CORREIO MERCANTIL: TEMPORADA 2

Medicina, essa nobre arte de impulsionar a ciência com açoites disciplinares

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Brás Cubas|25/11/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Há séculos — período temporal que, não obstante o seu peso histórico, inclui também a última meia hora, que é quando a Humanidade costuma repetir-se com particular fervor — que o homem (e a mulher, já agora), esse animal gerado pela soberba e alimentado pela malícia, tenta rodear a verdade como quem tenta cercar uma lebre fugidia. Primeiro fê-lo com mitos, depois com teologias, mais tarde com filosofias e, finalmente — suprema ironia — com a ciência.

Seja qual for o instrumento, permaneceu sempre a mesma tentação: a de transformar a dúvida, esse motor da inteligência, em pecado intolerável. Os egípcios tinham sacerdotes; os gregos, oráculos; a Idade Média, inquisidores; e o vosso século XXI tem comissões disciplinares e sociedades científicas encarregadas de policiar o pensamento, como outrora se vigiava, tutelava e reprimia a alma.

A verdade científica — essa entidade escorregadia que agora se metamorfoseia como o mitológico Proteu perante os mortais — raramente se fixa por decreto. E quando alguém tenta fazê-lo, a História intervém — por vezes, infelizmente, em tardígrada velocidade — com mão severa. Mesmo na presente centúria das liberdades formais, há sempre um Galileu à esquina pronto a murmurar um abafado “E pur si muove”, um Semmelweis ridicularizado por lavar as mãos, um Harvey desacreditado por falar de circulação sanguínea, um Jenner tratado como bruxo por inocular uma doença para prevenir outra. Desde os meus tempos até aos vossos, vejo a ciência progredir sim, mas aos tropeções — vilipendiada por críticas, dúvidas, contradições e conflitos de interesse que só o tempo depura.

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Aqui reside a velha e inevitável lei: a ciência estabelecida não aprecia quem a questiona. Quando ascende ao trono, muitos dos seus sacerdotes tornam-se guardiões de dogmas que pretendem eternos. Se os autos-de-fé eram outrora lavrados em pergaminho e acesos em fogueiras, hoje redigem-se em comunicados, subscritos por sociedades médicas, enfeitados com gráficos coloridos e autenticados com o selo digital do zelo corporativo — por vezes, via Agência Lusa.

É à luz dessa tradição — mais antiga do que os tratados de Hipócrates — que contemplo a indignação de três sociedades médicas lusitanas contra o doutor Manuel Pinto Coelho e o seu livro sobre o colesterol. Indignação ruidosa, teatral, ungida de autoridade científica, mas exalando, aqui e ali, um cheiro subtil a temor institucional.

Ora, este caldo filosófico, histórico e hilário empurrou-me para esta crónica — não apenas de reflexão, mas de advertência: quando a ciência começa a punir opiniões divergentes em vez de as refutar, não está a defender a verdade, mas o seu poder.

Meditemos, pois, sobre a vossa época, aparentemente imunizada contra teofanias e idolatrias, mas infelizmente não contra confusões antigas: a ciência transformada em catecismo, o desacordo tratado como heresia, a opinião divergente convertida em acto punível não é modernidade — é hierocracia. Muda apenas o archote. Outrora queimava-se em fogueira pública; agora queima-se em processo disciplinar — mais asseado, sem fumo e com tempo para almoços tranquilos entre perícias.

Mas escrevo também esta crónica porque, sem querer e sem poder evitá-lo, fui arrastado para o epicentro da contenda. A polémica em torno do livro do doutor Manuel Pinto Coelho nasceu no ecrã da TVI, onde — por breves instantes, ainda que plenamente suficientes para incendiar o zelo disciplinar das sociedades médicas — surgiu, ao lado da obra do clínico, o meu Correio Mercantil. Apareceu! Lá estava ele, pousado à direita do doutor, com a gravidade hierática de um retrato de antepassado presidindo a um jantar de família decadente.

Correio Mercantil de Brás Cubas ‘apanhado’ pela TVI ao lado do livro do doutor Manuel Pinto Coelho

Pergunto-me agora: devo sentir-me honrado por esta inesperada irmandade literária com alguém que acaba de despertar a fúria simultânea das sociedades de Cardiologia, Aterosclerose e Hipertensão? Ou, num gesto de solidariedade burocrática com tais guardiões da verdade, devo apresentar também eu uma queixa disciplinar contra o pobre médico, para que possam saborear a rara dádiva de ver um defunto — sem arritmias, sem placas de ateroma, sem hipertonia arterial — marchar, obediente, na procissão corporativa?

