NOVA 'VARIANTE' DO VÍRUS A(H3N2) NÃO FOI DRAMÁTICA NO HEMISFÉRIO SUL
Época gripal ‘normal’ na Austrália contraria o alarmismo (que já reina) na Europa

A Europa começa a aproximar-se lentamente do Inverno, e regressa o ciclo previsível de ansiedade mediática em torno das infecções respiratórias. Este ano, porém, o ‘ruído’ ganhou novo combustível com a confirmação, pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), de que uma nova subclade do vírus influenza A(H3N2) — designada agora por K — se tornou dominante nos isolamentos recentes. E isso não estava previsto quando se produziram as vacinas que agora estão a ser administradas.
Na verdade, esta ‘variante’ é um subtipo historicamente associado às estações gripais mais severas das últimas cinco décadas, mas que, segundo o relatório do ECDC, apresenta divergência genética significativa face à estirpe incluída na vacina para a época gripal 2024–2025. O organismo europeu reconhece explicitamente que análises antigénicas e sorológicas in vitro sugerem um desfasamento (‘mismatch’) entre a composição vacinal e a nova subclade, acrescentando que a evidência de eficácia “no mundo real” permanece escassa. Esta é uma admissão incomum de que a escolha anual da estirpe — sempre realizada com seis a oito meses de antecedência — terá falhado o alvo.

A inferência imediata de que o próximo Inverno encontrará, independentemente da taxa de vacinação, a população europeia com protecção reduzida, ou mesmo mínima, é correcta. Mas esta constatação não deve ser convertida no habitual pretexto para uma narrativa de pânico. Convém, antes de tudo, relembrar uma realidade que as campanhas de comunicação pública tendem a omitir: a vacina da gripe tem, historicamente, eficácia modesta, raramente superior a 40% mesmo quando a correspondência antigénica é classificada como “boa”. Em vários anos europeus, a eficácia efectiva não ultrapassou os 20%. E, ao contrário da retórica sanitária ainda repetida em certos espaços institucionais, a vacinação não impede a transmissão comunitária: limita, quando muito, a probabilidade de doença sintomática. ↓
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Em todo o caso, esta é uma verdade incontestável: quando a correspondência vacinal é fraca, a redução do risco tende a ser pequena ou negligenciável. Assim, o impacto da época gripal nas unidades hospitalares, e a consequente letalidade, depende sobretudo da severidade intrínseca da estirpe dominante e do padrão observado no hemisfério sul — não de promessas políticas sobre a imunogenicidade.
É precisamente por isso que a vigilância sobre o impacte das infecções respiratórias mais comuns na Austrália assume relevância central para perspectivar o que pode suceder na Europa e, em particular, em Portugal. O sistema de monitorização da Austrália – um país com cerca de 27 milhões de habitantes – é bastante abrangente, rigoroso e historicamente consistente, fornecendo um dos melhores espelhos epidemiológicos para prever o comportamento do Inverno do Hemisfério Norte. Enquanto a Europa atravessa o Verão, a Austrália está no auge da estação fria, permitindo a leitura antecipada das ‘curvas respiratórias’. Desde há décadas que esta relação inversa tem elevado poder preditivo: quando o Sul regista épocas severas, o Norte tende a replicá-las meses depois; quando o Sul observa uma estação moderada, o Norte raramente enfrenta surpresas desagradáveis.

Ora, sabe-se que o surgimento da subclade K ocorreu apenas no final da época austral, demasiado tarde para ser incorporada no processo global de selecção vacinal para o hemisfério norte. Mas, no entanto, o ponto essencial é este: os dados australianos de 2025 não sinalizam qualquer concentração anómala de gravidade. Pelo contrário, descrevem uma estação moderada, epidemiologicamente estável e longe de qualquer cenário de pressão estrutural sobre os serviços hospitalares.
O mais recente relatório de vigilância respiratória australiana, com dados até ao início de Novembro — e que inclui covid-19, vírus sincicial respiratório (VSR) e gripe —, confirma um quadro epidemiológico estável, sem qualquer indicador de pressão estrutural nos serviços de saúde. Os casos de COVID-19 continuaram a diminuir, situando-se 32,7% abaixo do período homólogo de 2024, e a ocupação de cuidados intensivos manteve-se baixa e estável.
Já a gripe registou um ligeiro aumento residual, mas inserido numa curva de descida após o pico prolongado de Julho e Agosto; apesar de notificações totais superiores às de anos anteriores, o impacto clínico manteve-se moderado, com redução de internamentos graves no período mais recente. O VSR, por seu turno, continuou a descer de forma consistente desde Julho, aproximando-se dos níveis de circulação habituais para a época.

