CORREIO MERCANTIL: TEMPORADA 2
Revelação bombástica: as adeninas e timinas de Gouveia e Melo são primas das citosinas e guaninas de Cristiano Ronaldo

CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS
(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)
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Ilustríssimas leitoras, digníssimos leitores — permiti que este vosso velho defunto, ressuscitado para as letras para vos servir com a graça e o azedume que Deus me deu (e o diabo, malandro, me aprimorou), venha hoje falar-vos de um tema de grande comoção lusitana: a surpreendente, assombrosa, tremenda — e, avanço já, para encurtar, ridiculíssima — revelação de que o futebolista Cristiano Ronaldo e o almirante Henrique Gouveia e Melo são primos distantes.
Digo “revelação” como poderia dizer “ópera bufa”, porque, convenhamos, encontrar o século XXI dois descendentes de madeirenses que não partilhem sangue, suor e lágrimas de um bisavô que arroteou vinháticos, loureiros, barbusanos, pau-branco e faias para plantar batatas no século XVII — o contrário, isso sim, seria matéria digna de milagre atribuído a santo com processo já em Roma.

Mas não: o Correio da Manhã, armado em genealogista iluminado — talvez pelo Espírito Santo, talvez por um café de cápsula particularmente agressivo — decidiu comunicar ao país que ambos descendem de uma Francisca de Viveiros, senhora de Machico, que estará algures no Além a gargalhar com aquele riso espectral que só as matriarcas com obra feita conseguem produzir. ↓
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Leitoras, leitores: a notícia do Correio da Manhã — revelada como se tivessem descoberto que Moisés não abriu o Mar Vermelho mas antes o empurrou com uma colher de sopa — é, na verdade, como anunciar que o Tejo desagua no mar, que a poncha leva álcool, que o sol nasce a oriente ou que a chuva molha quem anda à chuva. A surpresa é apenas para quem chega atrasado ao século.
Associar parentesco de sangue entre dois portugueses do século XXI só causa espanto a quem desconhece que, ao fim de dez gerações, qualquer vivente arrasta atrás de si um séquito de 1.024 antepassados directos — todos eles a circular pelo ácido desoxirribonucleico, empoleirados entre adeninas, timinas, citosinas e guaninas como fregueses reincidentes a disputar espaço no balcão gorduroso de uma tasca de província.

E se puxarmos o fio até vinte gerações, chegamos a um milhão de almas, pelo que imaginar espantos genealógicos é tão absurdo como pôr Simão Bacamarte à frente de um serviço moderno de psicologia… ainda que, pensando bem, não seria dos maiores disparates que por aí se vê.
Atentai, pois: a Madeira do século XVII era um mundo tão diminuto que os casamentos eram mais apertados do que um sermão de Padre António Vieira e os bailes tão raros como um casto em dias de festa. Imaginar que as famílias não se cruzavam é mais improvável do que Salomão escrever um versículo sem metáforas. Ali toda a gente era prima, tia, comadre, inimiga íntima, futura consogro de alguém ou pastora de cabras destinada — pela mão invisível do destino ou pela teimosia dos caprinos — a unir duas linhagens que juravam nada ter a ver uma com a outra. Aquilo era uma verdadeira república amorosa de tão poucas almas que até os milagres tinham de ser partilhados em regime de condomínio.
Assim, quando o jornal anuncia que Cristiano Ronaldo é primo afastado de Gouveia e Melo graças às discretas diligências nocturnas entre um madeirense e a Dona Francisca de Viveiros — senhora dada a convívios de apreciável fecundidade e a entendimentos domésticos de notável rendimento demográfico —, o meu espírito não produz mais do que isto: “É quarta-feira. E chove.” Nada de novo; nada de prodigioso; apenas a velha matemática das ilhas e a teia inevitável da humanidade: todos parentes, mesmo os que se detestam. Aliás — sobretudo esses.

