VISÃO DA GRAÇA, OPINIÃO DE ELISABETE TAVARES
O Jornalismo passou a ser crime (com a ajuda do silêncio dos jornalistas)

Sou jornalista há quase 30 anos e assisti ontem ao impensável: um jornalista sentou-se no banco dos réus no Campus de Justiça, em Lisboa, por fazer Jornalismo. Isso mesmo. Foi isso que testemunhei, ontem, na primeira sessão deste julgamento perigoso que decorreu na Sala 3, do quarto piso no edifício B do Campus de Justiça.
Tive de assistir enquanto o procurador do Ministério Público se transformava num inquisidor perante um jornalista cujas investigações apontaram a existência de diversas irregularidades que envolveram, inclusive, o “desvio” de vacinas contra a covid-19 para vacinar médicos não prioritários quando estas escasseavam em Portugal, no início de 2021. Foi também vacinado um político, que assim conseguiu passar à frente na lista de vacinação. Tudo à margem das normas da Direcção-Geral da Saúde. Está tudo documentado.

Ou seja. Um jornalista fez o trabalho que o Ministério Público não fez (ou não quis fazer). Investigou. Conseguiu ter acesso a documentos e provas (com recurso aos tribunais). Publicou. Mostrou as provas, os e-mails comprometedores, as facturas falsas, os pagamentos indevidos. Provou as fugas ao fisco e as vantagens fiscais indevidas obtidas por empresas farmacêuticas. ↓
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O que faz o Ministério Público? Colocou o jornalista como arguido. E liderou, ontem, no início da sessão, o ataque ao jornalista, agora sentado no banco dos réus, acusado de calúnia e difamação por Henrique Gouveia e Melo, a Ordem dos Médicos, o seu ex-bastonário Miguel Guimarães, e os médicos Filipe Froes e Luís Varandas.
Isto não é só mau. Isto não é só incompetência. Isto é perigoso. Porque não foi o jornalista que esteve ontem sentado no banco dos réus a ser inquirido num tom condenatório, como se fosse um qualquer criminoso. Foi o Jornalismo. Não foi o jornalista que esteve sob o dedo acusador do procurador. Foi a democracia. E tudo está a acontecer com o silêncio cúmplice dos jornalistas, associações e reguladores do sector da imprensa e do Sindicato.

Quando um procurador, perante as provas, os e-mails e os documentos, opta por perseguir e pedir a condenação não dos infractores mas do mensageiro, o que é isto senão um ataque à democracia?
Além disso, chocou-me a forma desrespeitosa como o procurador se dirigiu ao jornalista. O tom cínico. A voz elevada. Como quando um mau professor enxovalha um aluno com o único intuito de o humilhar perante a turma.
No meio do seu desastroso fio inquisitório, o procurador chegou até a querer saber que “coisas” andou o jornalista a fazer quando suspendeu a sua carteira profissional durante alguns anos. Como é público, o jornalista investiu na escrita, publicou diversos romances históricos e ensaios e dedicou-se ainda à investigação académica. Obteve também duas licenciaturas no ISEG, um mestrado, uma pós-graduação e está preparar um doutoramento.

A cada frase, o objectivo do procurador era ver se conseguia que o jornalista escorregasse numa qualquer armadilha. Um espectáculo triste demais para se ver. Um comportamento que nos faz questionar, afinal, para quem trabalha o Ministério Público.
A atitude do Ministério Público neste caso abre um precedente grave e cria espaço para outros atropelos à liberdade de imprensa e ao Jornalismo nos tribunais. Deu margem, por exemplo, a um dos advogados de acusação, para questionar o uso de uma palavra por parte do jornalista numa das suas notícias. Ao que chegámos.
Também foi com estupefacção que ouvi a meritíssima juíza questionar o jornalista sobre se, antes de escrever a notícia, pensou em como iria afectar “a honra” dos visados na investigação jornalística.

Desde quando é que cabe aos jornalistas defender a honra seja de quem for? Não é esse o papel de nenhum jornalista. Há aqui uma confusão sobre o que são os deveres e responsabilidades dos jornalistas. Mas o que dizer quando até uma juíza desconhece isso?
Talvez o magistrado do Ministério Público que quer condenar este jornalista também não saiba qual é o papel dos jornalistas. Talvez não saiba qual é a relevância do Jornalismo na saúde das democracias.
Cabe ao jornalista escrutinar, investigar, apurar os factos. Publicar o resultado das suas investigações e apresentar as provas.
Foi isso que fez Pedro Almeida Vieira quando investigou e noticiou os vários escândalos em torno da campanha “Todos por quem cuida” promovida pela Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos. (Curiosamente, três dos envolvidos nas polémicas da campanha “Todos por quem cuidam” provaram que tinham ambições políticas e aproveitaram bem a pandemia para “subir”: Miguel Guimarães é deputado do PSD; Ana Paula Martins, ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, é ministra; Gouveia e Melo é candidato à Presidência da República.)

