CORREIO MERCANTIL: TEMPORADA 2

O delicioso hábito dos vivos em malhar nos defuntos

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Brás Cubas|01/12/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Como defunto autor, apresento-me amiúde como um moralista quando calha e um libertino quando convém; nisso pareço um vivente — e observo, sempre com um misto de deleite, cansaço e mórbida curiosidade, uma paixão que se assolapou ao século XXI: a mania de punir mortos do passado com leis fabricadas pelos vivos do presente, como se o além fosse um tribunal administrativo prontinho para receber queixas por via electrónica. Convenhamos, em todo o caso, que é mania de antanho, antiga, antiquíssima, mais velha do que o Génesis — onde Adão culpou Eva, Eva culpou a serpente e a serpente, a mais sagaz dos três, seguiu tranquila e insuspeita, sem dar satisfação a ninguém. Enfim, sempre se apreciou culpar quem não responde.

Em Portugal, esse modelo ganhou um requinte particular: políticos modernos, com invejável talento, invocam sempre o Estado da Nação pela “pesada herança herdada”, que pode ser causada pelo Governo anterior, pelo anterior do anterior ou — para os mais habilidosos — ainda por Salazar, que já leva quase sessenta anos de múmia, mas continua a servir para todas as facturas morais em atraso.

A Humanidade sempre apreciou este truque psicológico: a culpa alheia pesa menos do que a responsabilidade própria, e quanto mais distante estiver o culpado — no tempo, no espaço ou já no cemitério — mais cómodo se torna o castigo. Heródoto intuía-o; Santo Agostinho lamentou-o; Marx sistematizou-o; Nietzsche baptizou-o de moral de escravo; Freud arquivou-o como mecanismo defensivo; Foucault tentou administrá-lo; e certos pós-modernos instalados em Berlim ou Bruxelas chamam-lhe agora “justiça reparativa performativa interseccional e intergeracional”, cobrando subsídio europeu por tão luminosa epifania.

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Não sei quem terá razão — talvez todos, talvez nenhum —, mas todos perceberam que a justiça histórica raramente passa de vingança com verniz académico e iluminação museográfica.

Vem isto a propósito da exposição Complexo Brasil, esse sacrário pós-colonial instalado agora na Fundação Gulbenkian, onde a penitência é estética, a História é terapêutica e a culpa portuguesa é o incenso que perfuma as vitrines. O curador — brasileiro de origem polaca, mistura que faria as delícias de um psicanalista — decidiu que o Portugal de agora deve pagar pecados que não cometeu, mas que deve assumir por contágio, hereditariedade ou simpatia histórica. O catálogo, esse catecismo secular, reescreve até versos de Fernando Pessoa como se o pobre poeta tivesse sido ministro do Ultramar.

Complexo Brasil, exposição na Fundação Calouste Gulbenkian que decorrerá até 17 de Fevereiro de 2026. Foto: FCG.

Até aqui, nada de novo: a modernidade adora chicotear cadáveres para não enfrentar os vivos. Mas é precisamente quando se vira o catálogo do avesso que a coisa descamba. Porque na ânsia acusatória apaga-se o óbvio, e o óbvio é sempre aquilo que ninguém quer discutir: o meu Brasil teve quase sete décadas de soberania política para abolir a escravatura — e custou a abolir, como retratou o meu contemporâneo Bernardo Guimarães no seu Escrava Isaura, que tantas lágrimas derramaria na lusofonia décadas mais tarde, graças à TV Globo e à Lucélia Santos.

Assuma-se: por décadas, já sem reinóis, o Brasil preferiu manter engenhos a chiar, latifúndios a florescer e senhores de escravos a digerir feijão gordo. Portugal, entretanto, seguiu o seu curso, abolindo até a pena de morte antes de o Brasil se decidir enfim a abolir a escravatura. Se houve crime, este foi cometido alegremente com bandeira própria e hino recém-composto.