Do ponto de vista hospitalar, o Australian Respiratory Surveillance Report demonstra uma redução clara da gravidade clínica: menos internamentos por infecções respiratórias agudas, descida significativa de admissões por gripe e estabilização dos casos mais graves de covid-19. A este nível, a gripe permanece o principal motivo de internamento, mas sem sinais de excepcionalidade, com necessidade relativamente baixa de ventilação invasiva e tempos de internamento comparáveis aos anos anteriores. A mortalidade por infecções respiratórias mantém um padrão semelhante ao dos últimos dois anos, com a covid-19 ainda a liderar o acumulado desde 2023, embora os óbitos por gripe já tenham ultrapassado os de COVID-19 em Agosto, num movimento coerente com o aumento moderado de notificações, mas ainda distante dos cenários de 2019.
A vigilância laboratorial reforça o mesmo retrato: a positividade para influenza desceu para 5,9%, a de SARS-CoV-2 estabilizou nos 1,2% e a de VSR caiu para 1,5%, consolidando a tendência de abrandamento da circulação viral. Embora o relatório identifique um aumento recente de vírus A(H3N2) com reactividade reduzida à estirpe vacinal de 2025, não há qualquer evidência de maior severidade clínica ou aumento de casos graves associados a esta mudança antigénica.
A vigilância australiana mostra que, apesar da circulação intensa de vírus respiratórios em 2025, a gravidade clínica permaneceu controlada, com descida recente dos internamentos e mortalidade estabilizada. Entre 6 e 19 de Outubro, os hospitais sentinela registaram 323 internamentos por infecções respiratórias graves — 50 por COVID-19, 181 por gripe e 92 por RSV

No acumulado anual até 19 de Outubro, e numa população gloal de cerca de 27 milhões de pessoas, contabilizaram-se 14.380 hospitalizações, das quais 6.951 por gripe, 4.452 por VSR e cerca de 2.977 por covid-19 entre adultos e crianças . Em termos de mortalidade, os registos nacionais até Agosto apontam para 883 mortes devido à gripe, ultrapassando ligeiramente as 827 de 2019, enquanto a mortalidade por COVID-19 continua em queda clara face a 2023 e 2024. O VSR apresenta valores ligeiramente superiores aos de anos anteriores, mas sem impacto estrutural no sistema de saúde
Nos hospitais sentinela, até 19 de Outubro foram registados 74 óbitos por covid-19, 109 por gripe e 39 por VSR em adultos. Em menores de 16 anos, a letalidade foi residual: uma por covid-19, seis por gripe e duas por VSR. O quadro geral permanece, assim, consistente com uma estação respiratória moderada, sem sinais de colapso ou severidade anómala.
Globalmente, o padrão epidemiológico australiano revela uma estação respiratória moderada, sem sinal de pressão hospitalar anómala e plenamente consistente com Invernos típicos do hemisfério sul — precisamente o indicador mais fiável para antecipar o que a Europa enfrentará nos próximos meses.

Ou seja, mesmo com potencial ‘mismatch’ vacinal, a Austrália não enfrentou uma estação catastrófica — nem sequer excepcional. O VSR manteve-se dentro da tipicidade epidemiológica e a COVID-19 apresentou declínio acentuado, tanto em incidência como em internamentos. Nessa linha, a mortalidade global permaneceu estável. E nenhum indicador clínico ou laboratorial sugere que a subclade K possua maior virulência, maior risco de hospitalização ou maior letalidade.
Deste modo, a emergência de novas subclades do A(H3N2) pode considerar-se um fenómeno rotineiro, mas isso é algo típico este sutipo da influeza A, que se caracteriza por deriva antigénica acelerada e elevada plasticidade molecular, o que explica tanto a sua severidade histórica como a dificuldade em obter correspondência vacinal estável.
Mas estas oscilações não antecipam, por si mesmas, catástrofes sazonais. Exige sim uma maior atenção à prevenção, ao reforço da imunidade natural de cada pessoa, sobretudo dos mais idosos, e da capacidade de resposta das unidades hospitalares ao fluxo crescente de urgências e de internamentos, evitando, além disso, a ocorrência elevada de infecções nosocomiais, isto é, causadas nos próprios hospitais que incrementam a letalidade.

Em suma, perante uma vacina com menor correspondência, o desafio será assumir que a eficácia de protecção não será de 40% ou 30%, mas de apeas 20% ou 10% — uma diferença relevante, sim, mas incapaz de transformar um Inverno moderado num colapso sanitário. Mas sabe-se de antemão que a pressão hospitalar depende sobretudo da severidade da estirpe em circulação, não da percentagem exacta de eficácia vacinal.
A única verdade epidemiológica que merece ser dita, por agora, é esta: existe uma nova subclade K; existe ‘mismatch’ vacinal; mas não existe qualquer sinal de um Inverno catastrófico. A evidência aponta para normalidade. E, como sempre, é a evidência que deveria guiar a narrativa — não a ansiedade de quem precisa de tempestades para justificar a amplificação do medo. E sobretudo encontrar desculpas políticas se a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde falhar.