Uma coisa é certa: o procurador parece não saber qual é o papel do Ministério Público. Porque perseguir jornalistas não é certamente. (Já investigar se houve crime na campanha “Todos por quem cuidam” já parece ser uma das suas competências.)
Algumas das perguntas que foram ontem colocadas ao jornalista na primeira sessão do julgamento são inaceitáveis em democracias que honram a liberdade de imprensa. Procurou-se queimar o Jornalismo numa fogueira, ali, na Sala 3.
Afinal, o jornalista viu os documentos? Viu os e-mails? Então o que dizia aquele e-mail? E onde viu aquela factura? E o que estava na factura? E o jornalista lá ia respondendo a este rol de questões da inquisição tosca que se montou naquela Sala 3. Lá o jornalista, de tablet na mão, andava a ter de procurar os documentos que todos os presentes podiam consultar no processo e nas notícias que publicou. Lá o jornalista, pacientemente, ia lendo os e-mails em voz em alta. Os e-mails que aquele procurador ali sentado queria usar para condenar o jornalista que os revelou, ao invés de procurar sentar no banco dos réus os autores dos mesmos.

O jornalista teve ainda de responder a questões do foro pessoal: com quem vive; quanto ganha; quais as despesas fixas mensais…
Ali, sentada naquela sala, a ver um jornalista a ter de responder como se fosse um criminoso apenas por ter feito o seu trabalho, provocou-me, a certa altura, um arrepio. Um calafrio de quem acabou de ter uma má premonição. É que percebi, naquela Sala 3, que a democracia está mesmo por um fio, quando um jornalista é perseguido por um procurador por ter noticiado a descoberta de irregularidades.
Ainda assim, no final da sessão de ontem, a juíza travou o questionário do advogado de Gouveia e Melo e acabou ela própria a fazer um resumo breve das revelações do trabalho de investigação jornalística de Pedro Almeida Vieira e do PÁGINA UM, no dossier sobre o caso da vacinação contra a covid-19 feita a um grupo de médicos à margem das normas da DGS. Uma luz de esperança neste dia.
Também o procurador ficou a saber que o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa pediu ajuda a Pedro Almeida Vieira e abriu, em 2024, um inquérito para investigar a campanha polémica da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos. O seu tom mudou. No final da sessão, já não era o professor que enxovalhava enquanto se via forçado a tomar nota do número do inquérito do DIAP que lhe foi fornecido pelo jornalista.

Falta ainda assistir às próximas sessões deste julgamento que é duplo: o jornalista também é acusado (incluindo pelo Ministério Público) por ter trazido transparência à situação de promiscuidade que envolve dois conhecidos e mediáticos médicos, Filipe Froes e Luís Varandas. Estes médicos, consultores de farmacêuticas, consideram que é difamação e calúnia quando um jornalista revela que… são consultores de farmacêuticas e não apenas médicos. E que esse seu estatuto de consultor deve ser divulgado a cada intervenção pública e mediática que fazem, quando comentam situações de saúde pública ou promovem fármacos na imprensa.
Estes médicos sabem que podem contar com o procurador na perseguição do Jornalismo. Porque, no fim, para o procurador, fazer Jornalismo é difamar, é caluniar. Investigar é atentar contra o bom nome. Publicar notícias com base em documentos e e-mails é um crime que merece condenação pública. Uma condenação que sirva de aviso a todos os jornalistas. E isto, caros leitores, é a normalização da intimidação judicial de jornalistas. Isto é, caros leitores, a democracia com cheiro a fim de prazo.
Nota: Aguardamos, serenamente, que o Sindicato dos Jornalistas se pronuncie publicamente e condene este julgamento que está em curso, bem como a actuação perigosa do Ministério Público neste processo. Vamos aguardar sentados, em todo o caso. Afinal, trata-se do director do PÁGINA UM, um jornal que investiga também a promiscuidade na imprensa. E, sobretudo, um jornal que não faz fretes. A ninguém.