O PÁGINA UM MOSTRA TODOS OS DOCUMENTOS QUE REVELAM ILEGALIDADES DA 'TASK FORCE'

Gouveia e Melo estará esta quinta-feira no ‘banco das testemunhas’ em vez de no ‘banco dos réus’

Author avatar
Redacção PÁGINA UM|26/11/2025

A narrativa oficial sobre a vacinação contra a covid-19 no início de 2021 repetiu-se com disciplina marcial: tudo teria sido feito “segundo as normas”, nenhuma prioridade teria sido deturpada, e qualquer caso de vacinação de dirigentes ou médicos não assistenciais estaria coberto por actualizações da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

O PÁGINA UM mostrou que, sobretudo durante a liderança de Henrique Gouveia e Melo, actual candidato à Presidência da República, houve afinal um negócio entre ele e o então bastonário Miguel Guimarães para a vacinação em Fevereiro e Março de 2021 de cerca de quatro mil médicos não-prioritários, e envolvendo pagamentos ao Hospital das Forças Armadas. E esse negócio fez-se sem que Gouveia e Melo tivesse, à época, competências para tal nem a norma da DGS então permitia desviar vacinas para ‘fora’ dos grupos prioritários.

Neste outdoor em Alcântara esteve antes um cartaz da campanha da coligação liderada pelo PS na corrida às autárquicas. No mesmo local, esteve também um cartaz a criticar Carlos Moedas. / Foto: D.R.

Um relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), publicado já no ano passado veio, porém, ‘legalizar’ o processo, mas através de um detalhe fatal: indicou uma actualização da norma 002/2021 da DGS que nunca existiu naquela data.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Como do director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, está a responder por um crime de difamação, intentado por Gouveia e Melo, cujo julgamento decorre no Campus de Justiça em Lisboa, com a segunda audiência a realizar-se esta quinta-feira, dia 27 reconstruímos agora, com base exclusiva em documentos oficiais — despachos, normas e relatórios publicados entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2022 — a cronologia real do processo de vacinação, as competências efectivas da task force e o alcance jurídico da Norma 002/2021.


O ponto zero: o Despacho 11737/2020 e o verdadeiro mandato da task force

Toda a discussão sobre o processo de vacinação tem um marco inicial incontornável: o Despacho n.º 11737/2020, de 26 de Novembro de 2020, que criou a task force para a elaboração do Plano de Vacinação contra a covid-19.

Ao contrário da ‘mitologia’ posterior — que atribuiu à task force uma espécie de omnipotência técnica e política —, o despacho é claro e sóbrio. À task force, então liderada por Francisco Ramos, cabia:

  • elaborar um plano de vacinação;
  • propor a estratégia de vacinação;
  • identificar populações prioritárias;
  • propor iniciativas normativas;
  • coordenar logisticamente o processo.
Despacho de criação da task force de Novembro de 2020 estava em vigor quando Gouveia e Melo decidiu negociar a vacinação de médicos que não constavam das prioridades da norma 002/2021 da DGS então em vigor.

Não há no despacho qualquer atribuição de poder normativo, qualquer faculdade de alterar prioridades definidas pela DGS, nem qualquer autorização para negociar grupos profissionais fora das normas em vigor.

A definição jurídica dos grupos prioritários estava — como sempre esteve — na esfera da DGSe, ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 14/2012 e da Portaria n.º 298-B/2020. Foi no uso dessas competências da DGS que, a 30 de Janeiro de 2021, a então directora-geral da Saúde, Graças Freitas, publicou a norma 002/2021, documento que regeria toda a vacinação em Fevereiro e Março.


A norma 002/2021 de Janeiro – O regime que estava realmente em vigor quando os médicos não-prioritários foram vacinados

A norma 002/2021, publicada a 30 de Janeiro de 2021, definia a Fase 1 da vacinação, com foco exclusivo em:

  • residentes e funcionários de lares e unidades continuadas,
  • profissionais directamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes,
  • pessoas de 80 ou mais anos,
  • pessoas entre 50 e 79 anos com patologias graves.

Nada na norma incluía “todos os médicos”, nada sugeria incluir dirigentes de ordens profissionais, membros de conselhos directivos ou clínicos sem contacto com doentes. Nem sequer existe, na versão de Janeiro, qualquer mecanismo de excepção.

Norma original da DGS com prioridades esteve em vigor até Maio de 2021, quando foi actualizada.

Mais importante ainda: esta versão não foi actualizada em Fevereiro de 2021. Nem nesse mês, nem em Março. A primeira actualização da norma só ocorreria a 4 de Maio de 2021, mais de dois meses depois das polémicas vacinações de médicos sem contacto com doentes (covid ou outros).

Saliente-se que Gouveia e Melo, apesar de ter sido nomeada como ‘membro de task force em Novembro de 2020, como ‘adjunto’ de Francisco Ramos, foi nomeado em 3 de Fevereiro como líder dessa estrutura informal do Governo. Note-se que o este despacho (n.º 1448-A/2021)apenas serviu para o nomear, não alterando absolutamente nada das competências da task force atribuídas em Novembro de 2020. Ou seja, foi apenas a mudança de um nome.


Médicos não-prioritários em Fevereiro–Março 2021: podiam ser vacinados?

A resposta é inequívoca: não.

