PINDORAMA
O homem todo vestido de preto

O sol morria no horizonte, vermelho, mas o calor permanecia sobre a cidade, sufocando-a, úmido e pegajoso. Janelas e portas escancaradas mostravam gente suarenta e apática no interior das casas. Só as crianças não sentiam a quentura: corriam pelas calçadas incendiadas, empurrando-se, gritando.
Vínhamos num carro velho, tão lento e preguiçoso quanto os homens que se arrastavam de volta à casa depois de um dia de trabalho. Éramos rapazes e mirávamos sem interesse a inquieta garotada de bochechas vermelhas e os velhos de pijama, já nas cadeiras de balanço, à espera da frescura da noite. Mas naquele lusco-fusco havia também mulheres debruçadas nas janelas.
Esmagados pelo calor que entrava em jatos de vapor pelas janelas abertas do automóvel, vínhamos taciturnos, calados. Desembarcamos diante do ginásio de esportes. A rua era uma fornalha.

Entramos. Lá dentro, por uns minutos nos detivemos junto à tela de proteção da quadra observando os caras que jogavam. Camisetas molhadas, coladas no corpo, cabelos empapados, rostos avermelhados, esbaforidos usavam mais de astúcia que de vigor. ↓
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Fomos para o vestiário. Não senti alívio nenhum quando me livrei das roupas; o calor apalpou-me as pernas e o peito enquanto eu vestia o calção e a camiseta preta.
– Eu é que não queria estar na tua pele, com este calor danado – disse-me o Boca. – Vestir uma camiseta grossa!
– Todo mundo vai suar muito mesmo – retruquei. – Tanto faz.
– Mas, em compensação, o goleiro fica parado – palpitou o Magro.
– Parado não quer dizer descansando – acrescentei. – No golo, o ruim é o suor da testa entrando ardido no olho da gente.
– Vocês conhecem o time deles? – perguntou o Turco.
– Ouvi falar que jogam mais ou menos – respondeu o Boca. – Mas parece que sentam o sarrafo!
– Quem te mandou acertar jogo contra o time de um matadouro? – intrometeu-se o Magro, encarando o Boca.
– Matadouro? Como é que eu ia saber que eram de um matadouro? Só sei que é uma alemoada. Devem ser duros de cintura! Vai ser barbada.
– Pra teu controle, é um matadouro de porcos – disse o Magro. – Clandestino, ainda por cima.
Até as palavras soam mais quentes aqui no vestiário, pensei.
Preguiçosamente, lentos, vestíamos o uniforme. Ninguém ali parecia disposto a fazer os exercícios de aquecimento.
– O pior pra nós é o goleiro deles – disse o Boca.
– O goleiro deles? – me interessei. – Quem é?
– É um alemão meio velhusco. Um tal de Batata.
– Batata?
– É isso aí. Conheces?
– Não vai dar pra nós – eu disse. – É melhor a gente ir pra casa. Não temos a mínima chance de ganhar.

Todos me olharam, interrogativos.
Resolvi não dizer mais nada. Não expliquei a eles que conhecia o Batata desde quando eu tinha nove, dez anos.
Eu ainda usava calças curtas, quando meu pai começou a me levar para assistir às partidas do campeonato de futebol de salão, nas noites de sábado. Eu já era fascinado pelos goleiros. E ele, Batata, era o mais elegante de todos os arqueiros da cidade. Todo vestido de preto, magro e alto, uma risca perfeita cortando o cabelo claro ao meio. Batata, solitário como todos os goleiros, passava o tempo todo vigiando com seus olhos azuis semicerrados o movimento dos jogadores. Para mim, ele era o maior de todos, invencível.
Sim, naquela noite infernal, jogamos contra os caras do matadouro. Foi uma partida comum, como essas tantas outras que nas noites de calor ou de frio entretêm os jovens das pequenas e médias cidades.
Estou falando de futebol de salão e não desse negócio modorrento e sem graça que é o futebol de campo, esse jogo em que vinte marmanjos se arrastam por um gramado. Não, estou falando do futebol que é disputado numa quadra de cimento liso ou de taco por caras que correm feito loucos. Que trombam e caem. Caem a todo momento porque o campo é pequeno e a velocidade deles é tremenda. Mas que levantam no mesmo instante porque os segundos são preciosos. O desgaste físico é tanto que os tempos são de apenas vinte minutos. E aquela bola, que parece coisa de menino, tão pequena, é terrível porque machuca bastante. Um dia me contaram o caso de um cara que morreu com um rim dilacerado quando levou uma bolada. O pobre estava formando uma barreira.
Ganha o time que erra menos. O sujeito não pode chegar um milésimo de segundo atrasado. Todo erro é fatal. É jogo que exige paciência, malícia. É jogo de estratégia, de espera. Para ganhar, é preciso acertar nas vezes em que o adversário erra. É como na vida, o sujeito só se alevanta quando o outro falseia a passada. É jogo bruto.
As grandes jogadas são imperceptíveis. Dribles de centímetros, que só os muito habilidosos conseguem dar. O giro fulminante, o corta-luz. E os chutes? Ninguém chuta de lado de pé, bola colocada, essa frescura. É sempre de bico, chute seco. A bola zune, assobia no ar parado dos ginásios cobertos. A magia do futebol de salão está na vertigem do raciocínio dos jogadores.
O nosso time era muito superior. Jogávamos juntos desde o nosso tempo de ginasianos. Estávamos entrosados de um jeito tal que nem precisávamos erguer o rosto para saber onde andava o companheiro – bastava jogar a bola no espaço vazio que ele chegava a tempo.
Acima de tudo, éramos amigos, camaradas, parceiros de bailes e de namoricos, colegas de universidade, companheiros de noitadas. Então, se por acaso um perdia a bola, todos voltavam, juntos, para ajudar na defesa, e imediatamente preparar um contra-ataque.