E contudo… há qualquer coisa irresistivelmente cómica na maneira como esses senhores doutores dos ventrículos, das veias e capilares e da pressão sanguinolenta interpretam o verbo “fazer ciência”. Não com argumentos, mas com admonições. Não com debate, mas com comunicados e participações à Ordem dos Médicos. E estas queixas enviadas, com enternecedora frequência, para o doutor Carlos Cortes, que — direi com delicadeza — sofreu o infortúnio de herdar o báculo clínico que antes estivera nas mãos de um outro senhor que ora se senta no lusitano Parlamento, na bancada dos sociais-democratas, com tanta naturalidade como poderia ter-se sentado no Tribunal do Santo Ofício de Castela e Aragão, no estrado ao lado da cátedra de Tomás de Torquemada.

Alguns clínicos de hoje, tal como os zeladores antigos, não querem vencer com dados em fuste: querem derrotar com dedos em riste. A medicina moderna — ou uma parte dela — redescobriu, especialmente na decorrência da pandemia do coronavírus, que o mais eficaz instrumento para consolidar consensos não é o microscópio, mas o correio electrónico do Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos.

E assim surgem estas três sociedades — tri-primas do dogma cardiovascular — proclamando que as posições do doutor Pinto Coelho constituem ameaça pública, capazes de desencadear cataclismos miocárdicos dignos de Sodoma e Gomorra. Tudo porque ele, acusam elas, ousa — heresia maior! — questionar a infalibilidade das estatinas, sacramento químico que, segundo essas corporações, deve ser tomado com a mesma docilidade com que se profere um credo.

Nada tenho contra estatinas. Já não tenho fígado para as tomar, mas se o tivesse talvez cedesse ao seu charme bioquímico. Contudo, causa-me um prurido filosófico ver esta nova escola de ciência tão segura de si que prefere sentar o dissidente no banco dos réus em vez de no banco do debate.

Minhas morigeradas leitoras e frugais leitores: a ciência médica — a verdadeira, a antiga, a sábia — evoluiu com o erro, com a interrogação, com a incerteza, com a perplexidade, com a experiência e com a sorte. Jamais deve gritar “blasfémia!” nem procurar abrigo na autoridade das grandes agências mundiais como quem se acolhe à asa protectora da Santa Madre Igreja Clínica. A ciência ama a dúvida como um velho amante. E, sobretudo, não deve, de mãos estendidas e IBAN na memória, financiar-se tão gulosamente com bolsas, congressos e apoios de modernas boticas.

Mas regressemos ao doutor Pinto Coelho. Não nutro especial simpatia nem antipatia, embora o seu sorriso branco como um altar e o seu gosto pela contradição sejam literariamente encantadores. Contudo, simpatizo mesmo com a ousadia. Nem sei se o colesterol se mostra santo ou demónio — é apenas uma substância teimosa —, mas observar três sociedades a trovejarem contra um simples livro de divulgação médica soa-me mais a defesa de negócio do que a defesa de ciência.

E ainda mais com o já desgastado argumento: “A desinformação mata tanto como a doença”, que se tornou há muito um aforismo digno de almofada bordada em sala de espera. Mas devo acrescentar — e aqui permito-me recordar ao mundo que até o emplastro Brás Cubas, não criado somente por obra da minha pneumonia fulminante, teria causado celeuma, apesar da certeza apodíctica de cura de todas as melancolias humanas — que é a presunção de unanimidade que mata a ciência mais depressa do que um enfarte despacha um sedentário.

Enfim, sempre que a ciência deixa de ser diálogo e passa a decreto, deixa de ser ciência e torna-se proclamação régia — embora, justiça seja feita, os antigos reis e imperadores ao menos tivessem estilo e capas vistosas.

Regresso, por fim, ao meu dilema: devo solidarizar-me com o médico que na notícia da TVI exibiu o meu livro ao lado do seu? Ou, ao não me solidarizar com as três sociedades médicas, arriscarei também a ira disciplinar? Ou, pior ainda: quem sabe, uma convocatória para o banco dos arguidos do Tribunal do Bolhão, onde uma juíza de fino pulso trata um certo jornalista de três licenciaturas e um mestrado como mentecapto, apenas porque incomoda as negociatas do doutor Froes e provocou dói-dóis no ego do doutor Carona…

Talvez faça ambas as coisas: solidarizo-me com o homem e processo-o ao mesmo tempo. Não seria este duplo gesto a síntese perfeita da ciência contemporânea, que persegue num dia e abraça no seguinte, ao sabor dos ventos corporativos?

Adeus — e um piparote.

Brás Cubas

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