E até me apoio agora, para não me esquivar da prestação de contas, na minha autoridade biográfica, esse título pomposo que só serve para dar verniz académico às antigas malfeitorias. Também eu fui aquilo que fui e as minhas circunstâncias o confirmam — para satisfação póstuma de Ortega y Gasset, que jurava que o homem nunca vem só: traz sempre o mundo a puxar-lhe a manga.

Como quem leu as minhas memórias lembra, na infância tive o moleque Prudêncio, meu cavalo humano, que eu esporeava com a inconsciência dos rapazinhos bem-nascidos. Mais tarde, tomado de súbita generosidade filosófica, comprei-o para o libertar, convencido de que tal acto me conferia uma superioridade moral digna de missa cantada. Eis que anos depois, encontrei-o já alforriado, a brandir o chicote com zelo redobrado sobre outro infeliz da sua nação. Eis Gasset em carne viva: Prudêncio era ele — mas também o seu entorno — e o seu entorno, como sucede amiúde neste vasto Brasil, oferecia-lhe sempre um látego à mão.

A opressão, como os vícios hereditários da espécie, aprende-se com espantosa rapidez e transmite-se com fervor quase litúrgico, mesmo quando se proclama o contrário.

Portanto, imaculadas leitoras e honrados leitores, a exposição na Fundação Calouste Gulbenkian sobre o Brasil resvala, ou escorrega, com entusiasmo para narrativas poéticas — sempre mais cómodas e mais lisonjeiras do que a singela e escorreita honestidade. A liturgia identitária, com o seu fervor de sacristia política, reclama vilões adamantinos e vítimas de quartzo lapidado; e Portugal, esse país miúdo, calmo e sempre à mão de semear na beira do Atlântico, ajusta-se com graça involuntária ao papel de lobo moral na enorme fábula redentora que o Brasil gosta de contar a si mesmo.

E assim sendo, já que entrámos no domínio da fantasia curatorial, proponho, com a leviandade própria de uma alma inimputável, um exercício que faria corar até o mais pachorrento dos anjos do Juízo Final: uma temporada de exposições penitenciais, mas dirigidas aos povos que, antes de Portugal existir, já por aqui andavam a fazer tropelias dignas de dossier policial — e que hoje, curiosamente, não figuram em nenhuma sala iluminada da Gulbenkian.

Comecemos, pois, pelos romanos, que durante seis séculos fizeram das vossas terras um parque temático de estradas, impostos, minas de ouro e escravos. A eles, proponho montar em Roma, no Palazzo delle Esposizioni, a mostra Complexo Lusitânia: esculturas de Viriato a olhar de esguelha para legiões inteiras, mapas das minas de Trêsminas, em Vila Pouca de Aguiar, exploradas até ao tutano e intoxicando sangue e ossos com mercúrio, e — para comover as plateias — a reconstituição do momento exacto em que os Lusitanos foram enganados por Sérvio Galba, com audioguia em latim vulgar. Tudo acompanhado, claro está, de um catálogo onde se explique que, graças a tais violências, Portugal até hoje não perdoa a Itália — embora, para disfarçar, finja gostar de pasta, pizza e limoncello.

Depois, pegue-se nos suevos e visigodos, que entraram sem bater à porta e instalaram reino em Braga como quem monta uma pastelaria de esquina. Para eles, proponho uma exposição em Berlim, intitulada Gótico, Germânico e Mal Lavado, onde se reconstituam as vossas aldeias tomadas por senhores ruivos e desgrenhados, que redistribuíram terras a bel-prazer e leis como quem faz enchidos. Seria pedagogicamente útil que a Alemanha contemporânea meditasse sobre o precedente: antes de querer impor agora regras orçamentais, deveria sim pedir desculpa pelas violentas partilhas do século VI.