Eu próprio, se os genealogistas modernos tivessem paciência para seguir o rasto dos Cubas, acabaria certamente parente de um Faraó, de um meirinho medieval e de algum frade devasso que deixava descendência todas as Quaresmas. Quem sabe se não descendo também da famosa Francisca de Viveiros — o que transformaria esta crónica num reencontro familiar. Oxalá ela não tenha deixado dívidas que ainda hoje durmam nos cartórios.
Vede, pois, o ridículo: nesta era de ciência, estatística e máquinas que sabem mais do que muita gente com carteira profissional, ainda há quem se espante por dois portugueses serem parentes. Logo portugueses! — esse povo que, desde a fundação da nacionalidade, se cruzou com bárbaros, árabes, judeus, africanos, franceses, castelhanos, ingleses bêbedos em viagem e até — que Deus vos perdoe — com burocratas, advogados e submarinistas.
E querem espantar-se? Espantai-vos antes se encontrardes alguém que não o seja.

Há nisto, porém, um encanto infantil que me diverte: a vossa imprensa vive fascinada pela ideia de que as origens explicam tudo — quando as origens, em boa verdade, explicam apenas que vossos antepassados não foram particularmente esquisitos, ao passo que eu, com clarividência rara, decidi não deixar descendentes para evitar que algum dia um jornalista viesse atribuir-me primos indesejáveis.
Por isso, minhas queridas leitoras e estimados leitores, não vos deixeis arrebatar pela saga genealógica do Correio da Manhã. Aliás, ouso antecipar os próximos títulos dessa epopeia jornalística:
— “Sobrinho de Vasco da Gama descoberto em Massamá”;
— “Descendente de D. Urraca identificado graças ao TikTok”;
— “Joaquim de Alfama descobre que descende do Manuel da Mouraria, após saber que é primo em sétimo grau do José da Musgueira.”
E, se me permitem a imodéstia post-mortem, acrescentaria ainda um último:
— “Brás Cubas confirmado primo afastado de toda a nação — excepto de si próprio.”

Mas não vos assusteis com esta derradeira manchete imaginária — e garantidamente falsa, porque não tive não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Ela não serviria para vos alarmar, apenas para vos recordar a verdade primordial que subjaz a toda esta conversa: a genealogia, essa ciência melancólica de escavar pó em busca de avós improváveis, diz sempre mais sobre as fantasias do presente do que sobre os factos do passado. E mais: aquilo que verdadeiramente fascina a vossa imprensa nem o parentesco, mas a sim possibilidade de, por via dele, iluminar o quotidiano de alguém com lampejo extraordinário — mesmo que seja uma faísca tão ténue como o lume de uma lamparina a apagar-se.
Na ânsia de atribuir grandeza retroactiva às celebridades do agora, os jornais procuram antepassados como quem colecciona figurinhas raras: um visigodo aqui, uma monja arrependida ali, um corsário francês acolá. Tudo serve, desde que permita ao leitor acreditar que, por via de uma bisavó estrategicamente fecunda, também ele pode sonhar que faz parte da tapeçaria gloriosa da História. Enfim, compreendo: é uma forma de consolo existencial. Se um vivo não é grande, talvez os seus mortos, ou primos de sétimo grau, o sejam ou tenham sido por ele. A mediocridade será, assim, acredito, mais suportável.
Não censuro tal tentação. O ser humano sempre preferiu narrativas à nudez dos factos. Todavia, convém não se confundir acrobacias genealógicas com ciência, nem se tomar por epifania aquilo que não passa de um cálculo aritmético inevitável. Ao fim de algumas gerações, todos estão ligados a todos — por sangue, por acaso, ou por algum trisavô particularmente entusiástico em noites de vendaval.

E, assim, fechando este meu modesto tratado sobre parentescos, deixo-vos apenas esta reflexão derradeira: se a genealogia nacional continuar neste passo, qualquer dia revelam que o país inteiro é primo em primeiro grau, que o Adão português afinal se chamava Joaquim e vendia castanhas à porta da igreja, e que a grande árvore genealógica de Portugal não é mais do que um arbusto teimoso a insistir em crescer de todos os lados ao mesmo tempo.
Quanto a mim, despeço-me com a elegância possível a um defunto que já viu de tudo. E se, porventura, vos disserem um dia que Brás Cubas é também vosso parente, não estranheis. A única resposta digna, nesses casos, é a mesma que hoje dedico ao Correio da Manhã: “É sábado. E não chove.”
Adeus — e um piparote.
Brás Cubas