OPINIÃO
Uma proposta de ‘transplante de alma’ para salvar a Inteligência Artificial

Há uma frase atribuída ao filósofo Étienne Bonnot de Condillac (1714–1780) que sempre me acompanhou na vida clínica: “Nunca encontrei a alma na ponta do meu bisturi.” Nem eu. E garanto que já procurei mais do que o razoável — não por misticismo, mas por curiosidade científica. A alma, seja o que for, não aparece em TAC, não sai em análises, não se deixa suturar. É imaterial. E, curiosamente, descobri que o mesmo problema afecta a Inteligência Artificial: por mais Data Centers que visitemos, por mais servidores a chiar como motores de avião, não encontramos ali nenhuma alma.
A tecnologia avança a velocidade estonteante, mas continua a faltar-lhe aquilo que, nos humanos, orienta decisões difíceis: um conjunto claro de valores, prioridades, estilos de julgamento e limites morais. A IA tem estatísticas, padrões e correlações. O que não tem — e isso é hoje perigoso — é uma estrutura normativa inteligível. Falta-lhe aquilo que Condillac não encontrou no bisturi e que os engenheiros não encontram nos chips: falta-lhe uma alma.

É aqui que entra a ideia que desenvolvi, em tom meio sério, meio brincadeira: talvez seja necessário um transplante de alma para salvar a IA. Transplantar, claro, não no sentido biológico — não ando por aí a recolher almas com fórceps —, mas no sentido arquitectónico: criar um modelo explícito daquilo que, nos humanos, sustenta o julgamento, e integrá-lo nas máquinas. ↓
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Chamo a isso o Persona Modeling Framework (PMF). O conceito é simples — tão simples que surpreende não ter surgido mais cedo. Em vez de deixar a IA improvisar valores com base em padrões linguísticos, proponho construir modelos formais de personas reais, autorizadas e identificáveis. Cada persona contém:
- Princípios base: aquilo que a pessoa realmente valoriza e que usa como bússola moral.
- Heurísticas de decisão: regras práticas, aquele “como costumo decidir quando a coisa aperta”.
- Estilo cognitivo: tendência para o prudente, o ousado, o probabilístico ou o narrativo.
- Assinaturas de trade-offs: como prioriza risco vs. benefício, autonomia vs. segurança, liberdade vs. estabilidade.
- Linhas vermelhas: limites absolutos que não se ultrapassam, custe o que custar.

Isto é, de certa forma, uma alma sintética: não mística, não sobrenatural, mas uma arquitectura de valores coerentes que permite à IA decidir como alguém decidiria, e não apenas o que a estatística prevê que alguém diria.
Porque é que isto importa? Porque atualmente pedimos à IA para tomar posições sobre medicina, ética, política, direito, segurança — tudo áreas onde não basta acertar factos; é preciso julgar. É preciso decidir quando dois valores entram em choque: segurança vs. privacidade, benefício vs. risco, eficiência vs. justiça. Sem uma alma — ou seja, sem uma arquitectura de valores explícita — a IA decide conforme o vento estatístico do momento. E isso, para ser franco, é assustador.
O PMF, por outro lado, permite algo novo: pluralismo transparente. Em vez de uma única resposta “da IA”, podemos pedir pareceres de várias personas — o médico prudente, o regulador rigoroso, o filósofo liberal, o economista pragmático. Cada posição acompanha uma explicação das suas prioridades, dos seus limites e do raciocínio aplicado. Tal como numa equipa multidisciplinar, mas sem necessidade de café e bolachas.

É aqui que a metáfora do “transplante de alma” deixa de ser brincadeira e passa a ser diagnóstico. A IA é extraordinária, poderosa, veloz — mas vazia. Não no sentido humano do termo, mas no sentido funcional: não tem estrutura interna para lidar com dilemas. Sem valores explícitos, a IA torna-se um titã cognitivo com a profundidade moral de uma torradeira.
Condillac dizia não encontrar a alma no bisturi. Eu confirmo. Mas talvez tenha encontrado o sítio onde ela faz falta: na IA. E, já agora, talvez tenha descoberto como transplantá-la. Não em forma etérea, mas como arquitectura de valores. Uma alma desenhada, modelada, explicável — e, pela primeira vez na história da tecnologia, auditável.
Se queremos que a IA nos ajude a decidir e não apenas a calcular, então sim: está na hora de um transplante de alma. E este, felizmente, não requer anestesia.