Sigamos para os muçulmanos, que chegaram aos vossos burgos no início do século VIII com uma eficiência quase germânica e governaram vastas porções do território por tempos ingratos. Merecem uma exposição em Rabat, com o título Al-Portugal Andaluz, onde se narre, com muita caligrafia e incenso, como vos meteram moiras encantadas, vos cobraram impostos, vos ensinaram matemática, vos cultivaram as terras com regadio, vos criaram os montados de sobreiro e azinheira e, entre uma mesquita e outra, se esqueceram de vos devolver as chaves de Silves, de Beja e de Lisboa quando foram escorraçados. Nada de muito grave — mas se há que pedir desculpas por heranças coloniais, também eles podem explicar o entusiasmo com que os seus emires recolhiam tributos.

E que dizer dos franceses, que não satisfeitos com moda, vinho e revoluções, decidiram invadir Portugal três vezes entre 1807 e 1811? Proponho, sem pejo, a exposição Napoleão e o Assalto ao Bacalhau, no Louvre, com painéis a explicar como Junot saqueou cofres, queimou aldeias, obrigou o povo português a improvisar guerrilhas e fez D. João VI ir comer coxas de frango assado para o Paço de São Cristóvão. Uma sala especial poderia exibir, em looping, a retirada apatetada de Massena das Linhas de Torres, para lembrar a Paris que nem sempre o génio francês sabe para onde vai.

E, claro, Castela — essa vossa vizinha cheia de ímpetos expansionistas — que tentou tomar-vos antes de 1143, tentou anexar-nos em 1383 com direito a intrigas de corte e finalmente conseguiu dominar-vos entre 1580 e 1640, numa união forçada que se lançou janela fora com Miguel de Vasconcelos e só se encerrou duas décadas e meia mais tarde por mor de mussalas, arcabuzes, pistolas de pederneira, carabinas, granadas, fogaréus, bombardas e ainda espadas e piqueiros na batalha dos Montes Claros. A estes seria mister dedicar uma grande mostra não em Madrid, que seria demasiado confortável, mas em Olivença, essa terra que seria portuguesa, mas que a História transformou num souvenir mal resolvido da Guerra das Laranjas.

Esta exposição poder-se-ia intitular simplesmente Vizinhos: maus ventos e piores casamentos. Nas paredes, fotografias de Filipe II com o seu eterno ar de quem examina contas em atraso; mapas da incorporação forçada de Portugal; e — peça central — a reconstituição da revolta de 1640 com áudio imersivo de povo a bradar “Viva el-Rei de Portugal!”, enquanto em ecrã paralelo se exibiria Godoy a colher laranjas para oferecer a Madame de Bourbon. No final, uma nota de rodapé esclareceria que, apesar de tudo, se continua a partilhar fronteira e a beber vinho uns dos outros — prova viva de que o estoicismo português é, no mínimo, milagreiro.

E quando tudo isto estivesse feito, faltaria apenas a derradeira exposição, a mais moderna, a mais europeisticamente correcta: a mostra em Bruxelas dedicada à invasão dos burocratas da União Europeia, esses conquistadores de regulamento em punho, que não entram a cavalo nem em navio — entram por e-mail, com anexos em PDF e formulários para preencher.

Nas salas da exposição Portugal Perdido ver-se-iam retratos de comissários a redigir directivas sobre o calibre das bananas, a curvatura dos pepinos e o número exacto de decibéis aceitáveis num aspirador; ouvir-se-iam discursos sobre “harmonização identitária”, expressão que significa, na prática, apagar as diferenças para comodidade administrativa. E a peça final, naturalmente, seria um painel interactivo onde cada visitante tentaria declarar-se português, francês ou austríaco — e o sistema, invariavelmente, negaria: “Erro: nacionalidade não reconhecida. Por favor seleccione ‘cidadão europeu genérico’. Obrigado.

E assim, com estas exposições devidamente organizadas, talvez o meu Brasil constatasse que a História é espelho, não mostruário — e que, ao contrário dos armários envidraçados, os espelhos têm a desagradável tendência de reflectir o presente, não o passado. Talvez descobrisse assim que chicotear fantasmas do pretérito não elimina os engenhos, os latifúndios, as violências, os clientelismo, as desigualdades e até a escravidão da quadra contemporânea, tão cheia de boas intenções e más práticas.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas

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