EMPRESA PRESSIONA GOVERNO

Distribuição de jornais no interior: VASP de Marco Galinha está a fazer ‘bluff’

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Pedro Almeida Vieira|06/12/2025

A ameaça da VASP de deixar de distribuir jornais e revistas diariamente em oito distritos do interior, apresentada como inevitável devido a dificuldades financeiras, tem todos os ingredientes de um movimento táctico — um verdadeiro bluff empresarial destinado a pressionar o Governo a avançar rapidamente com o concurso público para a distribuição de imprensa ou com algum tipo de compensação económica indirecta.

Esta é a conclusão a retirar de uma análise do PÁGINA UM ao mais recente relatório e contas consolidadas da empresa controlada pelo empresário Marco Galinha, também accionista de referência da Global Notícias, que detém o Jornal de Notícias — e que, aliás, ainda não apresentou contas relativas a 2021.

Foto: PÁGINA UM

De facto, apesar de a distribuição de jornais e revistas ser a menos lucrativa das unidades de negócios da VASP — cotada no ano passado com um lucro de apenas 3 mil euros — é esta que lhe garante praticamente todo o cash-flow operacional e a única que sustenta a sua estrutura logística nacional. Sem esta unidade, não apenas a VASP não se tornaria mais leve ou mais sustentável: simplesmente colapsaria, levando consigo as restantes áreas de actividade, que vivem à boleia da escala e da liquidez proporcionadas pelo negócio das publicações.

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E é aqui que está o bluff — a empresa ameaça abandonar a distribuição no interior (que lhe causa prejuízo, embora compensada pelos distritos mais populosos), mas seria inaceitável manter apenas as zonas lucrativas. A única solução seria abandonar todo o negócio da distribuição de revistas e jornais, mas isso equivaleria a destruir o seu único pulmão financeiro, logístico e de know-how— algo que expõe o carácter estratégico, e não estritamente económico, da ameaça feita esta semana.

Recorde-se que a VASP anunciou a intenção de restringir a distribuição diária em Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu, Vila Real e Bragança a partir de Janeiro, levando já a ERC a informar que está a recolher informação adicional e que actuará no âmbito das suas competências. Também diversos autarcas do interior manifestaram preocupação com esta intenção.

Marco Galinha, accionista principal da VASP.

A VASP alega estar a atravessar “uma situação financeira particularmente exigente”, devido à “contínua quebra das vendas de imprensa” e ao “aumento significativo dos custos operacionais”. Esta narrativa, num sector em erosão, soa plausível, mas o Relatório e Contas de 2024 da empresa conta outra história: a unidade que distribui jornais e revistas continua a ser a base económica da empresa, representando 84% do volume de negócios e assegurando o grosso do EBITDA (resultados antes de juros, impostos, depreciações e amortizações) que financia o grupo.

E há unidades de negócio em crescimento que necessitam da “velhinha” estrutura da distribuição dos jornais e revistas. Com efeito, a VASP divide-se em três unidades: Editorial – Publicações (jornais e revistas), Editorial – Livros e Não Editorial (cartões, pré-pagos, jogos sociais, logística diversificada, serviços Kios). E é ao olhar para estes números que o bluff se torna evidente.

A Unidade Editorial – Publicações, que a VASP apresenta agora como insustentável, gerou, no ano passado, quase 114 milhões de euros de volume de negócios (contra 115,2 milhões em 2023). A queda foi mínima: apenas 1,2%. E, mesmo com a quebra estrutural das vendas de imprensa, produziu um EBITDA de 8,474 milhões de euros, valor superior ao somatório das outras duas unidades. Assim, é esta unidade que garante a liquidez necessária para a operação logística nacional, para os salários, para o investimento e para a diversificação em curso.

Além disso, o relatório e contas do ano passado mostra que as margens operacionais se mantêm positivas graças a “ganhos de produtividade” e a “renegociações comerciais” com editores e retalhistas. Ou seja, há pressão, sim, mas há também capacidade comprovada de adaptação e, sobretudo, a garantia de que o negócio continua a gerar cash-flow suficiente para sustentar o grupo.

Agora vejamos as outras unidades.

A Unidade Editorial – Livros é quase irrelevante na estrutura económica: 2,1 milhões de euros de volume de negócios e um EBITDA de apenas 76 mil euros. Não tem escala, não tem crescimento e não pode substituir o papel das publicações — nem de perto.

Mas a Unidade Não Editorial, que Marco Galinha tem promovido como a grande aposta estratégica do futuro, é efectivamente a potencial “galinha dos ovos de ouro”: no ano passado aumentou 4,8% em receitas e 30,7% em EBITDA face a 2023. Mas representa apenas 19 milhões de euros de volume de negócios e 1,08 milhões de euros de EBITDA — cerca de oito vezes menos do que a unidade de publicações. Ou seja, mesmo sendo promissora, está muito longe de ter massa crítica para viabilizar sozinha a estrutura logística nacional.

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O que significa isto? Que a VASP está a ameaçar abandonar a única unidade que lhe dá sustentabilidade financeira, algo que, do ponto de vista empresarial, não faz sentido nenhum. Na verdade, a empresa está a usar a ameaça de abandono como alavanca negocial para pressionar o Governo a avançar finalmente com o concurso público prometido para garantir a coesão territorial da distribuição de imprensa.

O empresário Marco Galinha, aliás, reforçou abertamente essa leitura esta sexta-feira numa publicação na rede X, onde afirma que a VASP “não precisa de esmolas”, mas sim de “seriedade”, adiantando que nunca cortou rotas porque acreditou na palavra do ministro Pedro Duarte, que prometera lançar o concurso no prazo de sete semanas.

A publicação aparenta ter sido uma resposta directa às declarações do ministro da Presidência, Leitão Amaro, que afirmou na quinta-feira que “nenhum operador pode tomar por garantido” qualquer subsídio estatal e que eventuais apoios à coesão territorial devem ser feitos “com mecanismos concorrenciais”. A frase, lida em conjunto com a estratégia de comunicação da VASP, ajuda a decifrar o que está em causa: não é a sobrevivência imediata da empresa — que tem contas estáveis —, mas a definição de um novo modelo de apoio estatal à distribuição de imprensa, num sector onde a VASP, como operador dominante, tem muito a perder se não for ela a moldar as regras.

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E é aqui que os números se tornam cruciais: a VASP não quer abandonar a distribuição de jornais; não pode abandoná-la; e sabe que não sobreviveria sem ela. Aquilo que deseja é garantir que, no futuro próximo, não terá de suportar sozinha os custos da manutenção das rotas menos rentáveis — ao mesmo tempo que mantém intacto o controlo logístico que lhe permite operar todos os outros segmentos de negócio.

Não é a primeira vez que operadores dominantes usam a periferia para condicionar decisões políticas. O debate não é económico — é político. Porque, financeiramente, todas as evidências mostram que a unidade de distribuição de publicações continua a ser a pedra angular que mantém de pé toda a VASP. E ninguém, muito menos a própria empresa, abandona o único negócio que garante a sua sobrevivência.
A ameaça existe — mas a ameaça é táctica. O bluff está identificado.

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