGINA UM — um procedimento que deveria ser o expoente do rigor, da transparência e da seriedade republicana, consistindo assim num exemplo aos futuros magistrados — transformou-se num exercício de nonsense científico e institucional que envergonha qualquer nação minimamente adulto.
A utilização, para selecção de futuros juízes e procuradores, de um questionário psicológico com 344 perguntas, muitas delas próprias de um consultório de psiquiatria do século XIX ou de um inquérito de revista cor-de-rosa, não é apenas um erro técnico: é um abuso institucional, uma confusão profunda entre Estado e devassa, entre avaliação e intrusão, entre mérito e psicometria de papel químico.

É absurdo — e não há adjectivo mais suave para usar — que candidatos a magistrados tenham sido obrigados a responder se têm diarreias frequentes, se já pensaram suicidar-se, se acordam a meio da noite com palpitações, se coleccionam selos, se ouvem vozes, se gostam de conduzir depressa, se sentem “vazio interior”, se têm impulsos de partir coisas, ou ainda se o seu “poeta favorito é Daniel Sampaio”. ↓
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Não estamos perante um exame de aptidão.
Estamos perante uma sondagem estatal à intimidade, uma recolha digna de um laboratório de psiquiatria autoritária — e, ironicamente, validada pela Ordem dos Psicólogos, que deveria ser a primeira a denunciar a caricatura científica do instrumento.
Além disso, o CEJ deveria ter tido o mínimo de prudência institucional. Não teve.

A Ordem dos Psicólogos deveria ter defendido a ética da avaliação. Não defendeu.
O Ministério da Justiça deveria ter questionado a proporcionalidade e a legalidade do método, até porque foi a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, que assinou o despacho a nomear a empresa de um psicólogo e comentador da SIC, a Talking About. Ignorou.
E os candidatos deveriam ter-se insurgido contra um obrigatório inquérito intrusivo para o qual foram coagidos, ainda por cima, a assinarem um patético “consentimento informado”. Acobardaram-se
O resultado está à vista: um concurso contaminado por um teste que nunca deveria ter sido aplicado, que falhou redondamente na sua função e que, perante a razia da avaliação da Talking About, acabou desautorizado pelos próprios psicólogos que foram chamados a corrigi-lo. Nove em cada dez reprovações foram revertidas — o que revela, de forma cristalina, que o teste não mediu o que prometia medir e que a Talking About faz um deplorável trabalho de avaliação.

Não estou a exagerar no qualificativo, pois tem um aspecto quantitativo associado: nove em dez reprovações jamais deveriam ter sucedido. Não ser admitido numa carreira profissional, depois de meses de estudos e provas de Direito, por causa de uma avaliação psicológica atamancada é mais do que injusto: é inaceitável. E ainda mais grave quando se sabe que Mauro Paulino, o gerente da empresa, elabora avaliações forenses. Mostra-se legítimo questionar se as suas avaliações, usadas em julgamentos, também têm um erro de 90%.
Quando uma ferramenta científica reprova em série e a revisão técnica corrige quase tudo sem esforço, a conclusão não é difícil: a falha não estava nos candidatos — estava no método.
Pior ainda: o teste serviu como instrumento de exclusão, não de selecção. E serviu como filtro arbitrário — e opaco — num processo que deveria ser exemplar em justiça e robustez.
Contudo, não culpemos apenas Mauro Patrício e os psicólogos que o assessoraram, nem a Ordem dos Psicólogos – onde ele integra o Conselho Jurisdicional –, que veio em seu socorro validar o invalidável.

Este inquérito revela que há algo de profundamente inquietante quando o Estado passa a exigir confissões íntimas que nada têm a ver com a competência para julgar. Isto é a medicalização da vida pública, o moralismo burocrático mascarado de ciência, o regresso — agora com assinatura digital — da velha pulsão higienista que tantos estragos fez no passado.
Portugal não precisa de juízes que se confessem em 344 itens.
Portugal precisa de juízes que conheçam a lei, que apliquem a lei e que se mantenham independentes face ao poder político, face ao poder económico e, já agora, face aos modismos pseudocientíficos.
Por isso, tudo que este episódio revela é grave. Temos uma ‘escola de magistrados’ fragilizada e permeável a práticas avaliativas sem escrutínio. Temos uma Ordem dos Psicólogos incapaz de assumir que errou na defesa corporativa do método. Temos um Ministério da Justiça que, conhecendo as polémicas dos últimos meses, preferiu assobiar para o lado. E temos um país que aceita com uma passividade perigosa que a escolha dos seus magistrados dependa de respostas sobre hábitos intestinais e palpitações nocturnas.

Há momentos em que a moderação é cumplicidade. E este é um deles.
Se o Estado quer magistrados competentes, comece por ser competente.
E se o sistema de Justiça quer credibilidade, que deixe de procurar loucuras nos candidatos e comece a procurar lucidez nos seus próprios corredores.