Jogamos muito bem naquela noite sufocante, jogamos bem pra burro.
Mas não vencemos.
O que eu quero dizer é que não pudemos explodir no grito de golo e bater nas palmas das mãos dos outros, dar socos no ar ou recolocar a bola no meio da quadra.
Isso tudo por causa daquele goleiro, o goleiro do time do matadouro de porcos, talvez já beirando os cinquenta anos, aquele que todos chamavam Batata.
Porque ele parecia ter uma dezena de mãos como a deusa hindu e seu corpo seco era movido por uma eletricidade de animal. Quando chutavam cruzado, ele se abria no ar, pernas e braços, um xis perfeito, e assim guarnecia toda a meta, porque sempre havia uma perna ou um braço para mudar a trajetória da bola, viesse ela de onde viesse. E quando chutavam bolas baixas, rasteiras, ele, que era um sujeito alto para goleiro de futebol de salão, vinha pegá-la com a mão, porque os pés são traiçoeiros, não nos obedecem. As mãos, sim. Elas fazem o que a gente quer.
Era espantoso como aquele sujeito de cabelos já cinzentos apanhava, em mergulhos sinuosos, a bola com a mão. E logo se erguia e lançava a bola com força, sempre certeira, até o pé do atacante. Eram lançamentos perfeitos, quase que meio golo, como a gente dizia na época. Mas, naquele jogo, eles acabaram dando em nada porque aquele time do matadouro era muito do vagabundo e ninguém ali conseguia aparar a bola jogada pelo Batata, tirar-lhe o efeito, dominá-la.
Quando terminou a partida, sai correndo da minha trave, comovido, atravessei a quadra e abracei o alemão velhusco pelos joelhos. Levantei-o do chão. Ele ficou um tanto surpreendido, porque já não tinha mais fãs há muito tempos. Quando o recoloquei no chão, ele passou a mão pelos meus cabelos e disse:
– Valeu, guri!
Depois, me fui correndo ao vestiário.
Rapidamente, me botei debaixo do chuveiro.
Enquanto tiravam o uniforme, vagarosos, meus companheiros discutiam. Por que não ganhamos? Onde falhamos?
Quando saí do chuveiro, resolvi falar:
– Vamos parar com este papo besta. O Batata jogou sozinho. Ainda é o maior goleiro da cidade. Sempre adivinha onde o sujeito vai botar a bola. As mãos dele têm imãs. A gente só ganharia se alguém tivesse trazido um revólver pra dar um tiro na cabeça daquele alemão filho da puta.
Calaram-se.
Enquanto me vestia, senti vontade de chorar mais uma vez, mas me controlei porque não tinha mais a água do chuveiro para mascarar.
Fiquei apenas lembrando de tantos anos antes quando eu era apenas um piá de calças curtas e, mãozinha dentro da mão áspera de meu pai, escalava penosamente os altos degraus das arquibancadas do ginásio do Cruzeiro nas noites de sábado.

Naquela época, Batata não tinha os olhos raiados e o pescoço avermelhado dos bêbados. Não! Era o mais elegante e vaidoso dos goleiros da cidade – sempre impecavelmente vestido todo de preto: tênis, meias, calção, camiseta e luvas.
Foi por causa de uma mulher que se desgraçou. Mulher safada. Neste mundo cheio de mulheres ele só queria aquela, a vagabunda, a sem-vergonha que o enganava. Então deu em beber. Naquele tempo trabalhava num banco, e ganhava uma boa grana extra jogando. Tinha um carro e andava bem vestido. Mas ela queria luxos que um emprego decente não podia propiciar. Aí, um dia, ele roubou. Por causa dela. Pouca coisa, parece. O caso foi abafado, mas ele acabou sendo despedido. Por algum tempo ainda conseguiu outros empregos, sempre um pior que o anterior. Ainda gozou de impunidade por algum tempo por ser o melhor goleiro de futebol de salão da cidade. Mas depois aprontou tantas vigarices que um dia acabou dando com os costados na cadeia.
Na época em que tive a suprema honra de enfrentá-lo, ele só jogava em times fuleiros. Jogava por qualquer coisa, um prato de sopa, uma carteira de cigarros, duas cervejas. Desde então, tenho disputado mil partidas. Esqueço todas, nem conto os golos. Mas aquele zero a zero eu não esqueço. Ainda me lembro da leveza dele quando o levantei, guardo o espanto dos olhos avermelhados que me fitaram, sinto o peso da mão dele, enluvada, na minha cabeça, e a voz rouca que me disse:
– Valeu, guri!
Lourenço Cazarré é escritor
(*) (*) Do livro Ilhados.