A norma 002/2021 de Janeiro, a única em vigor no período, não os incluía. Não existia nenhuma revisão normativa que os abrangesse. E, como veremos, a task force não tinha qualquer poder para alterar isso. A vacinação de médicos não assistenciais — a mais conhecida das quais envolveu dirigentes de ordens profissionais, ou que estivessem em funções burocráticas sem contacto com doentes — não tem enquadramento legal nem técnico. Foi um desvio objectivo ilegal à norma, que implicou o desvio de vacinas, nessa altura escassas, de população vulnerável.

O Governo nunca o assumiu. A IGAS tentou justificá-lo ‘manipulando’ uma data. Mas os documentos são claros.

Ana Paula Martins e Miguel Guimarães

A competência da task force: um mito construído depois dos factos

Outro ponto central da narrativa oficial sustenta que a task force teria tido margem para conduzir adaptações operacionais ou validar orientações pontuais. Mas entre Novembro de 2020 e Abril de 2021 — período em que ocorreram as vacinações polémicas — a task force estava limitada ao alcance estrito do Despacho 11737/2020:

  • elaboração,
  • proposta,
  • coordenação logística.

Nada mais. E sempre sob alçada de entidades públicas na área da saúde, como a DGS, do Infarmed, do INSA, da ACSS e do SPMS.

Somente a 19 de Abril de 2021, com a publicação do Despacho 3906/2021, já depois de concluída a vacinação dos médicos não-prioritários, é que o Governo ampliou formalmente o mandato para incluir “condução e execução” do plano.

E no casa da vacinação, só a 4 de Maio de 2021 aparece, pela primeira vez, uma norma que permite flexibilização controlada: “outros profissionais e cidadãos, a definir pelo órgão de governo, sob proposta da task force”.

Mas isto é de 4 de Maio de 2021 – meses depois das vacinações contestadas. Nunca poderia ser aplicado retroactivamente ao período de escassez de vacinas, quando a norma original de Janeiro estava em vigor sem qualquer actualização.

Por outras palavras: em Fevereiro e Março de 2021, a task force não tinha poder formal nem material para autorizar vacinações fora dos critérios definidos pela DGS.

Vacinar médicos não-prioritários (integrados nos “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e resposta á pandemia”) só passou a ser legal com a actualização da norma da DGS em Maio de 2021.

O erro nuclear da IGAS: a “actualização” inexistente

O relatório de esclarecimento da IGAS, que poderia resultar depois num inquérito, cometeu o erro mais grave possível numa análise normativa: baseou a sua conclusão de legalidade numa data que não existe.

O relatório afirma que a norma 002/2021 teria sido “actualizada em Fevereiro de 2021”. Esta afirmação é objectivamente falsa. Cronologicamente, as versões oficiais são:

Não há qualquer actualização intermédia em Fevereiro de 2021. Ou seja, é absolutamente falso aquilo que escreveu a inspectora Aida Sequeira que mereceu a concordância do inspector-geral Carlos Carapeto.

Ao construir a sua argumentação sobre esta “actualização fantasma”, a IGAS validou a acção de Gouveia e Melo que não encontravam suporte normativo na época dos factos, e nem sequer se importou em saber se todos os vacinados eram mesmo médicos e nem se incomodou em perceber que a task force não detinha competências para gerir um processo de negociações. O resultado foi assim um relatório que absolve por erro, consolida uma cronologia falsa e cria uma aparência de conformidade legal que não corresponde à realidade documental.

Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde

É difícil sublinhar o suficiente a gravidade disto. Um relatório oficial que visava apurar ilegalidades, mas que assenta afinal numa premissa normativa inexistente, não é apenas frágil — é metodologicamente inválido. E o inspector-geral da IGAS, Carlos Carapeto, assobiou para o ar, embora tenha sido arrolado, tal como a inspectora Aida Sequeira, para testemunhar no processo, por iniciativa do director do PÁGINA UM, para se justificarem.


Conclusão: os factos que ficaram por dizer

O PÁGINA UM conclui, depois de reconstruir toda a documentação disponível, que:

  1. A task force não tinha competência legal para autorizar vacinações fora da Norma.
  2. A norma 002/2021 em vigor em Fevereiro e Março 2021 não permitia vacinar médicos não assistenciais.
  3. A IGAS errou ao afirmar que a norma tinha sido actualizada em Fevereiro de 2021, quando apenas foi em Maio desse ano, sendo que esse ‘pormenor’ é o cerne do problema.
  4. As vacinações desses grupos de médicos em Fevereiro–Março de 2021 violaram a norma então em vigor.
  5. O erro da IGAS invalidou a sua conclusão de conformidade.

Num processo tão sensível como a priorização de vacinas num cenário de escassez, o mínimo que se exige é rigor documental. Aquilo que a investigação do PÁGINA UM demonstrou é exactamente o contrário: houve pressa política, excessos operacionais, interpretações criativas e, mais tarde, uma tentativa de acomodação administrativa daquilo que a documentação desmente.

A verdade é simples: a legalidade não pode ser reconstruída com datas inventadas. A cronologia certa é esta — mas, em vez de ser Henrique Gouveia e Melo, bem como o agora deputado Miguel Guimarães (então bastonário da Ordem dos Médicos), a sentarem-se no banco dos arguidos, o Ministério Público acolheu as suas queixas, virando o ‘mundo ao contrário’: quem está a responder judicialmente é o director do PÁGINA UM.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.